DINAMISMO
PARANÓIDE
Nahman Armony
Uma dinâmica e uma estratégia a partir
da "disponibilidade para a identificação".
A posição básica de quem pretenda
apreender o dinamismo fantasmático que pode vir a se estabelecer entre
terapeuta e cliente é colocar-se sensível e aberto às solicitações do paciente.
Isto é o mesmo que dizer que o terapeuta se encontra em uma peculiar posição contratransferencial
à qual denominei de "disponibilidade para a identificação". Nesta
condição, identificações homólogas e complementares têm lugar provocando uma
relação estreita, íntima, familiar, uma relação de interioridade entre analista
e analisando. Vimos que, no caso do dinamismo depressivo, predominam as
identificações complementares (exp.: Mãe-Onipotente/Filho-Impotente) entre os
membros da díada terapêutica; em se tratando do dinamismo paranóide prevalece
na relação analista/analisando a
identificação homóloga. Logo veremos porquê.
Antes
de prosseguir examinando o dinamismo
que se cria entre analista e
analisando na situação paranóide, uma breve palavra sobre uma característica básica
do paranóide. Enquanto no dinamismo depressivo as relações subjetivas se passam
entre Filho-Bom e Mãe-Boa, no paranóide a dinâmica interna predominante é entre
Filho-Bom e Mãe-Má. (Nota: durante muito tempo o analisando paranóide
vivenciará o psicanalista como o seu duplo; só mais tarde, e por períodos
limitados poderá ser o terapeuta vivido como Mãe-Má sem quebra da
relação). Isto pode soar estranho, mas
espero que aos poucos fique esclarecido. No momento esta formulação nos serve
para indicar a seguinte característica do paranóide: ele é bom enquanto o mundo
é mau; se ele sofre um agravo ou uma frustração nenhuma parcela de
responsabilidade jamais recai sobre ele; é sempre o outro o culpado; ele
próprio é, a priori, inocente, isento de culpa. Dada a sua intimidade com os
aspectos maus do desejo humano, ou, em outras palavras, dada a sua intimidade
com a Personificação-da-Mãe-Má é o paranóide especialmente perceptivo e
sensível às manifestações ditas negativas das pessoas - raiva, inveja,
irritação, desprezo, desvalorização/sentimentos de superioridade - sendo capaz de detectar traços mínimos destes
sentimentos, inflacionando-os e transformando-os em características
quase-únicas, quase-absolutas dos seres humanos, ficando cego a outras
manifestações de humanidade, mesmo quando claramente presentes. A
Personificação-da-Mãe-Má predomina esmagadoramente sobre a
Personificação-da-Mãe-Boa. O mundo é então visto como mau e persecutório.
Estabelece-se o que Sullivan chama de integração
hostil com o outro. É o contrário do que ocorre com o dinamismo depressivo
onde o analisando, partilhando sua intimidade não com a Mãe-Má, mas sim com a
Mãe-Boa, é especialmente sensível aos sutis sinais de acolhimento e abandono
maternal.
O paranóide não pode ficar sozinho
consigo mesmo, pois nele existe um núcleo de ódio insuportável, um núcleo de
rancor que tem de ser direcionado para fora. Ele necessita de figuras externas
para realizar sua integração hostil. O estar sozinho para o paranóide é uma
situação desesperadora. Nisto ele se assemelha ao depressivo que também
necessita vitalmente de se relacionar, não com a Personificação-Má mas com a
Boa, e difere do esquizóide que tem a
capacidade de ficar sozinho com suas
Personificação-Má e Boa internalizadas e relativamente dissociadas de figuras
externas. Enquanto os dinamismos paranóide e depressivo, são, por assim dizer,
quase continuamente sociáveis, necessitando dirigir-se sem cessar a figuras
fantasmáticas projetadas no mundo (esteja este mundo presente ou não), o esquizóide
é um dinamismo que suporta muito mais a solidão, no sentido de não
necessitar manter uma continuidade de
projeção sobre pessoas significativas.
Com esta introdução podemos voltar
à situação clínica. Lá estão paciente e terapeuta um diante do outro. Qual a
solicitação que o paciente faz ao terapeuta? O que o terapeuta sente ao se
colocar em um estado de disponibilidade para a identificação?
O paranóide deseja e necessita que
o psicanalista o reconheça como inocente, bem-intencionado, honesto, sincero, verdadeiro,
limpo, dotado de extraordinária boa-vontade. Deseja e necessita que o núcleo
reprimido de ódio, rancor, inveja, competitividade, desvalorização, hostilidade
que o constitui seja negado pelo terapeuta assim como ele próprio o nega.
Precisa que o analista aceite suas justificativas quando, ultrapassando
quaisquer de seus sentimentos negativos a barreira da auto-percepção, os
atribui a ataques externos; ele deve continuar limpo, bom e puro e tudo o que
porventura nele apareça que não seja bondade é uma reação a agressões que vêm
de fora.
Pressionado pelos seus sentimentos
inconscientes seria de se esperar que o paranóide, negando-os, projetasse-os na
figura significativa mais próxima: o terapeuta. Nestas circunstâncias só se
poderia esperar do analista assim transformado em Mãe-Má, inveja, agressão,
maldade, má-vontade. Mas, não. O paranóide reserva ao terapeuta uma missão
especial: ser o seu duplo. Esta é uma feliz ocorrência que permitirá o
estabelecimento de uma identificação homóloga permitindo que a relação
analítica se passe em clave covivencial, necessária ao seu tratamento.
Se o psicanalista permanecer
silente, ouvindo e compreendendo - não concordando com a dinâmica
interfantasmática nem com as construções deliróides, mas aceitando-as - aos
poucos, na medida em que trocas sutis em um nível não-verbal se realizam, o paciente fará uma identificação projetiva
com o terapeuta, atribuindo a ele a mesma dinâmica que o move, fazendo dele o
seu espelho. O psicanalista torna-se um homólogo seu, com o mesmo núcleo
ressentido e rancoroso, com os mesmos mecanismos de negação e projeção, com a
mesma concepção de mundo agressivo, ameaçador e persecutório. Realiza-se assim
uma aliança, uma espécie de "folie a deux", onde terapeuta e cliente
reconhecem-se mutuamente inocentes e de boa-fé diante de um mundo mau e
persecutório. "Dois contra o mundo", ou melhor, "o mundo contra
dois", seria o mote desta relação. Estabelecida a identificação homóloga,
consolida-se a transferência e o psicanalista torna-se figura indispensável
(quase) na vida do paciente. O psicanalista tem agora, digamos assim, uma
margem de segurança para intervir verbalmente, mas deverá fazê-lo com extremo
cuidado. A relação homóloga, tributária da díade Mãe-Boa/Filho-Bom é
sobremaneira lábil e facilmente se transforma em Mãe-Má/Filho-Bom.
(Aproveitemos para recordar que no dinamismo depressivo, quando uma frustração
imposta pela Mãe-Analista ameaça desfazer a relação Mãe-Boa/Filho Bom o que
surge é uma interação fantasmática Mãe-Boa/Filho Mau). Mas, voltemos ao
paranóide. O fantasiado ou magnificado núcleo rancoroso do terapeuta dirigido
para o mundo poderia voltar-se contra ele, paciente. Defende-se desta
possibilidade por uma extrema sensibilidade às manifestações do analista,
especialmente àquelas que lhe pareçam ter ou que tenham um laivo de
agressividade, depreciação e crítica. Tendo a Personificação-Boa um aspecto tão
precário, a ponto de, a qualquer momento poder desaparecer para dar lugar à
Personificação-Má, o paciente mantém-se hipervigil em relação ao terapeuta,
exercendo sobre ele um controle minucioso e constante, extremamente atento às
expressões faciais, tonalidade de voz,
construção verbal, manifestações corporais, de modo a poder surpreender,
à grande distância, o aparecimento da Personificação-Má. À ameaça de
aparecimento desta Personificação o paciente desensarilha suas armas
defensivas, mobiliza sua capacidade de controle sobre a conduta do terapeuta. O
modo mais característico do paranóide evitar o aparecimento desta
Personificação é o estabelecimento do que chamei de acordo de cavalheiros: "não fale de minhas mazelas que não
falarei das suas". A grande intimidade do paciente com os aspectos
negativos do ser humano torna-o extraordinariamente sensível aos aspectos
hostis e problemáticos do terapeuta. Alcança, com precisão, os "pontos
fracos" do analista: o que gostaria de não ter, não ser, não ver revelado.
Ao se sentir ameaçado chantegeia-o dando "dicas" de que "está
por dentro" de suas fraquezas e dificuldades e que delas falará se o
terapeuta ousar falar das suas. Com isto espera brecar o trabalho analítico
pois, dentro de sua fantasia de espelho, de identificação homóloga, imagina que
o terapeuta funciona exatamente como ele, e que se sentirá tão ameaçado quanto
ele próprio com a revelação de suas dificuldades. É onde começa a perder a
batalha e a ganhar a cura, pois ao contrário do esperado, o psicanalista irá
admitir as suas fraquezas, colocando o analisando em um dilema que será o
seu Rubicão. Este é um dos lugares em
que o futuro da terapia se decide, pois a dilaceração em que o terapeuta o
coloca é decisiva. Se até aquele ponto a terapia pode ser vivida de uma maneira
não demasiadamente tumultuada agora se impõe uma situação de opção em que,
qualquer que seja a decisão haverá choro e ranger de dentes. Estamos agora em
plena pauta covivencial.
Façamos um rápido retrospecto
desta primeira fase da terapia, o que nos dará o ensejo de, ampliando-a,
preencher algumas lacunas.
A primeira fase da terapia de um
paranóide, aquela em que o analista ainda não se tornou indispensável para o
cliente, em que a identificação projetiva homóloga ainda não está consolidada,
caracteriza-se pela ojeriza do paciente em relação a qualquer contribuição
verbal do terapeuta que não seja de concordância e apoio. A interpretação de
suas dificuldades, o apontamento de seu núcleo desvalorizado e ressentido é
experienciado como um ataque maldoso e destrutivo; esta reação é, na verdade,
uma defesa contra uma ameaça à organização de sua personalidade. Precisando
manter uma parte tão grande de seu psiquismo sob repressão, suas possibilidades
de intimidade se empobrecem, ficando impedido de viver importantes experiências
interpessoais e intersubjetivas. Sua familiaridade com o outro gira em torno da
constelação da Personificação-Má, pouco conhecendo dos aspectos de carinho,
cuidado e acolhimento incondicional (aspectos estes extraordinariamente
familiares ao analisando em dinamismo depressivo). Poderíamos assim dizer, que
seu contacto com o outro, e portanto com o terapeuta, está amputado. Não se
toca no núcleo desvalorizado e rancoroso; mantém-se uma "admiração"
mútua, um reconhecimento mútuo, e o mundo mau que não os compreende e os ataca,
une-os quase que em uma espécie de cruzada.
Aos poucos, a presença de outra
pessoa que o compreende, que não o critica, promove um relaxamento na tensão
contínua em que o paranóide vive. O apoio, a aprovação (fantasiada), a presença
constante, o reconhecimento do terapeuta faz dele uma figura da qual não mais
quer prescindir. Neste momento o terapeuta começa a ensaiar, muito
cuidadosamente, suas interpretações.
Por mais cuidadoso que o terapeuta
seja, a sensitividade do paranóide o fará reagir a certas colocações
(aproximações) suas. Não podemos também ignorar que a arrogância, a
onipotência, a hostilidade, a competitividade do paciente têm o poder de
provocar reações inconscientes no analista que poderão se manifestar, de
maneira sutil, na forma de interpretar. A intervenção verbal do analista
continua problemática, mas já agora apresenta um dilema para o paciente. Ele
deseja um terapeuta onipotente, sem
falhas, sem hostilidade, um terapeuta que seja um perfeito espelho de seu
"eu" imaginado; e o terapeuta está deixando de sê-lo. Mas, neste
ponto da relação, o analisando não pode simplesmente se descartar daquela
pessoa que se tornou tão importante para si. E aí se encontra seu dilema: aceita
ou não a "fraqueza" do terapeuta? Mantém a identificação homóloga ou
dele se diferencia? Coloca-o no rol dos inimigos ou o mantém como amigo?
Transforma-o ou não em Mãe-Má?
A este dilema do paciente
corresponde um dilema do analista. Se se relaxa a ponto de permitir que se
insinuem na sua fala e no seu comportamento as suas "fraquezas" e
"deficiências" arrisca-se a perder o respeito do cliente, que passará
a desdenhá-lo, olhando-o do alto de uma superioridade onipotente; na pior das
hipóteses o paciente nem mais estará lá para mostrar seu desdém. Se mantém o
comportamento interpretativo reforça a fantasia de onipotência de si mesmo e,
por identificação homóloga, do paciente. É preciso que o analista revele seus
"defeitos" para que o analisando comece a aceitar os seus próprios,
conformando-se em abandonar a sua própria onipotência para não perder o
respeito pelo analista, o que significa perder o analista, perder o seu duplo,
perder a si mesmo. Mas tal desvelamento
deverá ser feito em doses homeopáticas, dentro de um "timing"
cuidadoso.
Aqui, cabe uma advertência. O
analista não "resolve" mostrar as suas "fraquezas" de
propósito. Este é um processo que naturalmente acontece na medida em que a
dinâmica da relação se transforma. O analista naturalmente
se coloca no início da relação de uma maneira e, naturalmente,
com a evolução da relação, coloca-se de outra. Podemos dizer que há um
relaxamento natural na qualidade e na quantidade de vigilância automática que o
analista exerce sobre seu próprio comportamento. Numa tentativa de melhor me
fazer compreender, farei uma analogia. Em uma festa formal, em que, por
exemplo, exige-se "traje completo", naturalmente
nós nos comportamos diferentemente que entre amigos em um bar e diferentemente
de como nos comportamos na intimidade de nossas casas. Não depende de uma
decisão consciente, mas de uma adequação natural e automática à situação. O
mesmo ocorre na terapia quando, colocando-nos permeáveis à situação psíquica
interna do paciente, mantendo nossa disponibilidade para a identificação, vamos
mudando nosso comportamento sintonizados com as transformações que vão
ocorrendo no paciente.
Uma vez admitida a
"fraqueza" e portanto franqueado minimamente que seja, o núcleo
desvalorizado, torna-se mais viável o paciente revelar o seu rancor, os seus
sentimentos negativos em relação a figuras significativas que até então tinham
sido preservadas, incluindo-se aí o psicanalista. Pode ocorrer então uma
verdadeira catarse em que todo o ódio, rancor e ressentimento acumulado de uma
vida é lançado em cima do terapeuta. A partir daí, tornam-se possíveis as
intervenções verbais, as interpretações; houve uma ruptura do dinamismo
paranóide, criando-se uma brecha pela qual penetram as interpretações e por
onde se insinuam outros modos de relacionamento, transformando, nos casos mais
felizes, um círculo vicioso fechado e odioso em um movimento espiralado de
caráter mais aberto e benigno, um movimento que se empenha em escapar da
atração exercida pelo automatismo paranóide.
Esta apresentação esquemática é um
precipitado de numerosas experiências vividas com diversos pacientes;
evidentemente, na situação concreta da sessão analítica os acontecimentos são
infinitamente menos cristalinos, mais labirínticos, mais confusos, mais
complexos; não existem dinamismos puros e nem todos os acontecimentos
intersubjetivos e interpessoais podem ser colocados em palavras.
A abstração "dinamismo paranóide" é uma síntese de
experiências vividas, síntese em que os percursos mais importantes do dinamismo
são acentuados até o ponto de uma quase caricatura. Com isto obtemos um
discurso que não é nem uma teoria metapsicológica, nem uma abordagem singular,
mas uma abstração em nível de "teoria clínica".
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