FOLHAS AO VENTO

ESTILO RABISCOS



 
 
 Experiência de Libet – o potencial de prontidão precede de 550 milisegundos a realização do gesto. “A interpretação clássica desse experimento diz que o livre arbítrio, ou seja, a ideia de que nós somos os arquitetos de nossas ações, é uma ilusão e que a consciência é uma espécie de efeito colateral de um processo inconsciente.” Crítica de Schurger: “ Libet argumentava que o nosso cérebro já decide mover-se antes de haver uma intenção consciente. Nós argumentamos que o que parece ser um processo de decisão pré-consciente não é reflexo de uma decisão. Parece ser, mas apenas porque essa é a natureza da atividade cerebral espontânea. Se estivermos certos, o experimento de Libet não fornece nenhuma evidência em desacordo com o livre-arbitrio.”

Minha tentativa de explicação. Um pouco de neurociência especulativa.  Premissa 1: necessidade de aumento da percepção do ambiente. Quanto mais ampla a percepção mais o ser vivo poderá se defender, atacar e sobreviver (Darwin). Poder-se-ia aqui falar de vontade de potência como equivalente a um instinto primário. Imagino então o seguinte. Numa primeira etapa os animais só percebiam o ambiente quando os seus corpos tocavam no ambiente. O ambiente externo ao corpo reagia ou com irritação e então se afastava do fragmento do ambiente no qual por acaso tinha tocado, ou então o introduzia no seu próprio organismo para se alimentar, fosse um fragmento mineral fosse um outro ser vivo que era então decomposto em suas partes (proteína, gordura, açúcar, etc.) Tanto um quanto outro processo só ocorria quando o acaso colocasse a substância viva com um objeto inanimado ou com um ser vivo que então lutava para não ser destruído.  Interessava então à sobrevivência poder perceber o outro, antes de tocá-lo. Desenvolveram-se partes do cérebro que permitiram essa percepção.  Na revista ‘Mente e Cérebro’ de novembro de 2016 aparece a figura de um verme primitivo ao qual foi dado o nome de CAENORHABDITIS ELEGANS. Esse verme se alimenta de bactérias do solo, não tem cérebro nem consciência, mas usa seus reflexos para encontrar comida, procriar e se defender tanto de predadores quanto de lesões.   Imaginemos um jacaré olhando com aqueles olhões. O cérebro se desenvolveu paripasso com o aumento da capacidade de ver. Ou pode-se dizer exatamente o contrario. A necessidade de ver fez com que uma parte do cérebro se desenvolvesse. A capacidade de ver o mundo é concomitante às transformações funcionais. Uma única substância com inúmeros atributos dos quais só percebemos a atributo extensão e o atributo incorporal (mental). (Acho que hoje já se poderia heuristicamente dizer que a Teoria da Relatividade é outro atributo, assim como o é a física quântica ou talvez também as geometrias não-euclidianas, ou a representação do mundo através de equações complicadas inteiramente fora do senso comum.) Voltando aos olhos do jacaré: ele enxerga o que é externo a ele mas não desenvolveu o cérebro para enxergar os seus processos mentais e psíquicos internos. Esta proeza foi realizada pelo homem que desenvolveu uma parte do seu cérebro no sentido de ver o que se passa dentro da mente e da psique. Estou falando principalmente de autoconsciência, ou melhor, de autopercepção. Não se pode separar o desenvolvimento neuronal da conquista mental. Ambas são concomitantes, ocorrem ao mesmo tempo. Voltando ao que eu já disse são dois aspectos de um mesmo fenômeno. No dizer de Spinoza, são atributos da Natureza. Há um crescimento e arranjo cerebral que permite ver não só o externo, o que está fora do ser, como também permite ver o que está acontecendo dentro do próprio cérebromente. Isto através de dois modos: por introspecção e por aparelhos de imagens dinâmicas.   Parto da seguinte premissa: a todo movimento da mente (portanto a todo pensamento) corresponde um movimento dos elementos cerebrais. É necessário que existam certas estruturas, funções e dinâmicas cerebrais para que o animal perceba com os seus órgãos de sentido aquilo que está acontecendo no mundo. A palavra ‘perceba’ poderia ser substituída por ‘consciência’. O primeiro patamar da consciência eu a chamo de ‘consciência da pura ação.’ Num segundo patamar encontramos a consciência reflexiva que é a capacidade mental/cerebral de agir inteligentemente ao resolver algum problema externo sem porém ter consciência de que está resolvendo problemas pois esta última encontra-se no patamar da autoconsciência, privilégio dos humanos que observam seus pensamentos e ações. Darei um exemplo da consciência reflexiva que os animais reflexivos partilham com o ser humano. Um cão foi deixado para trás numa encruzilhada. Ele cheira uma primeira via buscando o cheiro do dono. Não há cheiro. Entra então resolutamente na 2ª via. Estamos diante de uma inteligência ou consciência reflexiva. À sua maneira canina o cão pensou: “se só há dois caminhos e meu dono não passou por este caminho só pode ter seguido pelo outro caminho”. Seu aparato cérebromental permitiu esta percepção/ação sem que percebesse que estava fazendo um raciocínio lógico. Já o homem desenvolveu um cérebromente que lhe permite ter autoconsciência. São modificações cerebrais que ampliam o campo de conhecimento dos seres vivos. Seria possível encontrarmos modificações cerebrais para os chamados fenômenos paranormais? Dentro da premissa colocada por mim a resposta só pode ser positiva. A meditação não é um fenômeno paranormal. Mas está mais próximo desta fronteira. Foram detectadas alterações na dinâmica cerebral nos monges que realizam meditação. Esta última afirmação tira a força do que venho dizendo, mas vale a pena colocá-la para nos afastarmos de acontecimentos milagrosos ou excepcionais, pois os bons motoristas de taxi londrinos têm o córtex temporal ou parietal aumentado em comparação com a população não taxista e taxistas incompetentes. Preservamos assim a ideia de uma evolução cerebral/mental que talvez dê pulos, mas não são campeões de salto à distância.

                                                              Nahman Armony


TRANSFORMAÇÕES DO Q

PROCESSO PRIMÁRIO – A Q (a quantidade, a energia, a catexia, a libido, etc.) flui livre pelo sistema nervoso. De início sem nenhum objetivo a não ser descarregar a energia. O descarregar da energia Freud chamou de função primaria do sistema nervoso.

Mas certas redes nervosas provocam dor e outras provocam prazer. O cérebro/psique tem de logo aprender o ‘principio do prazer’ para evitar o desaparecimento do organismo. A corrente cria trilhas de prazer onde o objeto bom será achado e trilhas de desprazer onde o objeto mau será evitado. Esta é a função secundária do processo primário. Com a evolução, ego tornando-se cada vez mais forte e estruturado evolui para um sistema de simbolização de 2º grau. Exp.: a hóstia católica e a hóstia protestante.

Processo primário/função primária -  caos.

Processo primário/função secundaria – principio do prazer/desprazer. Os fluxos nervosos buscam objetos que darão prazer e evita os que provocam desprazer.

Processo secundário – ego bem estruturado. Função simbólica de 2º grau. Ex. da hóstia.

 

 

Ego- um grupo de neurônios super catexizados entre si tendo por isso mesmo uma grande força atrativa sobre os Qs, sobre os fluxos. Dificilmente esses fluxos escapam da armadilha egóica.

Acho—existe um superego profundamente ligado ao ego que diz como a pessoa deve se comportar. Mais adequado seria chamá-lo de ego ideal e, dependendo das circunstâncias de ideal do ego. Ele funciona com espontaneidade, sem necessidade de uma auto-observação. Mas existe um segundo superego que fiscaliza o superego embutido no ego para liberá-lo para a ação. Esse fato torna mais vagarosa a ação. No primeiro superego não há fiscalização, pois as correntes energéticas procuram repetir as vias de prazer. O segundo superego existe para avaliar se existe perigo na ação espontânea.     

CRIATIVIDADE E SAÚDE PSÍQUICA EM FREUD E WINNICOTT

       Tanto para Freud como para Winnicott há uma íntima relação entre criatividade – uma qualidade da pessoa criativa --- e saúde psíquica. São, porém duas concepções diferentes.

Freud usa a palavra “criativo” no sentido comum: a produção de algo novo. É o significado dicionarizado.

Para Winnicott criatividade significa “criar o que já existe” o que aparentemente contraria a ideia de novo. O objeto subjetivamente concebido é encontrado no objeto objetivamente concebido. O objeto já existe e, portanto fica impossível dizer que ele foi criado. No entanto há algo novo, pois a percepção individual do objeto o transforma. É um processo de recriação. Cada sujeito recriará o objeto à sua maneira. Esta concepção de criatividade não substitui a comum. Não só há uma convivência destas duas significações, mas também um elo. A verdadeira criação de um novo objeto só se dá no encontro do subjetivamente concebido com um objeto virtualmente ou potencialmente existente. Um precursor desse processo nós o podemos encontrar no objeto indefinido criado pela primeira fome do bebê que busca um seio que neste início é virtual. Assim como podemos dizer que o seio precisava aparecer para o bebê, também podemos dizer que a civilização em certo momento precisava da invenção da internet, que o mundo necessitava do aparecimento da música de um Beethoven, ou da “Sagração da Primavera” de Stravinsky. É a criação de um objeto já virtualmente existente na comunidade humana. Um exemplo mais forte é o da criação de lanças pontudas já virtualmente existentes antes de sua materialização. Por outro lado o objeto já concretamente existente passa por uma transformação quando percebido por diferentes subjetividades; ele é renovado através de uma recriação.

Vamos nos deter no dito “criar o que já existe”. O desenvolvimento desta sentença nos mostrará de que forma Winnicott liga a criatividade à saúde psíquica. Vamos então devagar. Comecemos pelo bebê que tem fome. Esta fome faz com que o psiquismo crie um objeto que ele achará no mundo real: o seio. Sendo o seio uma criação sua este seio lhe pertence e ele se sente indissoluvelmente ligado ao seio. O mesmo processo ocorre quando ele inventa o objeto transicional que substitui o seio e a mãe quando ausentes. O objeto transicional aparece juntamente com o espaço potencial. Ele cria e habita o espaço transicional. O espaço potencial só existe com o objeto transicional e o objeto transicional só existe com o espaço potencial. Pois bem, quando o objeto subjetivamente concebido cria o objeto objetivamente percebido este último é vivenciado como pertencente ao sujeito já que foi ele quem o criou. Digamos que após três horas de uma mamada o bebê ainda não esteja com fome não se formando no seu psiquismo o objeto subjetivo seio. Se uma mãe excessivamente apegada a esquemas força o seio na boca do bebê, este seio não será uma criação do bebê e ele sentirá que o seio não lhe pertence, não faz parte de seu mundo. Sua relação com este seio será puramente intelectual, uma relação falso self. Se da mesma maneira outros objetos são impostos ao ser humano o mundo ficará intelectualizado, perderá seu componente afetivo. Diante da invasão o verdadeiro self se recolherá e a relação com o mundo se dará através do falso self. Uma dissociação entre o falso e verdadeiro self provocará um sentimento de futilidade que leva a um intenso sofrimento que poderá chegar ao suicídio. É, portanto, a criatividade que permite que o ser humano se sinta inserido na sociedade, pois essa sociedade foi por ele criada quando do encontro do subjetivamente concebido com o objetivamente percebido. A criatividade faz parte daquilo que Winnicott chama de “força vital” que é o correspondente ao conceito de pulsão de vida de Freud. A criatividade como parte da força vital não sofre transformações. Na primeira tópica Freud considera que a capacidade de criar depende da sublimação; esta se dá por uma neutralização da força libidinal que então pode ser usada para outras finalidades que não a sexual. Portanto há um balanço entre a sexualidade e a criatividade. Se ganha criatividade à custa da sexualidade e vice-versa. Diferentemente do pensamento winnicottiano onde a criatividade é independente da sexualidade. E, na minha opinião que vem de minhas observações, as pessoas de grande força vital têm ao mesmo tempo uma forte sexualidade e uma forte criatividade. Esta força vital e portanto, a criatividade se manifestam diretamente nos atos e pensamentos. Diferentemente de Freud que considera a capacidade de criar como uma transformação da libido sexual em uma força neutra (sublimação) que então poderá ser usada para fins não sexuais.       

 Para Freud a libido sexual pode sofrer vários destinos. O único destino saudável é a sublimação. O que é a sublimação para Freud? É a transformação da libido sexual em libido neutra que então pode ser utilizada criativamente para as realizações humanas. Assim, para ser criativo é preciso perder uma parte da libido sexual. O ego é a instância encarregada de transformar parte da energia sexual em energia neutra. Portanto a criatividade para Freud não é primária, mas consequência de um processo psíquico sobre o que seria primário: a sexualidade. Aqui não resisto a fazer uma correlação do vivido pelo psicanalista e sua teoria. É voz corrente que Freud permanecia até a madrugada pensando, estudando e escrevendo. Para permanecer acordado e aguçar a inteligência usava cocaína numa época em que ainda não se conheciam os efeitos deletérios dessa substância. E corre também um boato de que a partir dos 40 anos Freud deixou de ter relações sexuais. Se tudo isto é verdade mais uma vez se comprova a tese de que a teoria tem a ver com a vida e personalidade do teorizador. Freud teria renunciado a sua sexualidade em favor de sua obra. A libido sexual transformava-se em libido neutra direcionada por Freud para suas elaborações teóricas. Frase de Freud em Leonardo da Vinci, v.11: “Constatamos a veracidade deste fato se ocorrer uma atrofia estranha durante a vida sexual da maturidade, como se uma parcela da atividade sexual houvesse sido agora substituída pela atividade do impulso dominante”. Esta frase foi escrita em 1908, portanto na vigência da dualidade sexualidade x conservação. Joel Birman escreve que na dualidade que passa a vigorar a partir de 1920, pulsão de vida x pulsão de morte a sublimação já não aparece como sendo feita com o sacrifício da sexualidade. No entanto lemos no trabalho “O Ego e o Id”, v.19 de 1924, (portanto em plena vigência da pulsão de morte), no cap.III intitulado “O Ego e o Superego” que “Em verdade, surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se efetua através da mediação do ego, que começa por transformar a libido objetal sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo.” Não é mais a neutralização da libido sexual, mas a transformação do libido objetal sexual em libido narcísica. Em 1932, na Conferência 32 Freud reafirma a vinculação entre as pulsões dizendo que uma pulsão pode ser substituída por outra. Está implícita a vinculação das pulsões. O aumento da força de uma implica em um decréscimo na força da outra.

À diferença de Freud, para Winnicott a criatividade manifesta-se diretamente, sem ter de passar por transformações libidinais. Ela é pura energia de vida, ou como ele diz, é parte da força vital, algo primário, indomável, comum a todos os seres humanos.

                                                                                                              Nahman Armony

                                                                                             

 

 

QUAL É O TEMPO QUE O TEMPO TEM?

Estamos em um período de transição. Tudo é questionável, modificável. Enquanto as gerações mais jovens têm maior facilidade em se adaptar, as mais velhas veem-se diante de obstáculos difíceis de ultrapassar. Assim é com a semi-abstração ‘TEMPO’. Na atualidade o nosso primeiro tempo ainda é o de brincar. Ao brincar o tempo desaparece; deixa de existir como tempo e passa a existir como prazer, como ilha encantada, como paraíso.

No segundo tempo quebra-se a uniformidade e a continuidade do tempo. Esse segundo tempo é o do dever, da obrigação. É quando o tempo faz a sua aparição.

Será então preciso começar a nele pensar e, mais tarde a nele se preocupar. Os primeiros contatos e contratos com os futuros tufões temporais serão benignos. São apenas chuviscos refrescantes. É dada à pessoa um tempo razoável, apropriado à velocidade singular humana, para terminar ou pontuar alguma tarefa. O tempo permanece tranquilo. Não é preciso correr mais que o tempo para realizar a tarefa, pois há uma adequação entre tempo e realização. Vários fatores porém quebram este equilíbrio: certas tarefas só podem ser realizadas se a velocidade de feitura ultrapassar o tempo de brincar – o tempo descompromissado e por isso mesmo não existente. Quando vemos a humanidade disputando os 100 m. ou 1000 m. com obstáculos percebemos que estamos tentando correr mais rápido que o tempo, exigindo uma modificação da velocidade dos tecidos e dos líquidos corporais que lutam pela singularidade da pessoa. Por algum tempo o organismo mantém o seu ritmo mas, finalmente cede à  força da cultura, da mentalidade reinante, não conseguindo resistir. Temos agora mais um robot, um boneco sem vontade que tentará obedecer o ritmo imposto pelo social que de inicio se insinua parecendo poder ser controlado e finalmente passa a ser uma força poderosa de seu pensamento e comportamento.  Tudo isso se passa de uma subjetividade social que força a barra para um comportamento acelerado, acima do limite temporal. Exigimos então que o tempo corra mais depressa. Vemos então multidões se atropelando para não perder o tempo e sua posição social. O tempo urge e ruge como um leão raivoso e aqueles que não abrem mão de sua singularidade, atrasam-se em relação ao tempo que lhes é dado pela Sociedade, pelo Estado e pelos Costumes.  O Ser Humano ruge como leão e debate-se como um touro, para se manter precariamente na cacunda do touro, a espera de tempos mais acordes com as capacidades humanas de tarefas e fruições. Ao ser forçado a participar da correria o ser humano que tem o seu tempo próprio e que dele não abre mão, vai-se atrasando em relação ao tempo que lhe é dado pelo Estado e pela Sociedade. Preserva o seu tempo mas perde o seu lugar.. Começa então a se forçar a correr. Por enquanto a pressa não é coisa dele: é coisa dos costumes. Ele tem seu tempo, a sociedade tem outro tempo e tudo estaria bem se não houvessem prazos para o cumprimentos de obrigações. Torna-se cada vez mais difícil manter o tempo pessoal autêntico. A pessoa passa a transferir a pressa não à tarefa, mas ao corpo próprio incorporando a pressa ao organismo. Temos agora um tempo acelerado interno. A velocidade maquínica impôs-se e agora as pessoas correm mesmo quando isso não é necessário. A velocidade torna-se interna e a aflição de ‘chegar lá’ já não depende do ambiente externo; depende do próprio funcionamento de órgãos que trabalham febrilmente. Não é uma pressa com objetivo. É agora uma pressa estrutural. Antes era: devo correr para entregar em tempo o trabalho. Com o tempo a frase muda para “Devo correr para poder viver nessa sociedade.” O resultado disso são ansiedades, depressões, distúrbios psicossomáticos, incômodos, sofrimentos vários que afetam a maioria da população, criando uma espécie de irmandade.
Ainda tenho tempo de acrescentar um dito que para mim é esclarecedor e que ofereço aos leitores: uma coisa é correr depressa e outra coisa é correr com pressa. A primeira parte da frase fala de uma rapidez tranquila, uma rapidez que não exige uma transmutação funcional; a segunda fala de uma alteração corporal, psíquica, metabólica e esta sim transforma um corpo/mente tranquilo em um corpo/mente agitado.     

 

                                                     Nahman Armony    

 

 

 

    

 

 

    

 

 

 

                                                     

 

 

 

Winnicott

 

            Vou começar recontando uma pequena história de Winnicott relatada por Susan Isaacs. Os filhos de um colega escandinavo que não falavam inglês, haviam estado com Winnicott quando tinham seus dois e quatro anos; anos depois, ao saberem que o veriam de novo, ficaram entusiasmados. Confrontados com o fato de que não tinham falado a mesma lingua, não puderam acreditar neste fato, tão viva e intensa tinha sido a comunicação entre eles.

            Winnicot foi um mestre da comunicação não só verbal mas também da não verbal. Isto o introduz, de chofre, no seio da assim chamada pós-modernidade, onde impera a crise da representação e portanto a crise da palavra representacional, o que ele tão bem expressou no seu confronto das maneiras católica e protestante de experienciar a cerimônia da comunhão. Sua capacidade de se comunicar através de afecções e não de representações está de acordo com toda uma teorização dos autores que se dedicam ao estudo do pós-modernismo. Estes autores falam justamente de uma comunicação não-mediada, de uma comunicação direta, onde o sensorial, o movimento, a expressão corporal e emocional, a postura, o gestual, a atitudinal, ganham a maior importância.

            Por suas características pessoais, por ter nascido na época em que nasceu e por ter tido a infância que teve, Winnicott não pode deixar de ser um inovador, um homem de trânsito entre o moderno e o pós-moderno.

            Winnicot teve pouco pai e muitas mães o que já poderia encaminhá-lo para uma sensibilidade especial para a relação dual. E realmente, seu principal objeto de estudo é a unidade dual mãe-filho, com a qual empatiza e à qual compreende por intuição. É em cima desta experiência que ele construiu o original de sua teoria: o espaço potencial e o objeto transicional. Esta relação remete a uma episteme não mais representacional mas já afeccional. Vemos então Winnicott antecipando em seus escritos as grandes linhas da lógica contemporânea: o paradoxo, a complexidade, a intuição, a valorização de uma experiência que escapa às palavras, o brincar, a esquiva às formalizações, a fluidez de limites, etc. Ele mesmo era um ser paradoxal, sabia-se paradoxal e aceitava-se paradoxal. Uma de suas afirmações, sobejamente conhecida, mais ou menos assim formulada “Sou psicanalista enquanto a psicanálise ajuda o meu paciente; caso contrário sou qualquer outra coisa que ele necessite” é uma frase que pode ser encarada como transdisciplinar. Existe um objeto total a ser ajudado (e não um recorte da realidade, um objeto criado pela psicanálise ou situação analítica), um objeto que em sua essência não pode ser aprisionado em nenhuma teoria e ao qual se deverá chegar pelos mais diversos caminhos convergentes. Um ser inapreensível pela palavra e que necessitará de intuição para ser compreendido.

            Mas, devo também rapidamente falar da vida de Winnicott. Nascido em 7 de abril de 1896 em Plymouth, Inglaterra, no seio de uma família abastada, em um período de relativa paz, estabilidade e prosperidade, teve uma infância tranqüila, “plenamente envolvido por mães e virtualmente privado de pai” (D.W.Winnicott: a biographical portrait de Brett Kahr). Cresceu em um ambiente de estabilidade emocional só empanada pelas periódicas depressões da mãe. Músico talentoso, bom cantor, fez do piano um companheiro para o resto de sua vida. Estudou medicina e dedicou-se à pediatria. Seu modo psicossomático de aproximação às questões infantis e à relação mãe-filho logo o encaminhou para a psicanálise. Com presumíveis problemas na área da sexualidade, fez 10 anos de análise com James Strachey, de 1924 a 1933. Foi o primeiro analista homem de crianças. Começou sua clínica psicanalítica privada em 1924. Fez supervisão com Melanie Klein, de 1935 a 1941, seis anos aproximadamente. Fez uma segunda análise com Joan Riviere durante cinco anos. Tornou-se um clínico respeitado mas, como pensador independente, encontrou dificuldades para ver aceitas suas idéias originais sobre teoria e clínica psicanalítica. Finalmente sua influência se consolidou e tornou-se o membro mais eminente do midlle group, um grupo independente que não era tributário nem de Melanie Klein nem de Anna Freud.  Casa-se uma primeira vez com Alice em 1923, uma mulher sujeita a depressões. Separa-se dela em 1949, e dois anos após casa-se uma segunda vez com Clare. Seu segundo casamento foi o que se pode chamar de um casamento feliz. Winnicott teve problemas coronários desde 1948, ano da morte de seu pai, e veio a falecer de doença cardíaca em 1971.

            Winnicott não teve filhos. Foi um homem extremamente generoso, uma generosidade que se manifestava na ajuda aos colegas, na assistência prestada até o fim da vida da ex-esposa, no estímulo aos novos analistas, e no seu esforço de traduzir a teoria psicanalítica em uma linguagem acessível a todas as pessoas, escrevendo e falando para os mais diversos grupos de pessoas, inclusive em programas radiofônicos. 

            Sua obra vem sendo cada vez mais estudada em diversos campos disciplinares o que nos revela a face genial de um homem que não tinha tal pretensão. É possível que algum dia seja ele colocado no panteón dos grandes inovadores do pensamento humano.           

 

WINNICOTT E A CRIATIVIDADE PRIMÁRIA


Winnicott nos fala de uma criatividade primária. Seria uma criatividade que surgiria a partir da subjetividade pura, ainda sem objeto. Um bebê com fome tem uma sensação física. Esta sensação física vem acompanhada da uma atávica intuição de que existe um objeto que poderá aliviar esta fome. É uma sensação vaga, nebulosa que vai se delineando cada vez mais claramente na medida em que as experiências de mamada se repetem. Usando uma linguagem fotográfica, a resolução é cada vez mais nítida. O objeto que se vai delineando, a princípio não tem existência própria. É criação e parte do bebê, pois o bebê ainda não tem noção  de eu e outro. Mas ao mesmo tempo em que o objeto seio/mãe/circunstâncias vai se tornando mais nítido o bebê começa a distinguir o eu do não-eu até o ponto de criar para si o objeto e o espaço transicional. O mesmo objeto que era apenas um paninho encostado no rosto, deixa de ser apenas um paninho e vai se transformando em  um objeto transicional externo e interno ao mesmo tempo. Pois bem, enquanto o objeto é apenas subjetivo, não havendo pois uma distinção entre eu e não-eu, a criatividade é chamada de primária. Portanto a  criatividade primária tem a ver, conceitualmente com subjetividade pura. Como estava dizendo acima a dor da fome sofre uma “elaboração imaginativa de função” e aparece como aquela sensação vaga e indefinida de existir um objeto que corresponde à fome. Quando surge o seio o bebê dirá “Ah aqui está o objeto que eu elaborei imaginativamente a partir da função digestiva”. A sensação vaga é elaboração imaginativa de função que recebe um reforço com o aparecimento do seio, mas que do ponto  de vista do bebê continua a ser uma elaboração imaginativa da função digestiva. Só quando ele distingue o eu do não-eu, o aperfeiçoamento da figura do seio deixa de ser apenas elaboração  imaginativa de função para ser também uma tomada de conhecimento do mundo exterior. Como o seio continua investido de fantasias o objeto seio continua sendo subjetivamente concebido ao mesmo tempo que objetivamente percebido. Há uma junção aqui do subjetivo com o objetivo.

O outro tipo de criatividade tem origem no espaço potencial. E aqui criatividade tem a ver com contacto vivo com o mundo externo. Significa dar um sentido à vida. Significa sentir que o mundo lhe pertence e que ele pertence ao mundo. Esta sensação tem seu precursor na dependência absoluta onde o bebê tem a experiência de onipotência, sendo onipotentemente o mundo. Sua segunda etapa nós a encontramos na experiência de transicionalidade, de espaço, objeto e fenômenos transicionais, onde ele já reconhece a realidade externa (objeto objetivamente percebido), mas impregna este objeto de subjetividade (ursinho, etc.) Enquanto protegido pelos pais e enquanto intelectualmente imaturo, predomina o subjetivamente concebido. Aos poucos a objetividade torna-se uma necessidade e encontram-se várias formas de mistura e convivência do subjetivamente concebido e objetivamente percebido. Formas estas às quais eu já me referi acima.

A criatividade depende de uma mãe suficientemente boa capaz de um holding adequado, isto é, um holding que permita ao bebê aceder ao espaço transicional. Eu já disse que o holding é uma nova maneira de viver e ver a vida, uma nova perspectiva, diferente do autoritarismo, dever, imposição, falso self, etc. Juntamente com o holding temos a espontaneidade, o espaço transicional, o verdadeiro self.

Jan Abram no seu livro “A Linguagem de Winnicott” adverte que o “ato criativo (como o pintar, o dançar, etc.) não é um sinônimo de viver criativamente. O viver criativamente tem mais a ver com a força vital que lança mão dos instintos para tornar-se um objeto ontologicamente presente no mundo. Esses instintos evocados pela força vital dão existência ao viver criativo. O viver criativo tem a ver com um sentimento de pertencimento ao mundo; tem também a ver com a capacidade de encontrar a poesia e a arte na coisas mais simples existentes no Universo. Isso fica muito claro no filme Paterson onde um simples objeto inanimado é olhado cuidadosamente, intensamente, ganhando uma  aura                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 divinal
que é pura poesia. ‘A criatividade primária apresenta-se como um impulso inato que se dirige à saúde’ (frase de Jan Abram referida à teorização winnicottiana). Ao impregnar um objeto ou um fenômeno de criatividade primária estaremos na vigência do que Winnicott chama simplesmente de ‘criatividade’.
                                                  Nahman Armony

  

 

AUSÊNCIA E PRESENÇA DE UM SENTIMENTO DE CULPA

Comentários sobre o texto “Ausência e Presença de um sentimento de culpa”  de Winnicott (Livro: Explorações psicanalíticas, p.129)

 

É um texto muito condensado. Dá a impressão de que Winnicott o escreveu para si mesmo motivado pelo desejo de compreender as razões de um erro que ele teria cometido. Um rascunho guardado para um aproveitamento futuro. Esta poderia ser a razão das dificuldades que o texto apresentou para mim. Certas passagens exigiram dedicação para serem decifrados. E não sei se minha leitura é fiel ao que Winnicott tentou transmitir. Mas, certamente houve trechos que ou não entendi, ou não fizeram sentido para mim. Talvez nas releituras eu venha a compreender o sentido e o encadeamento daquilo que não me foi possível compreender e concatenar nesta primeira abordagem do texto.

Caso 1- o que para mim é novo: frase: “tentar sentir-se culpada, sem nunca conseguir”(p.131). Para que sentir-se culpada? E por que ela não conseguia sentir-se culpada?

Tento responder à primeira pergunta: infiro que Winnicott refere-se à fase depressiva caracterizada pela culpa, fase esta necessária para que o ser humano possa chegar à maturidade, isto é, para que entre na fase “em direção à independência”.

Tentando agora responder à 2ª pergunta: por que há pacientes que não conseguem sentirem-se culpados se essa é uma etapa que naturalmente acontece no desenvolvimento sadio? Minha resposta: porque era uma retaliação que se justificava já que ela era “abominável”.  

A falha que Winnicott se atribui foi ele ter falado sobre preocupações pessoais ao paciente. Winnicott: “...caí nesta armadilha e eventualmente, em um estado de anseio por ter alguém com quem falar a respeito de mim, fiz uma ou duas referências a preocupações alternativas minhas”(p.130). A paciente ainda não estava preparada para desidealizar seu analista. “Se me fosse permitido simplificar um pouco, poderia dizer que o que fiz de errado foi exatamente equivalente ao que a mãe dela fez ao ficar grávida e dessa maneira interromper o relacionamento de filha única”(130). A paciente sentiu a falha do analista como um merecido abandono retaliatório porque ela era “abominável”. Citando: “Esta paciente entrou em um estado em que sentia que tinha de ser abominável. Ninguém teria possibilidade de fazer esse tipo de coisas exceto em reação a alguma horrível qualidade nela que levava todos a fazer o pior.”(p.130) Minha observação: portanto o ataque do analista era culpa dela. Do ponto de vista de um observador objetivo um falsa culpa. O seu analista falhar, tão bem aceito no consciente, revelou-se absolutamente inconcebível no Inconsciente. Sendo inconcebível, estaria fora de sua área de onipotência, a não ser que ela apelasse (como fez) para uma fantasia de ser uma Geny indigna, merecedora do desprezo de todos. Com esse sentimento ela enquadrou o ataque de Winnicott na sua área de onipotência. Citação de Winnicott: “O meu fracasso, portanto, foi algo que ela teve de tentar trazer para dentro da área de sua própria onipotência, e só poderia fazer isso por conhecer muito bem suas próprias ideias horríveis ideias e impulsos, sentir-se culpada e, desta maneira, explicar o que eu havia dito em termos de retribuição”(p.130).

Acredito que se possa dizer que seu ataque a si mesma era um ataque ao analista. Quando tudo corre bem, atacar o analista pode ser saudável. É o caso do amor primitivo que é voraz, que pretende devorar o objeto, assimilando-o. Citando Winnicott: “Trata-se de algo que pode desenvolver-se em comer e em ideias de incorporar aquilo que é valorizado”(ibid).

O sentimento de culpa que se manifestava pela extrema abjeção não era saudável; era um sentimento de culpa destrutivo. O sentimento de culpa saudável, construtivo é aquele que tem como referência o amor primitivo com seus componentes de amor e ódio. Quando Winnicott fala de ausência de sentimento de culpa é da ausência de culpa saudável que ele está falando. O sentimento de culpa saudável é aquele considerado como existente. E repetindo: falar de sentimento de culpa não saudável é o mesmo que falar de ausência de sentimento de culpa. A paciente procurava sentir-se culpada (no seu sentido saudável) mas não conseguia. Última citação: “Falhando-lhe, fiz o que os pais dela haviam feito, e a sua mãe fazer-lhe isto tão cedo lhe proporcionou uma vida inteira de tentar sentir-se culpada, sem nunca conseguir”(p.131).

Caso 2 –

1-  É interessante notar que ao falar da paciente Winnicott fala de esquizofrenia potencial, esquizoidia e neurose.   

2-  Ela valoriza a parte esquizóide de sua personalidade o que significa que ela se coloca em extremos e tem uma convicção inabalável de que está certa e o outro incontestavelmente errado. Winnicott: “Há um certo tipo de idealização que é essencial para o seu bem-estar”(p.131). Ela imagina encontrar o ‘homem certo’. Em outro sentido ela se acha sempre certa: “Revela-se, contudo, que todo o seu padrão de vida é determinado por um senso de valores absolutos”(132).  Sendo uma borderline muito inteligente, sua convicção e persistência acabam por fazer o oponente desistir. Winnicott: “Um dos resultados disto é que a sua doença tende a permitir-lhe alcançar o que quer e ela é inteligente o bastante para fazer funcionar isto em grau espantoso”(p.131). Esta capacidade mantém sua dinâmica dicotômica fascista e é indispensável para seu equilíbrio psíquico. Winnicott: “Com esta paciente, não existe dúvida, o julgamento é imediato”(p.132). Aquilo que ela pensa é a verdade absoluta. E tem de ser, pois faz parte de seu equilíbrio psíquico. Winnicott: “Sente que preferiria ficar doente o resto da vida do que ficar bem se isso significasse aceitar a conciliação”(p.131). O acordo, a conciliação significa para ela uma traição a si mesma e a lança numa culpa esmagadora. Esta intensidade culposa aconteceu quando apareceu a hipótese dela estar grávida. Ela que vinha lentamente aceitando o amor do um homem deu um jeito de conseguir gradualmente o término da relação porque ele não era o Homem Certo e ela só casaria com alguém que correspondesse à sua fantasia de ‘Homem Certo’. Winnicott: “O fato é que a pessoa certa teria sido um homem do passado”(p.131); seria o seu pai “alguém que apareceria em sua vida por causa do amor de sua mãe pelo seu homem”(p.132). Mas seus pais tinham falhado tanto na relação conjugal como na relação direta com ela. Seu pai “quisera um menino e nunca tivera muito interesse por ela como menina”(p.132). Com a sua mãe “seu relacionamento...era deficiente”. E temos ainda mais um fator: quando aborrecida com a mãe buscava conforto no seu pai, não o encontrando, pois ele também tinha dificuldades com ela. Não pôde pois viver uma fantasia de amor perfeito com o pai e o que  ela procura não é “um parceiro para casar mas sim [procura] o que perdeu, o primeiro caso amoroso dentro da família”(p.132). É claro que o tabu de que se fala aqui é o tabu do incesto. Por todas estas razões ela não poderia ter um filho com o pretendente e a gravidez deixou-a muito culpada porque na sua concepção de perfeição absoluta ela não poderia se deixar engravidar. O sentimento de culpa tinha a ver dela não corresponder ao seu ideal de perfeição: “Estou fornecendo isto como ilustração do tipo de senso de culpa que é muito arrebatado e pertence à catástrofe da traição de si”(p.132). Na citação seguinte vemos Winnicott devaneando com uma evolução quimérica dessa paciente:   “Imagino que se ela ficar bem, será capaz de viver entre tudo o que é sórdido, como a maioria de nós tem de fazer, mas se pode ver que esta paciente não pode olhar para o futuro e dizer: --- Quero ficar bem, exatamente por causa desta perda de coisas sagradas, em troca de algo que será feio, mal-ajambrado e sórdido”(p.132).

O sagrado aqui é o que ela pensa do mundo, de si, dos outros, do mundo. Enfim, são as suas irredutíveis convicções pessoais.

 

                                  Nahman Armony           

                     

 

        
WINNICOTT – O SELF E O EGO
 
 
                                    Anotações dispersas.

                                           Um estudo
 
 
 
Citação retirada do “Explorações Psicanalíticas”  parte 19, redigido em julho de 1964,  p.81:
         “Não é possível fornecer uma resposta direta à pergunta: o bebê possui um ego, desde o início? A razão para tal é que, de começo, o ego do bebê é, ao mesmo tempo, débil e poderoso. É débil ao extremo se não existe um meio ambiente facilitador satisfatório. Em quase todos os casos, contudo a mãe ou a figura materna fornecem apoio ao ego, e, se ela faz isso de modo suficientemente bom, o ego de bebê é muito forte e possui sua própria organização. A mãe é capaz de proporcionar este apoio ao ego mediante sua capacidade e disposição de identificar-se tempo rariamente com o seu bebê.
         É importante distinguir entre a capacidade que uma mãe tem de identificar-se com seu bebê, mantendo, naturalmente, sua própria autonomia, e o estado, próprio ao bebê, de não haver ainda emergido da dependência absoluta. É só gradualmente que ele separa o não-eu  do eu, e um estágio importante de desenvolvimento emocional ocorre quando o bebê torna-se capaz de reconhecer  o fato da dependência e conseguir ter um self que é apenas relativamente dependente – ao invés de absolutamente dependente – do estado temporário da mãe em que ela se conluia com o bebê, de maneira que este tem, por causa do conluio dela, um ego, uma organização do ego e um certo grau de força e elasticidade do ego. 
         Comentário: Creio que o self existe desde o início da vida como um impulso singular para o desenvolvimento e expansão. Seria uma espécie de id, só que à diferença desse, que é impessoal, teria uma especificidade, uma singularidade, uma ipseidade. Aquilo que Winnicott chama de núcleo do verdadeiro self seria o repositório dessa ipseidade. Esse núcleo é inabordável (creio que o incomunicável de Winnicott deva ser lido como inabordável, incorruptível). O self é pois impulsão para a vida, para a expansão, para a conquista de novos territórios. Já o ego refere-se ao aspecto do lidar com o ambiente de modo a nele sobreviver da melhor maneira possível. O ego tem uma filiação darwiniana (adaptação) e o self uma filiação nietzschiana (vontade de potência, expansão). Comentário 2: há portanto uma interpretação minha diferente do pensamento de Winnicott     
 
Do mesmo livro no. 8 IDÉIAS E DEFININIÇÕES: “O Self falso. O self verdadeiro – estes termos são utilizados na descrição de uma organização defensiva na qual se da uma, etc. [ o que eu entendo é que o falso self “é semelhante à função do Ego, voltado para o mundo, entre o Id e a realidade externa”. (p.36)
Winnicott diz: “Self verdadeiro ou fonte de impulsos pessoais” (p.36)
Winnicott fala de “self falso complacente” onde outros autores, diz ele, falam de Ego Observador(p.36). Concluo que o falso self aproxima-se conceitualmente do ego e o verdadeiro self do id. “A espontaneidade e o impulso real só podem provir do self verdadeiro e, para que isto aconteça, alguém precisa assumir as funções do self falso”(p.36) Todas as citações teriam sido escritas no começo  da década de 50, o que eu duvido. Qual a função do falso self? Defender o verdadeiro self. Defender a integridade. Defender o verdadeiro self das invasões externas. Parece uma função egóica, de preservação da personalidade, ou da individualidade.  
 
 
 
HOJE, NO DIA 25/10/99 PENSO O SEGUINTE:
         Podemos inventar um self potencial e um self consciente de si mesmo. Haveria um self desde um teórico início intra-uterino; seria o impulso à vida, que inclui o crescimento, a diferenciação e integração célular, formação dos tecidos, seria o impulso à realização, ao crescimento, à expansão que evidentemente dependem de um ambiente suficientemente bom, mas também dependem da potencialidade do bebê. Em “Recordações do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade” de 1949 (Livro: “Da Pediatria à Psicanálise Winnicott fala de um self existente em ato antes do nascimento(p .235). Mais adiante parece falar de um self potencial que precede o self consciente de si mesmo.
         De qualquer forma este self, no seu caminho de expansão, precisa inventar funções que o ajudem a lidar com a realidade sem que ele perca o impulso de expansão. O self então inventa a função egóica, a função superegóica, etc. 
 
  • Podemos igualar o self ao potencial hereditário em processo de maturação. Se não houver uma intrusão do ambiente esse potencial hereditário poderá processar-se dentro de uma continuidade de ser.
  • O self tem um aspecto pessoal que o id não tem. A fome seria um atributo do id enquanto que a maneira da fome se manifestar, diferente para cada criança, seria uma manifestação do self que de início estaria referido ao potencial hereditário em expansão mas que poderia ser modificado por ação do ambiente.
     
     
    22- Do livro “O Brincar e a Realidade” capítulo V “A criatividade e suas origens”: “2- Examinei os elementos masculino e feminino artificialmente dissecados e descobri que associo por enquanto o impulso relacionado a objetos (e também a voz passiva disso) ao elemento masculino, enquanto postulo que a característica do elemento feminino no contexto da relação de objeto é a identidade, concedendo à criança base para ser, e depois, mais tarde, uma base para o sentimento do eu (self). Acredito que é aqui, na dependência absoluta da provisão materna, daquela qualidade especial pela qual a mãe atende, ou deixa de atender ao funcioname nto mais primitivo do elemento feminino, que podemos buscar o fundamento da experiência de ser”(p.120).
     
    Do livro “Da Pediatria à Psicanálise”. Artigo: “Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro  do setting psicanalítico” : “Ao se recuperar da regressão, o paciente, com o self agora mais completamente rendido ao ego, necessita da análise comum...”(p.480).
     
    Do artigo “Relação paterno-infantil” do livro “O ambiente e os processos de maturação”: “...como eventualmente o ego do lactente se torna livre do apoio do mãe, de modo que o lactente alcança uma separação mental da mãe, isto é, uma diferenciação em um self pessoal  e separado”(p.41). Comentário: isso pode significar que o self primitivamente não é um self pessoal, mas um self que se junta, que  se mistura ao self da mãe.  A força vital viria da soma dos dois selves. Podemos  pensar que  isso ocorre na fase de fusão; o aquisição do self separado da mãe, do self pessoal iniciar-se-ia na fase de dependência relativa.
     
Pode-se pensar, a partir dessa perspectiva, que o self tem um impulso ao crescimento, à diferenciação e à integração. Este impulso para o crescimento, que mais tarde poderá ser denominado de impulso à expansão, à realização de suas potencialidade, é chamado por Winnicott de força vital. Essa concepção está aparentada ao élan vital de Bergson e, para mim, mais fortemente, à vontade de potência de Nietzsche.    
 
. O ego é uma parte do self, ou uma função do self, que existe para possibilitar o pleno desenvolvimento do self. O ego lida com a realidade externa, com os instintos e com o superego aplainando o caminho de auto-realização do self. O self ( um de seus significados) é impulso de vida, vitalidade, vontade de potência, realização, expansão. O ego tem a função de possibilitar a expansão do self. Pode ser bem sucedido  ou mal-sucedido. Em geral, algo se perde na caminhada do self em direção à sua plena realização. 
 
. Desenvolve-se o falso self como uma reação à invasão. O verdadeiro self se recolhe e o falso self torna-se o centro de gravidade da personalidade. Esse falso self pode reagir à intrusão de duas maneiras: 1- tornando-se submisso e 2- tornando-se desafiador. No pólo submisso aparece o sentimento de vazio, tédio, futilidade. No pólo desafiador a pessoa enquanto desafiando, brigando, competindo não tem o sentimento de futilidade que porém surge quando não há uma boa briga em vista. Nos dois casos é possível que a pessoa venha a se distinguir profissionalmente.
 
. O self é tudo o que a pessoa é: seu corpo, suas fantasias, seu ego, seu id, seu superego, sua necessidade de crescimento, integração, realização e expansão. Visualizo o self como um fluido que tem a capacidade de banhar todos as partes da pessoa. Um fluido que pode se concentrar em qualquer das partes da pessoa. Já pensei que o falso self seria o ego, mas prefiro, no momento pensar que self é um todo do qual o ego é uma parte, e que o falso self é um derivado do verdadeiro self que se desenvolve devido aos problemas com que o self se defronta.
 
. Do livro “O ambiente e os processos de maturação”, artigo “Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self (1960): “Particularmente relaciono o que divido em self verdadeiro e falso com a divisão de Freud do self em uma parte que é central e controlada pelos instintos (ou pelo que Freud chamou sexualidade, pré-genital e genital), e a parte orientada para o exterior  e relacionada com o mundo” (p.128).
                                            
                                                           Nahman Armony




 
 
 
 
Conheça meu blog: www.nahmanarmony.blogspot.com

UM PASSADO PERSISTENTE


 
Vivemos em um mundo incerto, no qual a rotina é freqüentemente assaltada pelo inesperado. Temos de aprender a conviver e a lidar com o imprevisto. Bem diferente do tempo de nossos avós, quando se contava com um mundo estável, de hábitos consolidados. Não havia então o imperativo de uma avaliação ininterrupta do impacto dos acontecimentos sobre a subjetividade de cada um, nem a necessidade de se olhar para além do manifesto e explícito. As estruturas em vigor absorviam as insatisfações e conflitos existentes.
Tomemos como exemplo a circulação de dinheiro em uma família tradicional para confrontá-la com uma família pós-moderna. Na primeira o homem detinha o poder econômico, pois trabalhava e sustentava a todos, enquanto a esposa cuidava da casa e dos filhos. Disponibilizar para ela maior ou menor numerário teria mais a ver com a satisfação do marido em relação ao comportamento da esposa do que com a realidade econômica do casal. A mulher, por seu lado, tentava compensar sua frustração com o casamento realizando gastos excessivos. Os conflitos e as insatisfações, porém, não ameaçavam a estabilidade do casamento, que era “para sempre”; podiam permanecer ocultos, negados, pois a hipótese da separação era impensável. Os hábitos e as convenções da época seguravam o casamento, os afetos se equilibravam nas ações e reações.

Pensemos agora em uma família pós-moderna composta de marido e mulher em segundas núpcias, uma ex-esposa e um filho do primeiro casamento. O homem terá de se relacionar com a primeira mulher, tendo em vista sua função de pai, incluindo-se aí  os gastos com a criança. A circulação de dinheiro, que na família patriarcal fluía no interior da instituição do casamento, agora obedece a uma determinação externa, a da pensão. Nesse caso, a posição de ex-esposa a deixa mais livre e motivada para reivindicar aportes extras. Estes nem sempre são por exclusiva necessidade econômica: ocorre com freqüência haver raiva e ciúme da nova relação. Ela busca então se vingar, sobrecarregando o ex com pedidos extemporâneos; ao mesmo tempo poderão persistir nela resquícios de apego, e a contribuição extra poderá ter para ela o significado de ele sentir os mesmos resquícios. E mais: se ele cede às suas demandas, ela encontra conforto na idéia de que ainda o controla.

A esposa vigente percebe inconscientemente esses significados e exacerba sua rivalidade e competição com a ex. Sua sensação é a de não ser mais a única mulher com a qual o marido se importa. Existe outra a receber agrados; o dinheiro que poderia ser utilizado por ela e pela família atual escoa-se para a antiga esposa por fraqueza e por um elo afetivo indevido do marido. O que a ex-esposa pede para o filho é percebido como um pedido pessoal. A criança, aqui, perde a sua singularidade, confundida que está com a mãe.

Como não existe uma contenção institucional para essa constelação familiar, a situação pode não se equilibrar com as ações dos implicados, vindo a atingir a região do insuportável quando sucede algo radical: ou a separação do novo casal, ou o rompimento do marido/pai com a família anterior. A fratura, no entanto, poderá ser mais facilmente evitada se cada membro da família se der conta da própria dinâmica psíquica.

A nova esposa precisa conscientizar-se de sua rivalidade e competição com a ex; esta deverá perceber o mesmo em relação à atual e, ainda, o ódio e amor residual pelo ex-marido. Já o marido terá a tarefa de compreender o que move as duas mulheres nas discussões com ele. Só assim será possível atenuar os efeitos de tão fortes emoções, protegendo a continuidade dos relacionamentos.

 

                                       Nahman Armony
        Primeira publicação na revista CARAS

O ENIGMA CÉREBROMENTE


 

Repercussões especulativas psicofisiológicas a partir de LIBET


 

Experiência de Libet – o potencial de prontidão precede de 550 milisegundos a realização do gesto. “A interpretação clássica desse experimento diz que o livre arbítrio, ou seja, a ideia de que nós somos os arquitetos de nossas ações, é uma ilusão e que a consciência é uma espécie de efeito colateral de um processo inconsciente.” Crítica de Schurger: “ Libet argumentava que o nosso cérebro já decide mover-se ante de haver uma intenção consciente. Nos argumentamos que o que parece ser um processo de decisão pré-consciente não é reflexo de uma decisão. Parece ser, mas apenas porque essa é a natureza da atividade cerebral espontânea. Se estivermos certos, o experimento de Libet não fornece nenhuma evidência em desacordo com o livre-arbítrio.”

Minha tentativa de explicação. Um pouco de neurociência especulativa.  Premissa 1: necessidade de aumento da percepção do ambiente. Quanto mais ampla a percepção mais o ser vivo poderá se defender, atacar e sobreviver (Darwin). Poder-se-ia aqui falar de vontade de potência (Nietzche) como uma pulsão ou instinto primário. Imagino então o seguinte. Numa primeira etapa os animais só percebiam o ambiente através do toque, fosse com objetos vivos ou inanimados. O ambiente externo ao corpo reagia ou com irritação e então se afastava do fragmento do ambiente no qual por acaso tinha tocado, ou então o introduzia no seu próprio organismo para se alimentar, fosse um fragmento mineral fosse um outro ser vivo que era então decomposto em suas partes (proteína, gordura, glicose, etc.) Tanto um quanto outro processo só ocorriam quando o acaso colocava a substância viva com um objeto inanimado ou com um ser vivo que então lutava para não ser destruído.  Interessava então à sobrevivência poder perceber o outro, antes de tocá-lo. Essa é a função da visão. Desenvolveram-se partes do cérebro que permitiram essa percepção.  Na revista ‘Mente e Cérebro’ de novembro de 2016 aparece a figura de um verme primitivo ao qual foi dado o nome de CAENORHABDITIS ELEGANS. Esse verme se alimenta de bactérias do solo, não tem olho, não tem cérebro nem consciência. Algumas espécies de vermes têm um olho primitivo, mas seu principal instrumento de percepção do mundo à sua volta é difuso e se dá através do seu corpo. Se examinarmos o corpo de um jacaré facilmente veremos seu olho, fazendo um enorme contraste com o corpo de vermes que ou não apresenta aparelho visual ou o tem, porém muito primitivo. O jacaré atrelou parte de suas defesas ao olho. Para isso promoveu o crescimento e reestruturações do cérebro aumentando a capacidade de enxergar. Ou pode-se dizer o contrario. A necessidade de enxergar fez com que o cérebro se desenvolvesse no sentido da sobrevivência. A capacidade de ver o mundo é concomitante às transformações funcionais. Segundo Espinoza Uma única substância com inúmeros atributos dos quais só percebemos o atributo extensão e o atributo incorporal (mental). Voltando aos olhos do jacaré: ele enxerga o que externo a ele mas não desenvolveu o cérebro para enxergar os seus processos mentais e psíquicos internos. Esta proeza foi realizada pelo homem que desenvolveu uma parte do seu cérebro no sentido de ver o que se passa dentro da mente e da psique. Estou falando principalmente de autoconsciência. Não se pode separar o desenvolvimento neuronal da conquista mental. Ambas são concomitantes, ocorrem ao mesmo tempo. Voltando ao que eu já disse são dois aspectos de um mesmo fenômeno. No dizer de Spinoza, são atributos da Natureza. Há um crescimento e arranjo cerebral que permite ver não só o externo, o que está fora do ser, como também permite ver o que está acontecendo dentro do próprio mente-cérebro. Isto através de dois modos: por introspecção e por aparelhos de imagens dinâmicas.   Parto da seguinte premissa: a todo movimento da mente (portanto a todo pensamento) corresponde um movimento dos elementos cerebrais. É necessário que existam certas estruturas, funções e dinâmicas cerebrais para que o animal perceba com os seus órgãos de sentido aquilo que está acontecendo no mundo e dentro de seu cérebromente. A palavra ‘perceber’ pode ser substituída por ‘consciência’. O primeiro patamar da consciência eu a chamo de ‘consciência da pura ação.’ Num segundo patamar encontramos a consciência reflexiva que é a capacidade mental/cerebral de agir inteligentemente ao resolver algum problema externo sem porém ter consciência de que está resolvendo problemas pois esta última encontra-se no patamar da autoconsciência, privilégio dos humanos que observam seus pensamentos e ações. Darei um exemplo da consciência reflexiva que os animais reflexivos partilham com o ser humano. Um cão foi deixado para trás numa encruzilhada. Ele cheira uma primeira via buscando o cheiro do dono. Não há cheiro. Entra então resolutamente na 2ª via. Estamos diante de uma inteligência ou consciência reflexiva. À sua maneira canina o cão pensou: “se só há dois caminhos e meu dono não passou por este caminho só pode ter seguido pelo outro caminho”. Seu aparato cérebromental permitiu esta percepção/ação sem que percebesse que estava fazendo um raciocínio lógico. Já o homem desenvolveu um cérebromente que lhe permite ter autoconsciência. São modificações cerebrais que ampliam o campo de conhecimento dos seres vivos. Seria possível encontrarmos modificações cerebrais para os chamados fenômenos paranormais? Dentro da premissa colocada por mim a resposta só pode ser positiva. A meditação não é um fenômeno paranormal. Mas está mais próximo desta fronteira. Foram detectadas alterações na dinâmica cerebral nos monges que realizam meditação. Esta última afirmação tira a força do que venho dizendo, mas vale a pena colocá-la para nos afastarmos de acontecimentos milagrosos ou excepcionais. Não nos esqueçamos que os bons motoristas de taxi londrinos têm o córtex temporal ou parietal aumentado em comparação com a população não taxista. Preservamos assim a ideia de uma evolução cerebral/mental rizomática.
                                  Nahman Armony