RUÍDO EM PSICANÁLISE

                                                    
            O conceito de “ruído” surgiu com a teoria da informação e logo se difundiu para outras disciplinas: cibernética, biologia  e computação são algumas delas. É um conceito frutífero e como tal merecedor destes transplantes. Por isto mesmo quero trazê-lo para o âmbito da psicanálise, pois acredito que, também nesta disciplina, ele possa render frutos teóricos e práticos. Para estabelecer uma referência inicial, citarei a definição de ruído que Atlan[1] retirou da teoria da comunicação:

“O ruído é tomado, aqui, em seu sentido derivado do estudo das comunicações: trata-se de todos os fenômenos aleatórios parasitas que perturbam a transmissão correta das mensagens, e que geralmente procuramos eliminar ao máximo. Como veremos, existem casos em que, a despeito de um paradoxo que é apenas aparente, pode-se reconhecer nele um papel benéfico”.[2]

 Os organismos vivos (máquinas naturais) têm uma aptidão para usar o ruído em favor de seu enriquecimento que as máquinas artificiais não têm[3]. Para fazer este uso positivo do ruído, é preciso que a ele seja atribuído um sentido. A teoria da informação precisou abstrair o possível sentido do ruído para submetê-lo a um tratamento matemático e estatístico. Isto não serve à psicanálise, que necessita atribuir um sentido ao ruído para utilizá-lo de forma positiva na terapia, transformando-o em fator de organização[4]. Portanto, em psicanálise, dependendo da posição em que o terapeuta se coloca, o ruído pode ser visto ou como mero barulho sem nenhuma sentido, um trambolho que atrapalha o curso da terapia, ou pode ser olhado do ponto de vista de seu sentido ou significado, podendo então ser integrado ao sistema comunicativo analista-analisando. É a história/narrativa psicanalítica das transformações dos ruídos de obstáculos inúteis e perturbadores a ferramentas úteis que apresentarei a seguir.
            Na última década do século XIX Freud concebia a psicanálise como uma atividade que, revelando ao paciente o trauma ou os traumas iniciais, tornando-o consciente das circunstâncias geradoras dos sintomas, faria desaparecer a doença psicológica. O próprio paciente deveria ou se lembrar de tais acontecimentos ou fornecer pistas para que o analista os reconstruísse. Mas o paciente apresentava resistências; ele não queria ou não podia trazer informações que conduzissem ao trauma inicial e suas circunstâncias. Uma das mais renitentes resistências era a transferência. O paciente passava a ter sentimentos intensos pelo analista, desviando-se daquilo que deveria ser seu trabalho: o de recordar. Um obstáculo intrusivo - era como a transferência, então, se apresentava. Um ruído inútil, indesejado e perturbador.

“De início, fiquei muito aborrecido com este aumento de meu trabalho psicológico, até que vim a perceber que todo o processo obedecia a uma lei; e então também notei que a transferência desta espécie não trazia quase nenhum grande aumento ao que eu tinha de fazer”.[5]

Nesta frase de Freud, escrita em 1895, podemos perceber que a transferência não é bem-vinda pois ela é, de início, um transtorno aleatório e imprevisível; e mesmo quando, em um segundo passo teórico, a lei a alcança, é apenas um trabalho a mais a ser feito. Trata-se de um ruído que deve ser descartado para que prossiga o trabalho de investigação psicanalítica. Em pouco tempo, porém, a transferência, de ruído indesejável, passa a organizador do processo psicanalítico. Em 1912 Freud escreve:

Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Pois, quando tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie[6].

            A contratransferência percorreu um caminho semelhante. Até aproximadamente a década de 50 representava para o psicanalista um perigo para a sua condição de profissional e um obstáculo ao prosseguimento do trabalho analítico. As poucas referências diretas de Freud à contratransferência são desta natureza[7]. Foi preciso esperar pela escola kleineana[8] para que a contratransferência tivesse o seu caráter de obstáculo eclipsado por sua utilização como instrumento de compreensão do psiquismo do analisando; para certos autores (Searles[9], por exemplo) além de um instrumento de compreensão, é a contratransferência um organizador ativo da dinâmica diádica.     
            Enquanto os ruídos transferenciais e contratransferenciais não eram considerados em seu sentido e significação, atuavam como perturbações incômodas da comunicação analista-analisando. Quando, adotando um novo enfoque, apreendeu-se a significação destes ruídos, incorporando-os, desta forma, ao processo analítico, transformando-os em fator de crescimento, os ruídos tornaram-se bem-vindos e desejados.
            Examinarei agora, à luz do conceito de ruído, a contratransferência desdobrada em contratransferência alogênica e contratransferência autogênica. 
            É importante assinalar, desde já, que contratransferência tanto se refere à postura/comportamento adotada em resposta à subjetividade do analisando quanto a situações dinâmicas mais específicas de inter-relacionamento fantasmático, quando então o analista apresenta sentimentos, fantasias e impulsos em relação ao analisando. Estes sentimentos/fantasias/impulsos podem estar em sintonia com o desejo do analisando e nesse caso diremos que a contratransferência é alogênica. Se dependerem mais do mundo psíquico do analista do que das solicitações-necessidades do analisando, teremos então uma contratransferência autogênica. A contratransferência alogênica não produz ruído pois, mais que uma comunicação entendida, é uma comunicação silenciosa, em que o analista é um objeto subjetivo, um fantasma do analisando. Já a contratransferência autogênica seria “ouvida” como ruído pelo analisando, já que a ação do analista seria estranha às suas expectativas, à sua organização psíquica. Isto, porém, em uma primeira aproximação. Mas, será que este pensamento se mantém?
            Usarei Winnicott para meditar sobre estes dois aspectos da contratransferência. A idéia winnicotteana de uma adaptação perfeita da mãe às necessidades do bebê e do analista ao analisando em regressão pode ser coberta pelo conceito de contratransferência alogênica: o analista está complementarmente identificado com o analisando. Mas logo aparece uma complicação: Winnicott fala de “falhas necessárias”[10]. Como pensar estas falhas necessárias? Como contratransferência autogênica ou alogênica, como ruídos ou não? A uma primeira e distraída visada poderíamos pensar que estamos diante de uma contratransferência autogênica, e que portanto estamos produzindo um ruído, uma interferência indevida na relação. Mas Winnicott nos diz que a falha é necessária para o desenvolvimento do bebê e do analisando[11]. Podemos mesmo pensar que o analisando provoca a falha no analista quando a hora da perfeição relacional, da simbiose terapêutica,[12] já cumpriu sua função. Neste caso, tendo sido a falha provocada pelas necessidades do analisando (poderíamos dizer, da relação), estaríamos diante de um ruído necessário à organização do psiquismo do analisando.
            Aqui temos uma questão delicada. O analista falha e sente que esta falha foi provocada pelo analisando. A linguagem que estamos aqui usando separa analista de analisando e atribui ao analisando uma ação de fazer falhar o analista. Se usarmos uma linguagem que não distinga analista de analisando, considerando-os, pelo contrário, uma unidade diádica, então a falha - que representa o desejo de separação-individuação[13] - não será atribuída nem ao analista nem ao analisando, mas à própria relação; o desejo de separação-individuação é da díada mas tanto pode aparecer no pólo analista como no pólo analisando, sem que se saiba que interações invisíveis houve para que surgisse o desejo de separação-individuação, produzindo a falha, o ruído organizador. Conhece-se o seu sentido: produzir separação-individuação; mas haverá sempre uma zona nebulosa em que não se saberá se a falha surgiu de uma necessidade do analisando (em outra perspectiva, da díada) ou se de uma problemática do analista.
            É também duvidoso que se possa separar inteiramente uma da outra. O que é possível dizer, e o que realmente importa, é que a falha pode ser mais ou menos facilmente assimilada pelo analisando ou pela unidade diádica (dependendo do ponto de vista), e ainda que a medida da facilidade de assimilação está na quantidade de trabalho, na quantidade de  empenho que o analista tem de colocar em jogo para superar a falha. Talvez o empenho e o trabalho possam também indicar a origem da falha; mas esta é uma questão mais acadêmica que prática.
            Pensemos, agora na articulação ruído-falha. Será que é o inicial repúdio do analisando à falha do analista e suas reações de frustração, raiva, dor, mágoa, ressentimento, que nos fazem falar de ruído? Ruído por atrapalhar a perfeição simbiótica? Ruído pelo repúdio do analisando à falha? Ruído pelo mal-estar que a falha provoca no analista? Ruído por não estar de acordo com a organização psíquica do receptor? Mas há que considerar que eventualmente a falha produz um sentimento de alívio tanto no analista quanto no analisando e que, freqüentemente, na seqüência da situação, ela torna-se bem-vinda. Esta é uma situação em que um intrincado vir-a-ser torna difícil sua expressão conceitual. Mas as dificuldades não param aí. Podemos pensar no analista falhando não por necessidade da díada, mas por uma necessidade sua, independente do funcionamento da unidade diádica (considerando que isto seja possível); uma contratransferência autogênica. Pois bem, mesmo assim, dependendo de seu esforço, empenho e habilidade o ruído desagregador poderá adquirir sentido, sendo recuperado como estimulador de transformações benéficas.
            Estamos aqui numa zona nebulosa de trânsito, de ir-e-vir, onde os conceitos têm dificuldade de acompanhar a complexidade do devir. Por isto mesmo, insistirei - correndo o risco aborrecer o leitor - no exame dos conceitos de contratransferência alogênica e autogênica, agora mais minuciosamente, esperando que assim o pensamento possa melhor capturar o devir-ruído em seus agenciamentos com a psicanálise. Estes conceitos foram por mim desenvolvidos em um artigo de 1974[14]. Deles apresentarei um rápido resumo.
            Contratransferência é uma reação afetiva e fantasmática do analista às produções, comportamentos e atitudes do analisando. Ela pode ser alogênica ou autogênica. Será alogênica quando for

“o resultado de identificações complementares (e/ou concordantes) que, ocorrendo através da mobilização dos          fantasmas do analista, coloca-o, no seu aspecto de participante, dentro do mundo fantasmático que o cliente está predominantemente vivendo naquele momento, estruturando-se um campo paratáxico predominantemente determinado pelo analisando”.[15]

Em outras palavras, na contratransferência alogênica o analista responde complementarmente ou concordantemente às afetações do analisando. A resposta do analista encaixa-se perfeitamente na solicitação do analisando, podendo-se dizer que a mensagem foi perfeitamente apreendida e corretamente respondida; nenhum “ruído” perturbou a sua recepção.
            Outra é a situação na contratransferência autogênica: ela pode ser definida como uma resposta “errada” do analista ao estímulo do analisando, resposta “errada” geralmente causada pela ansiedade advinda de fantasias do analista projetadas no analisando.[16] Pode-se dizer que os “ruídos” do Ic. do analista perturbaram a recepção da solicitação do analisando. É aqui que, usando a teoria dos ruídos, podemos complementar o que ficou dito acima. No trabalho já citado escrevo:

“...se a partir de sua intervenção inadequada {o analista} souber se conduzir com habilidade, empenho e coragem, poderá não só evitar um sério dano para a relação, como  também fazê-la progredir apreciavelmente”.[17]

Os ruídos provindos do Ic. do analista e que o fizeram realizar uma intervenção estrangeira ao campo fantasmático vivido no momento pelo paciente, podem reverter em um extraordinário avanço na terapia, desde que bem usados pelo analista. Estes ruídos forasteiros, ao invés de prejudicarem o crescimento da díada, são metabolizados e incorporados a esse crescimento, abrindo novas possibilidades de realizações.
            A exigência teórica de uma perfeita adequação às necessidades de simbiose, separação e de uma perfeita conformidade de subjetividades que poderia surgir a partir dos conceitos de postura continente, de postura simbionte e de disponibilidade/capacidade de identificação,  encontra aqui seu antídoto na possibilidade teórica de o erro - representante da diferença - servir como alavanca de progresso. Pode-se agora aceitar, sem culpa ou tergiversação, o fato de que é impossível ao analista manter, sem manquejar e esmorecer, a capacidade de responder sincronicamente ao paciente; haverá ocasiões em que não estará sintonizado ou receptivo à subjetividade solicitada pelo analisando, assim como não estará responsivo às solicitações fantasmáticas e afetivas do analisando. Suas respostas serão então ouvidas como ruídos pelo analisando. Mas serão ruídos que, dependendo da sua freqüência e intensidade, e da maneira de tratá-los,  poderão introduzir um fator de diferenciação, de vida, de crescimento na relação. A alteridade, a diferença, o incompreensível - o ruído, enfim, se bem trabalhado, adquirirá um sentido, promovendo mudanças favoráveis na díada terapêutica.
            Finalmente, uma síntese pragmática. Se o ruído, o aleatório, é uma fonte de crescimento, então, não-sintonizar por sintonia e não-sintonizar por acaso acabam por se aproximar, produzindo ou uma confusão conceitual - uma contradição do ponto de vista do paradigma da simplificação, ou uma inclusão sintetizadora, um paradoxo, do ponto de vista do paradigma da complexificação.
            Ao fim e ao cabo, a teoria dos ruídos é útil à psicanálise, pois facilita pensar na integração do novo, do diferente, do aleatório. Facilita também o exercício da alteridade. O analista poderá se colocar alteritariamente na sessão psicanalítica sabendo que aquilo que difere da organização psíquica do paciente, sendo trabalhado como ruído organizador, poderá ser assimilado e metabolizado, produzindo efeitos de crescimento. O analista ficará assim com duas possibilidades de atitude que poderão interagir entre si de várias maneiras: a possibilidade de entrar em sintonia fina (identidade), respondendo ao analisando de forma complementar ou homóloga (com toda a ambigüidade desta colocação já vista); e a possibilidade de exercer uma individualidade (diferença), tomando o cuidado de evitar que o ruído produzido permaneça sem sentido. Um ruído sem sentido ou significação é inútil e perturbador; um ruído ao qual se dá um sentido ou significação é fator de complexificação, de crescimento, de desenvolvimento. O ruído sem sentido ou ao qual não se atribui uma significação adequada não será assimilado pela organização psíquica do analisando; aquele ruído que tenha um sentido ou ao qual se outorgue uma significação poderá ter um efeito de expansão e versatilização.
            A liberdade teórica adquirida através da noção de ruído permitirá o exercício sem culpa de uma espontaneidade na relação/comunicação psicanalítica[18], uma liberdade que na prática já vinha sendo exercida por numerosos psicanalistas, especialmente por aqueles mais quilometrados e experientes. Esta espontaneidade deverá se dar dentro de uma insinuância[19]: a do objetivo terapêutico da relação[20]. O exercício espontâneo deste objetivo no quefazer diário do analista exigirá daquele que se inicia neste mister um tempo para que o trabalho de incorporação[21] possa ser realizado.

                              Nahman Armony
                                                                 

Recorte do livro "Borderline: uma outra                             normalidade" de minha autoria. Editora Revinter.




[1]Ver Henri Atlan(1979)- “Entre o cristal e a fumaça”. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1992.
[2]Ibid, pag.250.
[3]Atribui-se “aos organismos não apenas a propriedade de resistir eficazmente ao ruído, mas também de utilizá-lo a ponto de transformá-lo num fator de organização”. Ibid, pag.38.
[4]Ibid, capítulo 2: “Ordens e Significações”.
[5]Freud,S.(1895)- “A psicoterapia da histeria” in “Estudos sobre a Histeria”, pag.361, vol.II da Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1974.
[6]Freud,S.(1912)- “A dinâmica da transferência”,  vol.XII, pag. 143.
[7]Ibid. Ver “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica”, no vol. XI, e o artigo já citado “A dinâmica da transferência”.
[8]Ver o artigo de Paula Heimann(1950) “On countertransference” in International Journal of Psychoanalysis, no 31, 1960.
[9]Ver Harold Searles(1965), “Collected Papers on Schizophrenia and related subjects”. International Universities Press, New York.
[10]Ver Winnicott “Dependencia en los cudados de la primera infancia y de la niñez, y en el marco psicoanalítico”,  especialmente pag. 319 in “El proceso de maduración en el niño”. Editorial Laia, Barcelona, 1975.
[11]Ver Winnicott(1963)- “Dependencia de los cuidados en la primera infancia y de la niñez, y en el marco psicoanalítico” in “El proceso de maduración en el niño”. Editorial Laia, Barcelona.
[12]Ver Searles “Collected papers on schizophrenia and related subjects”, pag. 308. International Universities Press, New York, 1965.
[13]O conceito de separação-individuação é de Mahler e pode ser encontrado no livro “O nascimento psicológico da criança”. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977.
[14]Armony,N.(1974)-“Contratransferência alogênica e autogênica: duas noções auxiliares para a compreensão dos fenômenos contratransferenciais” in “Psicanálise: da interpretação à vivência compartilhada”, Editora Universitária Sta Úrsula, Rio de Janeiro, 1989.
[15]Ibid, pag.30.

[16]Ver na pag.30 o conceito de contratransferência autogênica.
[17]Ibid, pag.36.
[18]A noção de ruído tem um alcance epistemológico muito além da psicanálise e de cada outra disciplina que a usa pois mina a própria  idéia de perfeição tão cara à mentalidade ocidental.
[19]Esta noção será exposta no capítulo 2, ítem 3.
[20]Ver Armony: “Novos caminhos da técnica psicanalítica”, livro citado..
[21]Ver Armony, “Utilização de técnicas expressivas em terapia” e “Modificação do enquadramenteo terapêutico no tratamento de um cliente esquizofrênico” in livro já citado.

A FALTA

É quando nu
Aperto o meu corpo contra o seu
E sinto seu calor penetrar minha carne
E julgo que não é possível estar ainda mais perto,
É neste momento
Que percebo 
A distância que nos separa.
                                     Nahman Armony

"FICAR" OU NAMORAR

Por ter tendência ao apego, gostar mais de segurança do que de aventura ou por influência dos pais, alguns adolescentes preferem o namoro aos relacionamentos fugazes, tão em voga atualmente. O único problema dessa opção é que se sintam inferiorizados no seu grupo etário. Aos pais, cabe oferecer apoio em caso de ansiedade pela situação, mas sem interferir na autonomia dos filhos.


Puberdade e adolescência constituem um período de transição, quando a criança se desprende dos pais em favor de grupos de sua faixa etária. A opinião do grupo torna-se cada vez mais significativa, empurrando para a periferia a importância da aprovação dos pais, embora estes,  no inconsciente do adolescente, continuem a ser o esteio de segurança. Mas a ideologia do grupo exerce poderosa pressão sobre o jovem. Uma ideologia corrente atual é a do “ficar”, que significa encontros sem compromisso, nos quais se pode desde beijar, acariciar até transar. O “ficar” é um valor positivo nos grupos adolescentes. Como ninguém quer estar out, este valor procura ser exercido pelos jovens. Há, porém, aqueles que não se sentem bem com tal prática. São vários os fatores que levam os jovens a gostar ou não do “ficar”. Darwinianamente falando, como as mulheres produzem relativamente poucos óvulos na vida fértil, precisam escolher o parceiro sexual mais perfeito possível. Então elas realizam uma seleção cuidadosa, não se deixando fecundar por qualquer um. Já o homem, cujos órgãos sexuais produzem milhares de espermatozóides, busca garantir a transmissão e a sobrevivência de seus genes procurando fecundar o maior número de fêmeas possível. É claro que nós, humanos, estamos muito longe desse nível biológico. Mas quando se faz um levantamento mais global, é mais um fator a ser levado em consideração.
O psicanalista húngaro Michael Balint (1896-1970) diz que muito cedo se desenvolvem no ser humano tendências para o apego ou desapego ao objeto de amor. Poderíamos dizer que no “ficar” predomina o desapego e no namorar predomina o apego. Teríamos, portanto, dois tipos de pessoas: um com medo de intimidade, precisando passar de parceiro para parceiro, e outro com medo da novidade, da aventura, precisando se fixar em algo conhecido. Essas duas tendências existem conjuntamente em proporções diferentes em todas as pessoas. Mas em algumas a predominância de uma é tão poderosa que a outra renuncia à sua expressão.
Outro fator é a ideologia dos pais. Embora, como já disse, num certo período da vida o jovem a abandone para adotar a ideologia do grupo, na verdade o abandono total é uma impossibilidade, pois a influência dos pais penetra profundamente na psique dos filhos. Ela pode, sim, diluir-se quando outros fatores entram em jogo, mas sempre estará de alguma maneira presente: mais em alguns, menos em outros. Assim, se a mentalidade da família for fortemente conservadora, o jovem ou terá mais dificuldades com comportamentos liberados ou os realizará de forma exagerada, como uma reação à poderosa proibição interna que carrega. Faz parte também do equipamento pessoal a curiosidade pelo novo, pelo perigo e o gosto pela segurança, pelo conhecido, pela tranqüilidade.
Portanto muitos são os fatores envolvidos e sua resultante dependerá do jogo de forças entre eles. Poderá acontecer de o jovem se ver impulsionado a adotar um comportamento diferente do dos amigos, o que o fará sentir-se excluído, inferiorizado, incapaz de acompanhar seu grupo etário. Nesse momento os pais, valendo-se da profunda vinculação filial, podem se apresentar para auxiliá-los em sua aflição. Deverão, porém, ser uma presença discreta, pois os filhos, mesmo que necessitem de reconhecimento e apoio para o comportamento divergente de seu grupo etário, mantêm o desejo de independência em relação aos pais. O apoio e a aceitação deverão ser oferecidos com sensibilidade e cuidado para que o jovem não sinta que estão querendo lhe retirar a autonomia e a independência.
                                                                                  
                                                                                        Nahman Armony      
Primeira publicação na revista CARAS. 

                                                

DE ÉDIPO A NARCISO




Dentre os mitos gregos Freud escolheu o de Édipo para dele fazer um centro ao qual a psicanálise reenvia o sintomático e o estruturado, borrando os limites entre normalidade e anormalidade. Tal escolha - juntamente com sua interpretação, emergiu das condições epistêmicas e subjetivas da época em que o mestre viveu.

Teorias nascem em um determinado momento histórico e estão por ele condicionadas. Trazem em seu bojo a visão de mundo da época, os seus problemas e contradições e apontam para os seus possíveis desdobramentos. Assim é a revolucionária teoria freudiana. Ela se assenta sobre a episteme da sua época mas aponta para uma nova episteme; na formação de seus conceitos infiltra-se a mentalidade do século XIX, o que transforma a teoria em uma espécie de testemunha, de denúncia e também, de indicação de caminhos de transformação dessa própria mentalidade e episteme.

A escolha de Freud da tragédia de Sófocles para a rentrée de Édipo, sua concepção da origem da sociedade organizada exposta em “Totem e Tabu”, sua teoria da instalação do superego no menino, são reveladoras da violência de uma sociedade patriarcal no apogeu de sua ideologia fáustica; uma ideologia que separa razão de emoção, homem de mundo, sujeito de objeto e que acredita que o racionalismo científico - cujo paradigma é o da simplificação[1] - é a melhor abordagem para as questões não só das ciências exatas como das disciplinas sociais; uma ideologia patriarcal montada em uma epistemologia excludente, em um modo de comunicação e relação indiretos, necessitados de um terceiro para se exercerem; uma ideologia que usurpa a visibilidade do maternal.

A teoria edípica da psicanálise é uma testemunha viva da repressão e do recalque dos aspectos da relação-matriz materno-infantil e da tentativa de torná-la inoperante no mundo dos homens adultos. E aqui refiro-me tanto ao mundo interno - recalque - quanto ao externo: o maternal e a mulher eram cuidadosamente segregados do mundo cultural (stricto sensu), numa tentativa de impedir que os aspectos da relação matriz materno-infantil viessem perturbar as decisões racionais e necessariamente impiedosas decorrentes de uma ideologia fáustica triunfalista.

A segregação da matriz materno-infantil para ser realmente eficiente tinha de sofrer um recalque. Para este fim erigiu-se um superego terrível e implacável:



“De fato este superego é o sub-rogado tanto do id como do mundo exterior. Deve sua gênese à circunstância de que os primeiros objetos das moções libidinais do id, o casal de pais, foram introjetados no ego, razão pela qual o vínculo com eles foi dessexualizado, sofreu um desvio das metas sexuais diretas. Somente desta maneira foi possível a superação do complexo de Édipo. Pois bem, o superego conservou os caracteres essenciais das pessoas introjetadas: seu poder, sua severidade, sua inclinação à vigilância e ao castigo (...) Agora o superego, a consciência moral eficaz dentro dele, pode tornar-se duro, cruel, desapiedado com quem tutela. Desse modo, o imperativo categórico de Kant é a herança direta do complexo de Edipo”(FREUD)[2].



Nesta citação, onde a impiedade do superego aparece claramente, pode-se também interpretar - desde que se adote uma perspectiva de penetração histórica e social - a dessexualização e o desvio de metas sexuais diretas, como recalque da sensibilidade e de formas de conhecimento não-verbais - recalque do maternal. Como a potência da matriz materno-infantil pressiona poderosamente no sentido de sua realização, torna-se necessário lhe opor um superego duro, cruel e desapiedado. É interessante observar que o empresário capitalista tem exatamente estas características. Isto nos remete a Erik Erikson[3] que fala de uma educação dirigida para a formação de uma personalidade social padrão.

Reencontramos em outra formulação a mesma idéia de repressão-recalque da matriz materno-filial:



“No varão (...) o complexo não é simplesmente reprimido; sossobra formalmente sob o choque da ameaça de castração. Seus investimentos libidinais são renunciados, dessexualizados e em parte sublimados; seus objetos são incorporados ao ego, onde formam o núcleo do superego e fornecem a esta nova formação suas propriedades características. No caso normal - melhor dito: no caso ideal -, já não subsiste tampouco no inconsciente nenhum complexo de Edipo: o superego tornou-se seu herdeiro. Uma vez que o pênis - no sentido de Ferenczi (1924) - deve seu investimento narcísico extraordinariamente elevado à sua significação orgânica para a sobrevivência da espécie, pode-se conceber a catástrofe {Katastrhophe} do complexo de Edipo - o desterro do incesto, a instituição da consciência moral e da moral mesma - como um triunfo da espécie sobre o indivíduo”(FREUD)[4].



A palavra desterro - expulsar da pátria - é demasiadamente forte para apenas designar uma desistência libidinal-sexual da mãe; certamente é mais do que isso; é a saída do território materno, a renúncia à delicadeza, suavidade, a-racionalidade, emocionalidade e força da relação materno-filial. A citação seguinte creio que permite reforçar este ponto de vista:

“A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do retorno da catexia libidinal”(FREUD)[5].



Uma última citação:

“O superego conservará o caráter do pai e quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rápido se produziu sua repressão (sob a influência da autoridade, do ensino religioso, da educação escolar, da leitura), tanto mais rigoroso virá a ser o império do superego sobre o ego como conciencia moral, talvez também como sentimento inconsciente de culpa”(FREUD)[6].



Ao desintegrar o complexo de Édipo o menino identifica-se com o superego dos pais e rompe sua relação libidinosa com a mãe, aceitando os valores modelares do pai e da sociedade, afastando-se dos valores criados na singularidade da relação com a mãe. Em termos mais amplos: a resolução súbita e autoritária do complexo de Édipo resulta em uma identificação com a função superegóica despótica de preservação dos valores da cultura e desvaloriza, reprime, recalca, dissocia as funções surgidas na relação materno-infantil primitiva: a intuição, a empatia, a disponibilidade e a capacidade para a identificação. A função patriarcal, no seu exercício de autoridade e uso de modelos, apela para uma episteme excludente que se opõe à função inclusiva advinda da relação matriz materno-filial. O menino para tornar-se um Homem deverá abandonar, esquecer, fazer sumir sua ligação à mãe. Deverá abandonar seus valores prévios desprezando-os como “coisas femininas”. O dever obscurece o amor, a razão livra-se da intuição, as dicotomias se instalam separando sujeito de objeto, homem de mundo, ser humano de ser humano, a empatia e a identificação são repudiadas como meros enganos da sensibilidade, a natureza torna-se um objeto de manipulação não mais respeitada em seu movimento e equilíbrio.

Estamos falando de uma subjetividade que imperava na época em que Freud iniciou sua saga e que, nas primeiras décadas do século XX, embora já atacada por vários lados, mantinha ainda seu vigor. Hoje em dia, percebe-se nitidamente o avanço de uma outra mentalidade, de uma outra lógica, de um outro paradigma, de uma outra forma de conhecimento/relação/comunicação. Fala-se de narcisismo, de paradoxo, de vazio, de isolamento emocional, de inquietude, de angústia, de criatividade, de intensidade, de movimento, de singularidade, de devir onde antes se falava de Édipo, de sintoma, de estrutura, de contradição, de estabilidade, de modelo. Kohut, por exemplo, postula dois Homens paradigmáticos, um edípico e outro narcísico, respectivamente, o Homem Culpado e o Homem Trágico; o homem da atualidade seria menos Edípico que Narcísico. E não se diga que não se encontra em Freud nada que autorize este desenvolvimento. Lembremos que no “Sobre o narcisismo: uma introdução” Freud escreve: “Acho inteiramente impossível situar a gênese da neurose na estreita base do complexo de castração...”[7].

E quando advertido por Edoardo Weiss respondeu: “Sua pergunta relativa à minha afirmação que fiz em meu artigo sobre narcisismo, sobre a existência de neuroses nas quais o complexo de castração não desempenha qualquer papel, coloca-me numa posição embaraçosa. Não me recordo mais do que tinha em mente na ocasião. Hoje, é verdade, não poderia citar qualquer neurose na qual esse complexo não fosse encontrado, e de qualquer maneira hoje não teria escrito a mesma frase. Mas conhecemos tão pouco a respeito de todo esse assunto que preferia não ter que me decidir cabalmente neste ou naquele sentido”[8](grifo meu).



Mais importante que a afirmação é a grandeza da modéstia de Freud deixando em aberto uma questão central da psicanálise. Exemplo de sabedoria e humildade.

Tentarei situar o narcisismo seguindo uma trajetória que irá do social ao pessoal, com passagem pelo familiar. Ocupar-me-ei primeiro das condições sociais para o aparecimento do homem narcísico, depois das condições familiares para finalmente entrar na questão quente: o aparecimento de uma nova linhagem de normalidade que tem como referência não mais o neurótico mas o borderline.

Usarei a Teoria dos Vínculos Sociais de Tönies[9] para abordar a socialidade. Ela nos fala da passagem da sociedade agrária para a sociedade industrial. Duas formas de organização social: Gemeinnschaft e Gessellschaft. Na primeira as pessoas acham-se afetivamente ligadas uma às outras graças à tradição, parentesco, amizade, ideal, vizinhança ou por outro fator socialmente coesivo. Este tipo de organização social coloca as pessoas dentro de um sistema extremamente sólido de controle social informal. Existe um respeito interindividual, um cuidado e um apoio entre os membros da comunidade. É o tipo de vinculação da sociedade agrícola, das pequenas comunidades, das cidades pequenas. Com a industrialização cresceram as cidades, esgarçaram-se os vínculos afetivos e estabeleceu-se uma nova socialidade: a Gesselschaft onde impera o contrato formal nas relações sociais. Trata-se de uma sociedade impessoal e anônima. As pessoas são tratadas como unidades produtivas e não como unidades afetivas, maquinificando o homem que então pode ser facilmente descartado. Os homens tornam-se psicologicamente isolados. O indivíduo já não se identifica com a comunidade como um todo o que facilita o aparecimento de sentimentos de solidão, vazio e futilidade. Esta Gesselschaft refere-se ao modelo capitalista oitocentista caracterizado por uma economia de mercado voltada para a acumulação de capital através de uma ética da produção. Eram valores desta época, o trabalho, a honestidade, a disciplina, a sobriedade, a repressão[10]. É neste período que a teoria psicanalítica surge. Na fase pós-industrial, esta que estamos vivendo, o capitalismo já não necessita da mobilização intensiva da força de trabalho e portanto já não necessita de uma moral rígida, disciplinadora, incentivando então o lazer, o consumismo, o hedonismo[11]. Acrescentemos a este quadro a velocidade, a mudança, a imagética, a dessacralização (da autoridade, das ideologias, etc.), a multiplicidade, a singularidade, o culto ao corpo, a concentração de renda, a violência, etc. Este é o contexto que podemos postular como interagindo com instituições, pessoas e famílias, numa inter-causalidade circular e criando condições para o aparecimento do borderline.

Pedirei, em primeira instância, o auxílio de Kohut para estabelecer uma relação entre a socialidade e a família. Para este autor teria havido uma modificação da família que de coesa passou a dispersa. Na família coesa uma superestimulação afetiva produzia conflitos internos devido às proibições dos pais e às rivalidades da constelação edípica. Nas famílias dispersas, por força da dispersão dos pais e serviçais, os filhos são subestimulados e portanto sujeitos a distúrbios narcísicos da personalidade[12].

Numa outra perspectiva pode-se dizer que a família moderna ainda se apresentava sólida, estável e com papéis bem definidos. A mãe cuidava do lar e tinha condições de fornecer à criança uma atenção constante e cuidadosa; o pai era a autoridade inconteste do grupo familiar, portador das regras e leis da cultura, respeitado, reverenciado e a quem se devia obediência. Esta situação foi-se modificando. O longo e contínuo cuidado que a mãe dispensava ao seu rebento tornou-se uma exceção em nossos dias. Como participante do mercado de trabalho a mãe é logo compelida a deixar o seu pequeno filho ao cuidado de creches e babás, e, mesmo o seu tempo de disponibilidade está saturado de preocupações que perturbam a relação mãe-bebê. Também a identificação com a figura paterna sofre transtornos. Questionado pela companheira, pressionado pela mídia, aturdido pela enorme quantidade de informações contraditórias, vivendo a incerteza de valores e procedimentos tradicionais em transformação, submetido a um processo de irresponsabilização e juvenilização, inseguro quanto à prática de sua autoridade, premido entre ideologias, o pai sente-se perdido dentro da família. As crianças já não encontram aquele esteio sólido, seguro, coerente, para o exercício centrado e tranqüilo da função de identificação.

O borderline apresenta justamente problemas na área da identificação-identidade. O neurótico (e aqui eu me refiro tanto ao neurótico “normal” quanto ao “doente”) tendo vivido identificações suficientemente boas e portanto criado uma eficiente regulação endo-psíquica não está coagido a estabelecer relações duais passionais, podendo vincular-se com o outro através de um terceiro termo, comum e externo ao par. Já o borderline necessita das pessoas para estabelecer relações duais, afim de efetuar identificações e viver relacionamentos mais primitivos e passionais. Na tentativa de aplacar sua angústia e seu vazio os borderlines tanto podem parar nos consultórios como podem, assumindo as suas múltiplas identidades, a sua angústia de desintegração, o seu vazio, a sua precariedade de identificações, atuar produtiva e criativamente no terreno das artes, da cultura, do social.

O contingente de borderlines tem crescido em vista das condições sociais, culturais e familiares. Mas esta mudança parece acompanhar as necessidades de um mundo em rápida transformação. Por isto mesmo o ideal de homem está mudando. Se até há algumas décadas atrás o homem ideal era aquele certinho, bem-comportado, obediente, obsessivo, estável e, como diz Deleuze, bem-educado, polido, resignado, hoje em dia temos um novo ideal: dele se espera criatividade, inquietude, agressividade, angústia. Em condições de estabilidade o homem podia encastelar-se em suas certezas e em sua estrutura desatendendo ao movimento do mundo, ao seu vir-a-ser; o normal era o homem bem estruturado, da linhagem da neurose. Diante de um mundo em constante transformação foi preciso estabelecer uma nova relação de conhecimento. O homem teve de abandonar o seu reduto, as suas certezas, o seu castelo ideológico e teórico, para lançar-se, com todas as angústias conseqüentes, sobre um mundo em devir. Viver neste mundo instável, exigiu outro modo de estar no mundo, outro tipo de relação e de conhecimento. A razão excludente não dava conta do movimento; foi necessário reavivar aspectos da relação matriz mãe-filho para poder acompanhar os aconteceres milimétricos de um mundo em transformação. Foi necessário que o homem estivesse atento, perceptivo aos múltiplos estímulos do universo, sem tentar simplificá-lo através de estruturas, conceitos, teorias, formas convencionais de reagir. A normalidade começou a deslocar-se para a banda do borderline. Winnicott já percebia isto ao dizer: “Os psicanalistas em atividade concordariam em dizer que há uma gradação da normalidade não somente na psiconeurose como também na psicose”[13]. Onde Winnicott coloca psicose eu colocaria borderline pois distingo 3 modos de estar no mundo, três modos de relação com o mundo: psicótico, neurótico e borderline. Acredito também que cada um de nós carrega em-si o neurótico, o psicótico e o borderline. Confrontarei estes três modos de viver/relacionar para melhor esclarecer meu pensamento.

O borderline nem rigidamente estruturado e defendido como o neurótico, e nem fora da realidade como o psicótico teria em comum com o primeiro uma capacidade de avaliar a realidade e em comum com o segundo um contacto íntimo com suas fantasias mais primordiais, sem no entanto transformá-las em delírios; também sua percepção do inconsciente do outro e do inconsciente social o aproxima do psicótico; à diferença deste, porém, os estímulos provindos do meio são organizados, hierarquizados, contextualizados, o que não acontece com o psicótico para quem a massa de estímulos permanece caótica. O mesmo acontece em relação às emoções: enquanto o neurótico inibe parcialmente as emoções e o psicótico as descarrega aleatoriamente, o borderline aprende a descarregá-las por vias pragmáticas. O afeto do neurótico segue por vias pré-determinadas, aprisionado que está (relativamente) pelas convenções, conceitos, modelos, pela lógica do ou...ou, etc.; trata-se de um afeto parcialmente inibido que se manifesta sob o signo da ambivalência. O psicótico, vivendo em regime de divalência, descarrega maciçamente seu afeto de forma caótica, aleatória, sem rumo nem direção, tornando-o inutilizável para a vida pragmática e social. Já o borderline libera seus afetos por vias não convencionais mas que se tornaram pragmáticas à força de um entrelaçamento entre um aprendizado organizado em torno da experiência, da atuação e uma persuação/imposição de novas sensibilidades, novas estéticas, novos modos de viver. Ele consegue manter ou recuperar uma divalência em nível afetivo, sem uma verdadeira cisão nem do ego, nem do objeto. Uma sugestão de pesquisa é correlacionar os afetos neuróticos com o processo secundário, os psicóticos com a função primária do sistema nervoso - puro descarrego, e o borderline com a função secundária do sistema nervoso - função pragmática e de comunicação.

O borderline, tal como o psicótico, está atento às mínimas variações do ambiente mas hierarquizando-as; como o psicótico percebe as mínimas e sutis manifestações afetivas daqueles que o rodeiam sem transformá-las em delírio. O neurótico recalca tanto as fantasias primitivas quanto sua sensibilidade às sutis manifestações de afeto dos outros e passa incólume por este mundo subterrâneo de subjetividade fremente, atendo-se a metas de realizações objetivas; o mais cai na faixa da desatenção seletiva. É interessante observar como há pacientes que se ligam principalmente à palavra do terapeuta, não se importando muito com o que ele esteja fazendo ou sentindo enquanto que outros estão atentos a todos os aspectos do comportamento e do sentimento do psicanalista.

O borderline, portanto, mantém-se em contacto com suas fantasias primitivas, com os sentimentos e espontaneidade infantis, com a livre percepção não toldada por preconceitos e direcionamentos; mantém, pois, em funcionamento a matriz relacional mãe-infante. Este aspecto de preservação da matriz primitiva aparece claramente no filme Mr. Jones, um personagem maníaco-depressivo que na maior parte do tempo encontra-se em estado borderline e que declara alto e em bom som que de maneira alguma quer crescer. Trata-se de uma exponenciação daquilo que os borderlines tentam realizar em sua vida: manter vivos e intactos aspectos infantis de sensibilidade, de interação fina e sutil com o ambiente, de espontaneidade, de capacidade de fantasiar e de se encantar, de transformar a realidade cotidiana em fruição lúdica e estética. Veja-se o filme “Priscila, a rainha do deserto” onde três drag queens transformam a aridez do deserto australiano em um florescência de cores, luzes, sons, alegria. Estes filmes traduzem um novo imaginário social que vem colocando em destaque caracteres fronteiriços tal como acontece também nos filmes “Herói por acidente”, “Traídos pelo desejo” e em muitos outros.

O neurótico, em estabelecendo uma barreira entre ele e os outros, ele e o mundo, ele e ele próprio, só se alcança e só alcança o outro através de um terceiro termo, através do deslocamento, do conceito, da teoria.

Diante de um paciente formal eu me despedi de uma forma amistosa e afetiva. Após o que e contrariamente aos seus hábitos, não me telefonou pedindo a reposição de uma sessão que caía em um feriado. Na sessão subseqüente trouxe o seguinte material: tinha tido vontade de se masturbar e não o fizera, não por repressão, mas por desvio. Ficou muito contente com o seu feito. Vai me contar um sonho mas há um preâmbulo que trata de figuras idealizadas as quais apresentam alguns comportamentos que não condizem com o ideal de pessoa do meu paciente. Finalmente o sonho: está com um grupo espiritualista quando aparecem pessoas fora do grupo, entre elas a sua filha e eu. Eu lhe pareço inconveniente e louco, falando bobagem, solicitando sua presença e me mostrando bobamente afetivo. Minha idéia a respeito deste conjunto é que ele não se deu conta de que havia se incomodado com minha forma afetiva de me despedir dele, e só pode manifestar este incômodo por um deslocamento para as imagens do sonho. Um borderline ter-se-ia dado conta de seu incômodo, fosse ou não consciente de seu motivo, e reagiria no ato ou com moderação compatível ou com intensidade delirante.

Quero por último dizer que o normal de linhagem borderline, aquele que põe em funcionamento seu corpo vibrátil[14], poderia ser bem considerado como o representante do pós-modernidade. É uma pessoa que pode manter-se criativa pois se encontra em regime de identificação dual-porosa[15], podendo atravessar as máscaras e os territórios para se conectar diretamente com os afetos puros, podendo, a partir destas percepções, sensações e sentimentos reorganizar suas máscaras e seus territórios de uma forma inédita. Na verdade, se examinarmos com cuidado e atenção certos procedimentos analíticos, aqueles em que a evolução da relação analítica, vai de um relacionamento comum para uma intensa relação transferencial, com a ativação de fantasmas primitivos, poderemos dizer que já de há muito a psicanálise transita na direção da normalidade de linhagem borderline.



Nahman Armony

Rio, 23 de junho de 1995.





Notas e referências bibliográficas




× Publicado em “Narcisismo e nosso tempo. Cadernos de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: v.9, ano 17, p.123-142, 1995.

¹Ver “Introdução ao Pensamento Complexo” de Edgar Morin. Publicações Instituto Piaget, Lisboa, 1991.








[1]Ver “Introdução ao Pensamento Complexo” de Edgar Morin. Publicações Instituto Piaget, Lisboa, 1991.


[2]Freud,S. (1924)- “El problema económico del masoquismo”. Obras Completas, vol. XIX, pag. 172/3. Amorrortu editores, Buenos Aires, 1989.


[3]Ver “Infancia y Sociedad” de Erik Erikson, Editorial Paidós, 1966.


[4]Ibid (1925)- “Algunas consecuencias psíquicas de la diferencia anatómica entre los sexos”, ibid, pag.275, ibid.


[5]Freud,S.(1924)- “A dissolução do complexo de Édipo”. Edição Standard Brasileira, vol.XIX, pag.221. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1976.


[6]Freud,S.(1924)- “El yo y el ello”, vol.XIX, pag.36, Amorrortu editores, Buenos Aires, 1989.


[7]Ibid(1914)- “Sobre o narcisismo: uma introdução”. Edição Standard Brasileira, vol.XIV, pag.109.


[8]Ibid- Nota de pé de página, pag.110.


[9]Apud DeFleur,M.L. e Ball-Rokeach.S.- “Teorias da Comunicação de Massa”, pag.171/3. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1993.


[10]Ver Muniz Sodré, 1987-“Televisão e Psicanálise”, pag.30. Editora Ática, São Paulo.


[11]Ibid.


[12] Ver Kohut “La restauración de sí-mismo”, capítulos V e VII. Paidós, Barcelona-Buenos Aires, 1980.


[13]Winnicott,D.W.(1964)- “El proceso de maduración en el niño”. Pag. 159. Editora Laia, Barcelona, 1975.


[14] Ver Suely Rolnik (1989)- “Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo”, pag.25/6. Estação Liberdade, São Paulo.


[15] Ver Armony,N.(1995)- “Guerra, Identificação e Sociedade” in Humanidades, vol`10, número 3, UnB.

O AMOR E A ÉTICA



Os pensadores da atualidade chamam a atenção para uma mudança fundamental na mentalidade humana. Em épocas passadas acreditava-se em princípios universais que, mesmo transgredidos, eram aceitos por todos os seres humanos de uma mesma cultura. A pessoa, ao transgredir, sabia estar indo de encontro à Verdade de seu grupo. Hoje temos uma dispersão da Verdade. Cada um constrói a sua ética e tenta agir de acordo com ela. A elaboração desta ética varia de pessoa a pessoa. Nela, de uma maneira geral, se misturam os mandatos advindos da educação, da realização dos desejos próprios e de um cuidado com os outros, seja por amor, seja por convicção filosófica. Não estou aqui falando de um pensamento e elaboração consciente, que também podem existir, ou se manifestar em algum momento, mas de uma forma de agir não-consciente. Geralmente a ética explícita não é a mesma ética do inconsciente o que provoca mal-estar e sentimento de culpa. Por exemplo: a ética de uma pessoa pode lhe dizer que a infidelidade não é um ato reprovável e, no entanto, sentir-se culpado quando ela acontece. Tomemos um exemplo: um jovem adulto criado em um ambiente religioso e repressor apresenta dificuldades sexuais que o desvalorizam e revoltam. Ele se rebela contra a educação recebida e elabora uma ética em que a sexualidade torna-se um direito de todas as criaturas humanas. Algo importante está acontecendo. Ele desafia, a partir de seus instintos e desejos, a força dos mandatos parentais que, a sua revelia, se tornaram parte dele mesmo. Mas sua elaboração ética vai além. Para ele é possível haver infidelidade no amor o mais autêntico. Uma relação amorosa não deveria impedir que um súbito desejo sexual de grande intensidade em aparecendo numa situação inesperada, seja respeitado e realizado. A ética está no respeito ao impulso que deverá ser realizado. Pode-se pensar que este fragmento ético tem sua origem afetiva no desejo de experimentação e variedade (não quero repetir aqui o argumento biológico darwiniano da máxima transmissão dos caracteres hereditários). Pois bem, esta é a ética que ele apresenta para a sua namorada: ambos teriam o direito de aventuras extra-namoro. Só pediria à namorada que o faça discretamente, pois se vier a saber da infidelidade sofrerá. Já a namorada tem outra ética. Para ela a fidelidade sexual é um princípio inviolável e ela não aceitaria uma quebra deste princípio. Se o namorado tiver uma aventura ela terminará o namoro. Temos aqui duas éticas em confronto. Tempos atrás ambos concordariam que “pular a cerca” seria errado. Tínhamos apenas uma Verdade. Hoje há uma diferença na avaliação do que é ético. Para o rapaz o ético é não impedir a realização de um forte impulso sexual. Para a moça o ético é preservar a fidelidade a qualquer custo. Uma diferença de opinião e um impasse. O mais lógico seria os dois não iniciarem ou terminarem o namoro antes de um aprofundamento da relação e antes que uma infidelidade viesse a fazê-los sofrer. Acontece que os dois se amam. Um dos dois terá de ceder. Mas possuídos por suas convicções será uma frágil renúncia. Ou ela se sentirá ofendida se houver infidelidade ou ele se sentirá injustamente cerceado ao evitar uma relação sexual extra-namoro. Esta situação poderá dar origem à dubiedade. Mantendo-se fiel a sua ética, à qual não pode renunciar já que se trata de um princípio básico ele sabe que em situações excepcionais cederá ao seu desejo. Mas ao mesmo tempo está imensamente interessado numa mulher atraente que poderia vir a ser a sua companheira de vida. Não quer renunciar a ela, mas não pode renunciar aos seus princípios. É aqui que surge a mentira: ele diz à namorada que não a trairá, mas já sabendo que tal coisa pode acontecer. Está criado o cenário para muito sofrimento futuro.

                                                                           Nahman Armony


Primeira publicação na revista CARAS