MUDANÇA DE PARADIGMA


 
Um psicanalista em transformação

 

           Filosoficamente falando, a humanidade vem sofrendo sucessivos abalos no fundamento sujeito/verdade, um fundamento que surgiu há mais de 24 séculos. Este fundamento é uma estratégia sem estrategista e que através de seus efeitos à distância permitiu ao mundo adquirir a fisionomia atual: um desenvolvimento científico responsável por uma incrível cultura tecnológica, por um extraordinário controle e poder do homem sobre a natureza, mas trazendo em seu bojo um potencial de deterioração, sofrimento e destruição que,  cada vez mais, se realiza.

           Ao descrever este processo sei estar mitologisando, montando uma estória que é ao mesmo tempo uma história (ou vice-versa). Estou fazendo uma genealogia e contando uma história heurística e verossímil mas não rigorosamente verdadeira se é que isso é possível. Estou me apropriando com os movimentos de meu olhar e de meu corpo de elementos do mundo à minha volta. Elementos que tanto se encontram no presente quanto no passado e futuro; fisicamente perto e distantes; visíveis e invisíveis; existentes e inexistentes. Não se pretende, com estes elementos, conseguir uma história cronológica ou um discurso regrado; tenciona-se, isso sim, lidar com a dor da existência para que, não fugindo da vida, possamos vivê-la todos os dias e o dia inteiro. A escolha e disposição destes elementos, nem cronológica nem espacialmente seriada, seguirá o irregular desenho traçado pela vida. Estes elementos do mundo, mesmo externos e estranhos a mim, me pertencem, pois é pelo meu movimento corpomental que os faço surgir.

           A mudança em curso do paradigma Ocidente torna problemática nossa relação com a vida e portanto com a multiplicidade. Esta relação com a multiplicidade parecia ter sido resolvida quando se a reduziu a uma dicotomia, instituindo-se primeiro a "certa distância" e depois a "distância certa".[2] O mundo acabou por se reduzir a um laboratório onde a vida se congelava na estufa das certezas causais. Excluiu-se a doxa deste laboratório e pôs-se na porta e janelas a figura da necessidade - uma guardiã a impedir a entrada do acaso e da eventualidade. Por muito tempo o homem sufocou, feneceu, morreu no laboratório; mas o conservou, pois naquele habitat encontravam-se a Verdade e o Poder, imagens que ao proporcionar segurança e conforto, compensavam o que se perdia em vitalidade, prazer, gozo e força. Tremores sucessivos, progressivamente mais fortes, tornaram o laboratório inseguro. As certezas ficaram abaladas e a eficácia não era mais suficiente para impedir a degradação do homem e do ambiente. Pulando a janela de um laboratório em convulsão, o homem mergulhou na vida, nos meios-tons, nas incertezas, nas imprevisibilidades. Perdida a episteme que reinava soberana no laboratório, deparou-se com a doxa da vida, figura mal vista, desprezada, denegrida, e até então desterrada. Obrigado, a contragosto, a viver o paradoxo, sentiu-se desterritorializado: nem possuía mais a pátria antiga, nem tinha ainda encontrado uma nova. Podemos dizer que o homem vivia a "experiência da meia-noite";[3] uma experiência que cada ser humano pode fazer no recolhimento de sua solidão mais radical desde que a isto se disponha.  

 

"A apreensão da meia-noite é a fulgurante apreensão de um devir, de uma simultaneidade radical, uma experiência indizível de estranhamento".[4]

 

É possível pensar esta experiência sob duas formas: uma atenuada e outra radical. A primeira como simultaneidade paradoxal e a segunda como absoluto desaparecimento de um referente temporal. Se vivermos uma simultaneidade no momento da meia noite, estaremos referidos a um tempo que, embora estranho e perturbador, é um tempo que reúne numa paradoxalidade o ontem e o amanhã. O antes e o depois desaparecem como entidades discretas, para se juntarem na paradoxalidade da meia noite, produzindo um tempo diferente do cronológico, mas que ainda dele guarda uma sombra, um indício, um tênue sopro que seja. Se pensarmos no tempo cronológico como uma nave-mãe, referente organizador do tempo sideral, um astronauta que, ao abandoná-la, vive uma paradoxalidade,  conserva de alguma maneira uma vaga idéia de sua existência, mantém um tênue fio de ligação, um translúcido cordão umbilical. As amarras foram rompidas, mas algo impalpável ainda os liga. Diferentemente de  um outro astronauta que, expulso da nave-mãe, perde todas as suas conexões com ela, mesmo as mais inefáveis.  Expelido pela nave-mãe está solto em um tempo vazio de qualquer referência; nem simultaneidade, nem paradoxalidade encontram-se à vista; o astronauta vê-se lançado em um vácuo onde sofre um angustiante sentimento de destemporalização. Talvez seja esta a mais forte experiência da meia-noite, sendo a anterior uma pálida amostra dela.

           É-me importante falar destas duas formas, pois penso ter vivido com diferentes pacientes, ambas as experiências. Mas antes de reportar-me à clínica quero, mais uma vez, expandir a "experiência da meia-noite", fazendo-a abarcar, como uma síndrome, uma história (e estória) vivida pelo Ocidente. Platão será agora a menção inicial de uma narrativa em três tempos.

           No "antes-da-meia-noite" vigora o paradigma sujeito/verdade, recalcado para o lugar do fundamento - portanto inalcançável e indizível - produzindo, à distância, efeitos de causalidade, necessidade, anulação dos tempos aiônico e cairótico.

           Na "experiência-da-meia-noite" perdemos este paradigma e somos lançados em um vácuo temporal: estamos desterritorializados e destemporalizados. Na situação de uma atenuada "experiência-da-meia-noite"  podemos viver uma simultaneidade paradoxal:  ontem e amanhã sobrepõem-se no instante vivido.

           Na radical "experiência da meia-noite" a simultaneidade e a paradoxalidade desaparecem. Estamos suspensos em um tempo estranho, vivendo radicalmente a ausência;  sentimo-nos em um vácuo sem fim como o astronauta que, perdidas todas as conexões com a nave-mãe, está à deriva em um indizível, incompreensível, terrífico tempo sideral. Não o espaço-tempo do ano-luz, mas o tempo nenhum de nenhum decurso.

           No depois-da-meia-noite - um momento que aos poucos se afirma - acostumamo-nos a viver a paradoxalidade da vida e finalmente a aceitamos com a dor que ela porta. De certa forma, fechamos um círculo, ou melhor, completamos uma espiral, retornando à Grécia Arcaica onde se vivia (isto na minha história/estória) o paradoxo como uma naturalidade. Com a intervenção de filósofos gregos – e aqui a figura que os representa é Sócrates/Platão passamos do paradigma paradoxo onde predomina a construção lethea/alethea para o paradigma da causalidade onde vigora o paradigma causa/efeito.   Desta maneira, a naturalidade, durante séculos privilégio do paradigma sujeito/verdade, estende-se e transfere-se em indecisa e flutuante intensidade à paradoxalidade.  

           É importante assinalar que a paradoxalidade do depois-da-meia-noite difere da paradoxalidade da experiência da meia-noite, pois nesta o paradoxo é vivido como absolutamente não-natural o que nos faz ansiar por uma naturalização. Um passo mais  ousado seria passar a sentir a naturalização como não-natural, naturalizando - e aqui vai um super-paradoxo - o estranhamento. Ficaríamos, assim, sempre atentos às armadilhas do pensamento.

           Em 1974 assim escrevi sobre um paciente: "Trata-se de um cliente que chamarei de Jorge. Aproximadamente dois meses antes de nossas segundas férias de análise, Jorge passou a apresentar um crescente fechamento, uma crescente resistência a deixar entrar dentro de si o que eu dizia. Eu falava de seu sentimento de abandono, dele estar me sentindo como mau e rejeitador, dele poder estar fazendo a fantasia de que eu não estava satisfeito com ele, dele estar sentindo o meu afastamento físico como um afastamento psicológico; falei de seu possível medo de que eu não o quisesse mais, de que eu não voltasse; de sua fantasia onipotente de me destruir por estar abandonando-o; de seu receio de exprimir a raiva que estava sentindo de mim. Jorge parecia ficar cada vez mais ressentido e desesperado. Busquei nos meus sentimentos contratransferenciais mais alguma indicação do que poderia estar acontecendo. O que estava predominando em mim era um sentimento de impotência. Estaria ele castigando a Mãe-Onipotente por sentir que ela (eu) o estava abandonando? Foi o que lhe transmiti. Nenhum efeito positivo. Ao contrário, ele se encerrava cada vez mais em seu mundo. Finalmente senti que estávamos em dois universos diferentes, sem possibilidade de comunicação.  Esta situação atingiu o seu clímax na pré-ante-penúltima sessão que antecedeu as férias. Jorge e eu nos sentamos e ficamos longo tempo em silêncio. Eu já não sabia mais o que fazer. Quando Jorge fala é para declarar sua impossibilidade de se ver por dentro, de tirar seu escudo, pois, se assim fizer, seu caminho natural é o suicídio. Eu compreendo que está sentindo não poder viver sem a relação simbiótica com a Mãe-Analista; compreendo que é preciso que ele me sinta como sua Mãe-Boa e que assim me conserve dentro dele durante a minha ausência. Mas, o que fazer com este conhecimento? Eu já lhe havia falado de seu mundo fantasmático; só havia servido para ele se recolher ainda mais dentro de si mesmo. Eu já não sabia mais o que fazer. Queria ajudá-lo e não estava sabendo como. Era preciso ajudá-lo. Mas de que jeito? Pode-se perceber aqui que, diante do meu fracasso, eu passei à posição de terapeuta que precisa ajudar ao seu cliente. Eu estava pois passando de um plano paratáxico para um plano sintáxico dentro do nível terapeuta-cliente.......Acabei dizendo: `Eu tenho muita vontade de te ajudar, mas não sei como; mesmo isto que estou falando é com medo de te atrapalhar mais do que de te ajudar'. Não era, porém ainda o bastante. Jorge percebeu que eu estava no nível de relação terapeuta-cliente e comunicou-me que necessitava de outro nível dizendo: ‘Não se sinta com compromisso de me ajudar. Fale comigo sem pensar em compromisso'. Passei então para o nível que realmente funcionou na situação o nível pessoa-pessoa dizendo: ‘Não sei nada de compromisso; sinto é que você está sofrendo muito e me dói ver o seu sofrimento sem nada poder fazer'. A esta altura eu estou comovido, o que reforça a atmosfera pessoa-pessoa que passa a predominar na relação’".[5]

           No momento em que não sei o que fazer, em que quero ajudá-lo sem saber como, vivo a vertigem da perda de referências. Mas é uma perda de referências que ainda mantém uma ligação com o paradigma Ocidente. Foi esta situação que me levou a idear uma "experiência atenuada da meia-noite".

           A perda de referências - o período da meia-noite - não é aqui tão dolorosa e radical, pois mesmo no momento em que as perco - em que o fundamento sujeito/verdade está ameaçado - conservo em alguma região de mim mesmo um certo modo-de-estar que, logo a seguir, permite encontrar um outro lugar de onde ver e dizer a multiplicidade. Eu simplesmente não perco o fio que me liga à nave-mãe, embora naquele momento de desorientação e perplexidade eu não esteja vivendo nenhuma causalidade e nenhum tempo cronológico. Estou vivendo sim, uma paradoxalidade, um ontem e um amanhã ao mesmo tempo, um ontem e amanhã que logo serão teorizados como níveis de relação em sobreposição: o "nível de relação transferencial-contratransferencial", o "nível de relação terapeuta-cliente" e o "nível de relação pessoa-pessoa".[6] O fundamento sujeito/verdade enraizado em mim faz com que a perda de referências se dê numa atmosfera de estranheza. Não se perde o ontem, mas a ele se acrescenta o amanhã, vivendo-se assim uma estranha simultaneidade; o fundamento sujeito/verdade vem à tona não para ser destruído, mas para permitir um duplo movimento: a "distância certa" admite uma outra "distância certa" o que faz com que ambas se transformem em "certa distância"; as várias "certas distâncias" convivem em uma simultaneidade paradoxal. Agora o fundamento sujeito/verdade, embora vigore, encontra-se exposto, sensível, vulnerável. Logo, uma outra paciente investirá mais dura e diretamente contra este fundamento. O paciente do qual estou no momento falando não pretendia me destituir da posição do analista-que-conhece. Queria apenas que eu (não ele) encontrasse novos parâmetros terapêuticos. A minha experiência da meia-noite, nesta terapia, está atenuada, pois no momento mesmo em que estou perdido, perguntando com aflição "que fazer?", mantenho uma expectativa: é possível encontrar uma outra "boa distância" que superposta à "distância certa" anterior, transforma-a e a si mesma em "certa distância" sem deixarem de ser "boa distância". É assim que encontro a relação fantasmática transferencial-contratransferencial convivendo paradoxalmente com a relação sintáxica terapeuta-cliente e com a relação pessoa-pessoa. Todas elas "certas distâncias" e "boas distâncias". Mas, com tudo isto, começa a ser questionada a validade de meus conhecimentos analíticos, tangenciando-se a questão de minha legitimidade como analista. O fundamento sujeito/verdade está agora profanado pela luz do dia e, nesta posição de maior vulnerabilidade, sua resistência aos ataques que virão tornar-se-á mais problemática.

           O decisivo ataque ao fundamento sujeito/verdade veio de  uma paciente borderline a quem chamarei de Ana. A certa altura de nossa relação terapêutica Ana, expressando sua necessidade de uma relação viva, passou a atacar esse fundamento. Meu conhecimento teórico e minha técnica de “expert” faziam-na sentir-se um objeto, excluída assim de uma relação verdadeira. Pedia desesperadamente que eu fosse apenas uma pessoa espontânea. Nada de teorias e técnicas; uma absoluta sinceridade, isto sim, a salvaria da prisão psicótica.[7] Este chamamento para uma interação pessoal livre e desinibida alimentava-se do desespero de Ana, de seu desejo de uma vida menos conturbada, da certeza de que somente um relacionamento absolutamente aberto e transparente a salvaria. Eu deixaria de ser um sujeito que sabia a verdade e tanto o sujeito quanto a verdade flutuariam ao sabor da relação; uma relação não mais apenas de palavras, mas de emoções, sentimentos, movimentos, corpo. Ela propunha uma proximidade que na verdade eliminava o espaço,  alterava o tempo e revelava o paradoxo sujeito/verdade. Ela me fazia viver a dolorosa experiência de não ser contemporâneo de mim; eu deixara de pertencer à classe dos analistas; eu não era mais uma pessoa inserida em um contexto social, familiar, histórico; estávamos ali numa relação mítica originária, onde tanto o sujeito quanto a verdade seriam re-criados. Ao se eliminar a distância prescindia-se da representação e a interpretação era substituída pela experiência covivencial: "Uma diferença essencial entre a segunda e a terceira fase, faz-se imediatamente notar. Como já ficou registrado, a ameaça de rompimento da relação simbiótica gerava em Ana raiva ou indiferença; estes sentimentos não penetravam diretamente dentro do analista. Ficavam como que colocados em um espaço intermediário e, a partir daí, eram percebidos e sentidos. Não tal ocorreu na terceira fase. Ana não sossegou enquanto não conseguiu me tirar da posição de serenidade terapêutica. Para isto recorreu a inúmeras, variadas e complexas técnicas; conseguiu finalmente eliminar o espaço-tempo existente entre nós; suas palavras, atitudes, emoções podiam agora me atingir dentro. Desaparecia o espaço intermediário protetor".[8] Nem "distância certa", nem "certa distância"; embora ladeados pelo espaço-tempo da cultura ocidental, vivíamos, no parêntesis do consultório, um tempo não cronológico, uma duração. Pensar deixava de ser representar para ser movimento, co-moção. Mas foi preciso percorrer um caminho para aí chegar. Com Jorge o questionado não é o fundamento sujeito/verdade. Jorge pretende manter o analista como um sujeito capaz de dizer uma verdade. Pretende, pois, manter uma distância entre analista e analisando, uma distância que exige a presença da representação.  Só não lhe agradava a "verdade" que vinha sendo dita pelo analista. Tratava-se de uma verdade aparentemente despida de afeto e para Jorge era fundamental que o amor estivesse presente na verdade que lhe era dita. Não podia ser uma verdade qualquer; tinha de ser uma verdade amorosa; mas ao mesmo tempo esta verdade amorosa deveria ser dita por um analista reconhecido como tal pela sociedade à qual pertencia. Desta maneira, a dicotomia neutralidade/amor transforma-se em uma simultaneidade, em um paradoxo. Um paradoxo ainda vivido em termos de proximidade/distância; o espaço é ainda o recipiente onde os eventos acontecem. Já Ana faz desaparecer o espaço questionando o próprio fundamento sujeito/verdade, obrigando-me a sair de minha posição protegida de observador e lançando-me na multiplicidade, no pensamento/corpo/movimento, na paradoxalidade vida/laboratório. A multiplicidade e a vida eram verdadeiramente vividas, mas dentro do espaço do laboratório analítico; eu estava assim radicalmente numa fenda aberta entre dois mundos, e palidamente no ponto de superposição destes mundos. Em 1980, assim descrevi o processo de conversão que Ana propiciou: "Minha atitude analítica fazia-a sentir-me falso, hipócrita, escondendo o que pensava e sentia. Pedia-me insistente e dramaticamente que expressasse o que sentia a seu respeito, que reagisse espontaneamente sem me apegar a regras psicanalíticas. Sua expectativa era de que, ao permitir-me deixar fluírem as emoções sem um controle normativo, viesse a fazer uma relação amorosa-erótica de tipo simbiótico-infantil com ela. Esta sua expectativa existia por não levar em conta a realidade mais global, a sua necessidade de ajuda terapêutica, a minha situação como psicanalista e como pessoa inserida em um contexto social. Estes aspectos que ela não vivenciava, embora os conhecesse intelectualmente, estavam vivamente incorporados em mim. Confiando, pois, no meu sentido de realidade e vencendo grandes resistências internas, terminei por aceitar o desafio, renunciando gradativamente ao aspecto normativo da psicanálise e passando a agir mais espontaneamente. Enquanto que para Ana a nossa relação era praticamente tudo, toda a sua vida e esperança, para mim era parte de uma realidade maior, tendo certas relações qualitativas com o resto de minha vida. Aceitei, pois, como disse, a sua proposta. Falei de minha raiva dela, de meus sentimentos eróticos, de meus sentimentos ternos, etc. Isto levou-a a atuar ainda mais os seus impulsos. Diante destas atuações, evitei realizar intervenções baseadas no meu conhecimento teórico, que só a desesperavam. Resolvi confiar nas minhas emoções e sentimentos, especialmente aqueles ligados à minha sobrevivência como pessoa e como profissional. Eu tinha a convicção de que nem minha agressividade, nem meu afeto ultrapassariam os limites que a terapia impunha. Tinha a certeza de poder sempre manter em mente o objetivo terapêutico psicanalítico. Respondi positivamente ao seu pedido de espontaneidade para que ela pudesse perceber que ser espontâneo não significava simplesmente dar vazão a todo e qualquer impulso com toda a sua intensidade. Eu queria que ela vivenciasse a existência de um controle não-normativo dentro de mim para que pudesse desenvolver, pela via de identificação primária, um sentido maior de realidade, saindo da fantástica simbiose que imaginava para nós dois. Quando a sua atuação chegou ao que eu senti como ultrapassando os limites de minha tolerância, aproximando-se perigosamente da fronteira daquela zona de segurança representada pelo objetivo terapêutico da relação, a situação mudou. Sua agressão e sedução agora me ameaçavam; por vezes ela parecia uma sereia querendo arrastar-me para o abismo da fusão perfeita. E então tive medo; um medo autêntico que me levou a frustrá-la; a frustração que eu lhe impunha não mais poderia ser chamada de artificial: sem dúvida nenhuma era espontânea. Desencadeou-se nela então uma raiva primitiva, transformando aquele ser franzino e aparentemente frágil em um tigre dotado de força, paixão, determinação. Chegou a minha vez de sentir um medo primitivo; e foi justamente este medo primitivo que emprestou uma convicção irrecusável à minha contenção da situação. O meu grito de "Pára com isso" tinha agora a força das paixões mais primitivas".[9]

           Ana não admitia que nenhuma distância se interpusesse entre nós. E eu terminei por compreendê-la. Para viver a multiplicidade é preciso estar imerso nela; pois, a mínima distância é sentida como um afastamento insuportável, provocador de uma esclerose do fluir de emoções e fantasias. Desfiz-me assim, respeitando o timing, do jogo aproximação-distância, e me perdi na multiplicidade Ana. Como se pode observar no relato clínico, houve momentos em que esta ausência de distância tornou-se intolerável, quando então se restabelecia um espaço, uma distância, novamente vigorando um jogo de aproximações-afastamentos. Havia, porém, outros períodos em que o espaço desaparecia, só restando o tempo-duração aiônico como um meio no qual nos movíamos.

           Se pretendemos conhecer objetivamente objetos quase-fixos e quase-imutáveis - os assim chamados objetos inanimados - não poderemos nos colocar junto a eles. Sendo a sua ação sobre os nossos sentidos constante e monótona, ao permanecermos junto deles no mesmo plano da physis e portanto com eles confundidos, deixamos de ser afetados, tornando impossível o seu conhecimento objetivo. Já os seres vivos, em permanente moção, nos afetam a cada instante; nossa permanência junto a eles não poderia, de maneira alguma, ser denominada de monótona, pois em cada momento acontece um novo estímulo, obrigando-nos a um conhecimento que passa por todo nosso corpo.  Se então, estamos diante de objetos não-vivos é preciso que deles nos afastemos para, a partir de certa distância, vê-los e dizê-los. Impõe-se, dominantemente, uma perspectiva externa, espacial. Fazemos um movimento de recuo para abarcar (reunir) estes objetos quase-estáticos.   Saímos da multiplicidade e encontramos a mínima distância que permite concomitantemente conhecer e partilhar. Esta é a "certa distância" que logo se transformará em "distância certa". Porém, em se tratando de psicanálise, qualquer espacialidade interposta entre observador e observado alterará a qualidade da relação. Se um analista se afasta de seu analisando para observá-lo em sua multiplicidade, estará transformando a relação singularidade/singularidade em relação sujeito/objeto, estará imobilizando um ser em transformação, desconsiderando a sua essência, retirando vida do relacionamento. Um micrométrico afastamento já produz este efeito; para evitá-lo torna-se necessário abandonar a espacialidade. Ainda mais que, diante de um ser vivo que se move e se transforma, a mínima demora no ponto escolhido como o lugar da "certa distância" fará com que a verdade dali vista e dita não mais encontre o ser vivo movente. A multiplicidade do ser humano acontece não num plano espacial, mas num plano temporal, exigindo do analista não um afastamento no espaço, mas uma dança no tempo, um saltarelo, um saltarilhar, um ritmo. Sai-se então da ordem do espaço e entra-se na ordem do tempo; o analista  poderá então sintonizar as suas moções com as do analisando. Neutralizando o espaço (operação inversa à realizada pelo paradigma Ocidente), o tempo manifesta-se em toda sua pujança. O fluir ganha ímpeto e em um primeiro momento o tempo aiônico domina por completo a cena analítica.

           A situação analítica, que já nos obrigou a prescindir do espaço, ensina-nos a viver a multiplicidade sem nela nos perdermos. A operação desespacializante é solidária à perda do fundamento sujeito/verdade. A perplexidade e desorientação seqüente só se atenua quando a dissolução deste fundamento permite o aparecimento de duas outras referências: o desejo de sobrevivência pessoal e social e o objetivo terapêutico psicanalítico. Se relermos o último trecho concernente ao tratamento de Ana, lá encontraremos o aparecimento destas referências, destas linhas de atração; por acreditar na possibilidade de um pensamento/corpo-ação pude renunciar ao pensamento representacional, desistindo de interpretar e deixando-me engolfar pela paciente, vivendo assim não mais no espaço da representação, mas no tempo da multiplicidade. Só pude fazer isto por me sentir impregnado pelo objetivo terapêutico da relação e por confiar no meu mais profundo desejo de sobrevivência pessoal e social. Foi um entranhamento garantido por estas duas forças mantenedoras de minha identidade de psicanalista e pessoa. Elas participavam das minhas ações e sentimentos na terapia. Não eram referências teóricas, externas a mim, mas referências imanentes que pertenciam ao cerne de minha individualidade, de minha identidade. Imerso na multiplicidade, estes dois pontos de convergência luminavam, ecoavam, impedindo minha desorientação e desintegração. Tudo fluía tudo se transformava, mas estas luminescências, estas sonoridades, persistiam. Não que não acompanhassem o devir; arrastadas pelo fluxo do tempo, ainda assim a ele se impunham; mas ao mesmo tempo, levadas de roldão, sofriam deformações que, por serem elásticas, não eram definitivas.

           Poderia parecer estar havendo simplesmente a substituição do fundamento sujeito/verdade por um outro fundamento: objetivo terapêutico/sobrevivência. Há, no entanto, diferenças evidentes.  O fundamento exerce efeitos à distância sendo ele próprio inalcançável e indizível. O fundamento se dá na espacialidade, sendo o recalcamento do tempo uma de suas origens, um de seus efeitos e um de seus sustentáculos. O fundamento não flui; pelo contrário, como um rochedo, permanece fixo, e como um Rei Midas estatua tudo que toca; seus tentáculos geometrizam o devir, imobilizando-o nas figuras da necessidade, causalidade, método. O objetivo terapêutico e a sobrevivência que doravante chamarei de insinuâncias para distingui-los de fundamento pertencem ao tempo e não ao espaço, não estão recalcados, não inibem o devir - ao contrário, o acompanham - e não produzem figuras à distância que os representem. Podemos pensar na sobrevivência como uma vibração constante dos tecidos, da mente, dos órgãos, células, moléculas, produzindo um som insinuante que banha os aconteceres vividos insistindo em/com sua freqüência e nela perseverando apesar de todos os ataques que os aconteceres lhe possam fazer. Já o objetivo terapêutico pode ser figurado como uma claridade que, lançada pelo sentimento de identidade social no campo psicanalítico, insinua-se, difunde-se pelos aconteceres. Afetado por estes mesmos aconteceres, o sentimento de identidade social maneja um diafragma que ora obscurece, ora clareia o campo psicanalítico.

           Estas insinuâncias acrescentam ao tempo aiônico um tempo cairótico, o tempo de um evento que vibra ao som e à luz destas insinuâncias. A intervenção do analista será sempre um possível aberto a eventualidades transparentes à luminescência e à sonoridade do objetivo terapêutico e da  sobrevivência.

                Temos assim um analista lançado em plena multiplicidade, aprendendo a conhecer, a se relacionar e a se comunicar para além das coordenadas espaciais. A navegação neste tempo incomensurável dele solicita uma alma de poeta.

                                      

Nahman Armony



 
[2] Expressões ouvidas em um curso de Marcio Tavares. Na “certa distância” diferentes verdades podem ser pronunciadas por um mesmo homem em diferentes momentos ou por diferentes homens. Na “distância certa” todas estas possibilidades reduzem-se a uma única verdade a ser aceita por todos.
[3]Idem.
[4]Notas de aula do curso acima citado.
[5]ARMONY, N., 1989 “Contratransferência alogênica e autogênica: duas noções auxiliares para a compreensão dos fenômenos contratransferenciais”. p. 27-28.
[6]Ibidem, p. 26.
[7]Ibidem -” Modificações do enquadramento terapêutico no tratamento de um cliente esquizofrênico”, p. 42.
[8]Ibidem, p.41.
[9]Ibidem, p. 44-45.

PRATICIDADE E TERNURA

O amor, em sua riqueza, comporta vários pares de opostos. Entre eles, a dupla sensível/prático. Na vida real, esses dois modos de expressar o amor em geral se misturam em várias proporções; mas convém separá-los em seus dois extremos para efeito de compreensão. A relação mãe-filho exemplifica bem essa duplicidade.

Podemos idear uma mãe com dificuldade de contato físico: não consegue dar ao filho o carinho, o colo, o estímulo tátil de que necessita. Não que deixe de levar o filho ao regaço; mas o faz sem muito carinho — quase, talvez, como se carregasse um embrulho. “Não se estraga o filho com mimos”, era a desculpa que antigamente se dava a essa atitude. O amor dessa mãe se expressa nos cuidados materiais. Tudo é perfeito: a mamadeira cintila de limpeza, o leite tem a temperatura certa, as roupas são imaculadas, o quarto é higienizado, a saúde física recebe atendimento imediato, e mais e mais. Este, o amor prático. Em contrapartida, a mãe de amor sensível é capaz de relação íntima com o bebê, de pele e adivinhação, de carinho extremo, de brincadeiras divertidas, de trocas que são mútuos estímulos para entrarem numa esfera de paz, enlevo, alegria, harmonia.

Mas, por outro lado é desorganizada e desleixada.

Nos adultos reconheceríamos o amor prático quando o parceiro exercesse suas funções sociais, econômicas, humanitárias e domésticas. A casa bem arrumada, abastecida, a reunião bem planejada com bufê original e saboroso, a dedicação ao consorte em situação de doença, o comparecimento a festas e reuniões importantes, a ajuda financeira nas emergências, a disposição de gastar o que for necessário para poupar sofrimento e dar conforto e segurança ao ser amado.

Quanto ao amor sensível, este acompanha a pessoa amada em seus sutis desdobramentos e derivações, permitindo uma compreensão e ação tão refinadas que a um observador pareceria bruxaria, adivinhação a ultrapassar a barreira dos sentidos. Vinicius de Moraes  o expressa muito bem no seu Soneto da Fidelidade: “De tudo, ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais meu pensamento.”

Acompanhemos o poeta em sua comovente devoção: atento ao seu amor, capaz de sintonizar com o deslizar de afetos, emoções e desejos da amada, é a própria dedicação que a torna a mulher mais encantada do mundo. Vinicius aqui não fala dos aspectos materiais da vida. Ele está falando do amor que se realiza na aguçada percepção dos estados de espírito, dos desejos, das insatisfações e desconfortos do parceiro. A percepção permite que haja respeito à sensibilidade e tolerância à suscetibilidade. O amor sensível exige especial despojamento do casal, cuja recompensa é a intensa e deleitosa troca afetiva.

É comum encontrarem-se amores sensíveis sem seu complemento prático. São pessoas que, embora coloquem em ação uma sensibilidade que lhes permite intuir e atender à subjetividade do parceiro, criando um vínculo forte, não conseguem ajudá-lo quando se trata de questões materiais. O inverso é também verdadeiro. Algumas pessoas, com dificuldade de estabelecer relações íntimas, manifestam seu amor com extremados cuidados práticos. Não se pense, porém, em desamor, pois estamos diante de  características quase intransponíveis, advindas das vicissitudes do crescimento pessoal.

Em geral o amor sensível é acompanhado de amor prático. Mas também ocorre que a maior ou menor proporção de um e de outro criem problemas na relação. Por isso é importante tomar consciência do tipo de sentimento que nutrimos pelo outro: podemos nos dedicar a desenvolver melhor a sensibilidade ou o nosso lado prático, o que favorece o equilíbrio que leva à harmonia.
               Nahman Armony

WINNICOTT E A CRIATIVIDADE PRIMÁRIA


Winnicott nos fala de uma criatividade primária. Seria uma criatividade que surgiria a partir da subjetividade pura, ainda sem objeto. Um bebê com fome tem uma sensação física. Esta sensação física vem acompanhada da uma atávica intuição de que existe um objeto que poderá aliviar esta fome. É uma sensação vaga, nebulosa que vai se delineando cada vez mais claramente na medida em que as experiências de mamada em um seio se repetem. Usando uma linguagem fotográfica, a resolução é cada vez mais nítida. O objeto que se vai delineando, a princípio não tem existência própria. É criação e parte do bebê, pois o bebê ainda não tem noção  de eu e outro. Mas ao mesmo tempo em que o objeto seio/mãe/circunstâncias vai se tornando mais nítido o bebê começa a distinguir o eu do não-eu até o ponto de criar para si o objeto e o espaço transicional. O mesmo objeto que era apenas ele – um paninho encostado no rosto -- quando chega o momento, transforma-se em um objeto transicional externo e interno ao mesmo tempo. Pois bem, enquanto o objeto é apenas subjetivo, isto é, não há distinção entre eu e não-eu a criatividade é chamada de primária. Portanto a  criatividade primária tem a ver, conceitualmente com subjetividade pura. Como estava dizendo acima a dor da fome sofre uma “elaboração imaginativa de função” e aparece como aquela sensação vaga e indefinida de existir um objeto que corresponde à fome. Quando surge o seio o bebê dirá “Ah aqui está o objeto que eu elaborei imaginativamente a partir da função digestiva”. A sensação vaga é elaboração imaginativa de função que recebe um reforço com o aparecimento do seio, mas que do ponto  de vista do bebê continua a ser uma elaboração imaginativa da função digestiva. Só quando ele distingue o eu do não-eu o aperfeiçoamento da figura do seio deixa de ser elaboração  imaginativa de função para ser um tomada de conhecimento do mundo exterior. Como o seio continua investido de fantasias o objeto seio agora é subjetivamente concebido como o fora no época inaugural e objetivamente percebido. Há uma junção aqui do subjetivo com o objetivo.
O outro tipo de criatividade tem origem no espaço transicional. E aqui criatividade tem a ver com contacto vivo com o mundo externo. Significa dar um sentido à vida. Significa sentir que o mundo lhe pertence e que ele pertence ao mundo. Esta sensação tem seu precursor na dependência absoluta onde o bebê é onipotentemente o mundo, é onde ele tem a sua experiência de onipotência. Sua segunda etapa nós a encontramos na experiência de transicionalidade, de espaço, objeto e fenômenos transicionais, onde ele já reconhece a realidade externa (objeto objetivamente percebido), mas impregna este objeto de subjetividade (ursinho, etc.) Enquanto protegido pelos pais e enquanto intelectualmente imaturo, predomina o subjetivamente concebido. Aos poucos a objetivo torna-se uma necessidade e encontram-se várias formas de mistura e convivência do subjetivamente concebido e objetivamente percebido. Formas estas às quais eu já me referi acima.
A criatividade depende de uma mãe suficientemente boa capaz de um holding adequado, isto é, um holding que permita o bebê aceder ao espaço transicional. Eu já disse que o holding é uma nova maneira de viver e ver a vida, uma nova perspectiva, diferente do autoritarismo, dever, imposição, falso self, etc. Juntamente com o holding temos a espontaneidade, o espaço transicional, o verdadeiro self.
Jan Abram no seu livro “A Linguagem de Winnicott” adverte que o “ato criativo (como o pintar, o dançar, etc.) não é um sinônimo de viver criativamente. O viver criativamente tem mais a ver com a força vital que lança mão dos instintos para tornar-se um objeto ontologicamente presente no mundo. Esses instintos evocados pela força vital dão existência ao viver criativo. O viver criativo tem a ver com um sentimento de pertencimento ao mundo; tem também a ver com a capacidade de encontrar a poesia e a arte na coisas mais simples existentes no Universo. Isso fica muito claro no filme Paterson onde um simples objeto inanimado é olhado cuidadosamente, intensamente, ganhando uma aura                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  divinal que é pura poesia. ‘A criatividade primária apresenta-se como um impulso inato que se dirige à saúde’ (frase de Jan Abram apresentando uma ideia de Winnicott). Ao impregnar um objeto ou um fenômeno de criatividade primária estaremos na vigência do que Winnicott chama simplesmente de ‘criatividade’.

  

DIFICULDADES DO RELACIONAMENTO AMOROSO


FALSO E VERDADEIRO DIÁLOGO

 

Desde que a mulher conquistou independência financeira e autonomia pessoal, o diálogo passou a fazer parte da vida de casal. Antes prevalecia a voz masculina, dona do dinheiro e do poder, voz que ditava as regras de convivência e que, em querendo se manter no domínio absoluto da situação, abafava o clamor feminino. O diálogo permitiu à mulher fazer reivindicações, introduzir o modo feminino de ver o mundo, afirmar sua individualidade e lutar por desejos e valores. Estabeleceu-se uma relação igualitária na qual é preciso negociar e chegar a ajustes. A mulher, que até então reprimia a própria singularidade, pôde aparecer com a sua potência, enriquecendo a relação, a família e a sociedade. Por isso mesmo, devemos saudar o entranhamento do diálogo na mentalidade atual. Permite uma convivência afetuosa e democrática; oferece a oportunidade de exercer a intimidade e a diferença; e, ao mesmo tempo em que flui o amor, cada membro do casal afirma a sua singularidade. Os enfrentamentos enriquecem a ambos, pois abrem espaço para a compreensão da subjetividade do parceiro por meio de um exercício de identificação. Isso lhes permitirá serem tolerantes com as diferenças individuais, podendo então aceitar limites. Comunicações verdadeiras são guias preciosos no cipoal de suscetibilidades, fantasias, introjeções e projeções que acontecem em uma relação; quando desejos e sentimentos deixam de ser expressos, o casal fica perdido quanto à conduta do outro. Posso pensar, por exemplo, que a cara fechada com que minha parceira me recebe significa zanga comigo. É possível. Mas também pode ter ocorrido algo desagradável independente de mim. Só uma conversa esclarecerá a situação. Por outro lado, o diálogo passou a ser tão valorizado que se transformou em valor absoluto. A recusa em dialogar ou a sua interrupção tornaram-se politicamente incorretos podendo então criar um ponto de atrito prévio à conversação. Mas o diálogo apresenta outro grande perigo que o destrói como entendimento e acordo. Vejamos por quê:

O diálogo é produtivo até o ponto em que, por ele, se chega a perceber as diferenças. Ultrapassado este estágio, negocia-se uma convivência. A paz reinará enquanto o casal aceitar as dessemelhanças. Mas, se um deles quiser fazer prevalecer seu ponto de vista, poderá usar o diálogo para pressionar o parceiro a mudar seu modo de ser e/ou seus pontos de vista. O perigo maior acontece quando há convicção de que está acontecendo um verdadeiro diálogo, quando na realidade entra em cena o perigoso pseudodiálogo. Um exemplo: imaginemos o casal em que um seja aventureiro e goste de correr riscos, e o outro, conservador, prefira a segurança à ousadia. Depois de um período de desentendimentos, em que a ação de um é questionada pelo outro, resolvem sentar-se e dialogar. Imaginemos que constatem diferenças de temperamento e negociem um acordo. Pode ser que o acordo seja aceito. Ou não. Neste último caso, é possível que o parceiro insatisfeito queira reabrir o diálogo. Acontece que o diálogo deu o que tinha de dar. Reabri-lo seria repetir as falas. E fala repetida não é mais uma tentativa de conhecer e entender, mas forma de pressão e manipulação. Contudo, tendo o diálogo adquirido o status de politicamente correto, torna-se peremptório; assim, cai-se em uma armadilha. Este é o momento de desmitificar o diálogo como panacéia universal. Nesse ponto transformou-se em pseudodiálogo, que esconde um desejo de domínio, uma forma de fazer prevalecer uma opinião e maneira de ser.

É preciso ter lucidez a respeito de suas verdadeiras intenções ao encetar um diálogo. É preciso lembrar de que o objetivo é conhecer as motivações do parceiro, expor as suas, aprofundar o respeito e o conhecimento mútuos, e alegrar-se com a convivência de diferentes como fonte de aprendizado.
                                                                Nahman Armony