Nossa
forma de enxergar a parentalidade, isto é, a relação entre pais e filhos, modificou-se no decorrer da história. Ela depende da época histórica em que nos
colocamos. É como se em cada período vivêssemos em diferentes aquários cujos
vidros induzem a ver -- ou melhor -- apresentam o real de diferentes formas. É desta perspectiva que escrevo[1].
Existe
uma influência social sobre todos os aspectos da vida humana. Neste artigo focalizarei
esta influência sobre a parentalidade, sobre a maneira dos pais se relacionarem
com os filhos, educá-los, prepará-los para a vida adulta. Essa influência social
se embaralha com o inato do ser humano a ponto de dificilmente, e eu diria, só
artificialmente podermos distingui-los. Mas, sem dúvida há um inatismo, uma
hereditariedade, uma genética em cada ser humano. As próprias aquisições
hereditárias são o resultado da interação do mais primitivo ser vivo que quer
sobreviver e perpetuar sua espécie, com o ambiente mutante que pode facilitar
ou dificultar estas metas. As ações úteis são conservadas pelos genes e então
transmitidas às gerações seguintes. Essas ações úteis continuam a sofrer a
pressão do ambiente gerando modificações no organismo que também se transmitem.
No ser humano é extraordinária a força da cultura, da subjetividade circulante,
a ponto de poder obliterar a força genética. Atualmente está em voga a corrente
que diz não ser instintivo o amor maternal. O livro referência desta forma de
pensar tem o título “Um amor conquistado: o mito do amor materno” de Elizabeth
Badinter[2]. Raciocinando com Darwin eu diria que o
instinto de amor e proteção que encontramos[3]
nos mamíferos em geral pode, no ser humano, ser obliterado pela força da
influência social dando a impressão de que não existe como instinto. Poder-se-ia
dizer que o ambiente promove uma radical modificação do instinto quando
encontramos um grupo étnico em que o amor materno inexiste.
O
que é fundamental para minha exposição é aquilo que pode ser modificado: o
ambiente; e meu tema ambiental é a forma de relação parental. Li em algum artigo
cujo nome não lembro que observamos o mundo de dentro de um aquário querendo
dizer que não enxergamos diretamente o real, mas o vemos através de lentes que
o presentam. Para sentir os climas que envolvem as relações parentais através da
história me afundarei em dois diferentes aquários que me darão duas perspectivas
de realidade. No primeiro aquário a refração de seu vidro me fará enxergar os
paradigmas da dicotomia/holismo. Através do segundo poderei enxergar os
paradigmas da repressão/ permissividade/ecologia.
PARADIGMA
DICOTÔMICO/HOLÍSTICO - examinarei a disjunção corpo/alma e a integração
corpo/psique/mente. Em criança eu tinha a ideia de que a mente pertencia a uma
sustância diferente do corpo. Era uma ideia que nascia da vivência/percepção
que tinha de mim. Achava, por exemplo, um absurdo ter de me alimentar como se
isso nada tivesse a ver com meu verdadeiro SER. E evidentemente estendia esta
sensação a todas as pessoas. A dicotomia corpo/alma era para mim uma vivência
primária. Muitos anos mais tarde, ao estudar filosofia essa certeza se desfez.
CONCEPÇÕES HISTÓRICAMENTE
DATADAS SOBRE CORPO, PSIQUE E MENTE
(numa visão winnicottiana)
A
mente não aparece nas transcrições da fala rimada (ou poesia) do aedo Homero do
século VIII a.c. A concepção sobre esta questão era: um corpo animado por um
sopro vital (pneuma) adquiria vida. A morte ocorria com o desaparecimento do
sopro vital. O corpo não sendo mais vivificado pelo pneuma tornava-se uma
sombra, um eidelon, uma espécie de robô incapaz de sentir/pensar, isto é, de
pensamento intuitivo que era o único então em evidência. Não se falava do
destino da alma (da mente), pois este conceito ainda não estava formado. Havia
um corpo que enquanto vivo sentia e reagia ao ambiente com uma inteligência
emocional, uma psique inteligente, um pensamento da sensibilidade. Tendo
perdido seu sopro vital, seu pneuma, o corpo passava a habitar o Hades, local
para onde iam todas as almas quaisquer que tivessem sido em vida suas virtudes
e seus pecados. Só excepcionalmente, mediante rituais poderosos, um eidolon
voltava a ser capaz de, por momentos, recuperar sua inteligência emocional. Se
olharmos sob a ótica de Winnicott não existia então a mente, somente o
corpopsique. Não se fala, pois, de uma inteligência racional, mas de uma
inteligência emocional.
Com
a escola jônica de filosofia a mente entra em cena. Seus filósofos tentam
encontrar a substância ou as substâncias primordiais das quais se derivariam
todas as outras por transformações. Temos aqui um raciocínio abstrato e,
portanto na perspectiva winnicottiana já estaríamos na área da racionalidade
mental que se acrescentaria à racionalidade emocional. Esta mente está
integrada ao corpopsique.
A
dicotomia evidencia-se em Platão ao separar corpo e alma colocando-os como duas
substâncias distintas. O corpo pertence
ao mundo sensível e a alma, que é uma alma racional, pertence ao mundo
inteligível. Para Platão o mundo sensível é um mundo instável, um mundo de
opiniões e não de verdades. E Platão deseja um mundo estável onde verdades
absolutas possam ser estabelecidas. O corpo inconstante e mutável é
desvalorizado. Em termos de Winnicott o psiquesoma é forçado a se separar da
mente dando ensejo ao aparecimento de patologias.
Esta
desvalorização se acentua com Descartes que também separa corpo e mente e vê o
corpo funcionando como um relógio mecânico, uma máquina independente
precariamente ligada à mente pela glândula pineal.
Esta última dicotomia é concomitante à
retomada da observação da natureza já agora por um viés matemático que tornaram
as observações precisas. Estamos no paradigma da cientificidade dicotômica
extremamente útil para o desenvolvimento do pensamento racional, da lógica
clássica utilizada pela física newtoniana com enormes ganhos no que diz
respeito ao conhecimento e utilização da natureza. Descartes com a sua
filosofia antecedeu Newton, dividindo o homem em res extensa e res cogitans
onde a res extensa --- e o corpo faz parte da res extensa --- funcionando
mecanicamente pode ser estudada com precisão usando-se a matemática e a lógica
de causa e efeito. Separada do contexto geral da vida a física ganhou status de
onipotência e onisciência tornando-se modelo para todas as atividades humanas,
arrebatando da religião a aura de sacralidade intocável. O homem arrogantemente
acreditava poder domar e dominar a natureza. Certamente formavam-se detritos,
restos indesejáveis, mas por muito tempo o progresso que a ciência trouxe
ultrapassava os malefícios causados ao ambiente e ao homem. Estes detritos
foram, porém se acumulando até que se percebeu que a exploração ilimitada da
natureza no seu sentido mais amplo (física, social, humana) acabaria por
destruir a espécie humana. Esta se
tornou uma preocupação para muitos: Bauman, Lipovetsky e outros pensadores.
Criou-se o “Novo Clube de Paris” formado por pessoas de várias profissões
dedicadas ao mundo empresarial, financeiro e social preocupados com os rumos
tomados pela sociedade acreditando que estamos chegando a um limite muito
perigoso. Eles propõem uma mudança de paradigma a ser difundido pelo corpo
social. Passaríamos do paradigma da informação para o paradigma do Conhecimento
o que possibilitaria uma compreensão dos processos econômicos, sociais e
psicológicos permitindo uma ação mais
humanizada. Outros pensadores falam de um paradigma holístico em que corpo e
mente, não mais pertenceriam a duas regiões ontológicas diferentes, não mais
seriam duas substâncias separadas e incompatíveis, mas estariam integradas
formando uma unidade indissolúvel. Eventualmente por razões práticas
poder-se-ia diferenciar corpo de alma não na forma de dicotomia, mas de
dualidade. O que representa a possibilidade de olhar a unidade corpo/alma da
perspectiva privilegiada da alma ou da perspectiva privilegiada do corpo. O que
é diferente de olhar o corpo como pertencente a uma substância distinta do
corpo. A contradição própria da dicotomia se apresenta como paradoxo no
paradigma holístico. Aqui entre outras contribuições, temos uma de Winnicott
que colocarei em destaque: o objeto transicional e o espaço potencial[4]. O
objeto transicional, ao mesmo tempo subjetivamente concebido e objetivamente
percebido e o espaço potencial lugar de encontro do subjetivo com o objetivo
ultrapassam a dicotomia cartesiana unificando mundo interno e mundo externo.
Duas
exposições exemplares são representantes fortes da dicotomia tal como é vista
por Winnicott: 1- nas manifestações psicossomáticas- segundo Winnicott o
excessivo desenvolvimento da mente atrai a psique para ela separando-a do soma
que na tentativa de recuperar a psique recorre ao transtorno psicossomático 2-
Winnicott relata uma experiência comum de consultório: o analisando fala de si
mesmo distanciadamente como se estivesse falando de uma terceira pessoa.
Winnicott teoriza que, ainda bebê, essa pessoa não teria tido uma mãe que
cuidasse dela suficientemente bem tendo de desenvolver excessivamente o seu
intelecto. A mãe deveria cuidar do bebê, mas na falta desses cuidados é a mente
que cuida do psiquessoma. A terapia deverá ajudar o analisando a se envolver naquilo
que fala. Não deverá falar de seus sentimentos mas deverá vivê-los na sessão[5].
Falamos do aquário que olha a dicotomia
e o holismo. O outro aquário que olha os paradigmas repressivo, permissivo e
ecológico permite usar a dialética hegeliana: a tese seria o paradigma da
repressão da modernidade vitoriana, a antítese o paradigma permissivo da
pós-modernidade e a síntese um paradigma atual ainda em formação que na melhor
das hipóteses terá uma direção que nos permitirá chamá-lo de paradigma
ecológico, holístico, humanista.
Na
época vitoriana predomina o paradigma da repressão, especialmente a repressão
sexual. Não ignoro a crítica de Foucault que fala da proliferação dos discursos
sexuais, mas essa proliferação é compatível com uma repressão esmagadora.
Consequências: a criança à época de ir para além do horizonte da mãe, de se
socializar no ambiente familiar é, com fala Freud muito bem, castrada. Na minha
interpretação isto significa que ela é impedida de conservar a subjetividade
feminina, os sentimentos e valores da mãe tendo de se identificar com a macheza
do pai abandonando a sensibilidade materna. A consequência é uma família
patriarcal cujo protótipo ideal descreverei a seguir: A
família patriarcal prototípica do período vitoriano era composta por uma mãe
suficientemente boa e por um pai que impunha, a qualquer custo, com a
aquiescência da mãe, as leis da casa; isso incluía a ação de castração na época
apropriada. A mãe através da relação fusional e da mutualidade propiciava ao
filho o desenvolvimento da capacidade de empatia, de identificação, da
sensibilidade sutil, do sentimento de compaixão. Estas características eram
consideradas, na sociedade moderna vitoriana, “frescuras de mulher”,
enfraquecedoras de crianças do sexo masculino que então deveriam livrar-se
desta subjetividade. Os meninos deveriam recalcar estes aspectos femininos para
tornarem-se fortes, duros, impiedosos: uma masculinidade bem desenvolvida lhes
permitiria vencer a dura luta pela sobrevivência, alcançando um padrão de vida
consoante o seu grupo social. Para conseguir este resultado o Pai (ou a função
pai) proibia duramente o acesso à mãe; ele exercia a função de castração da
qual resultava uma interdição do feminino. O resultado era o provável
desenvolvimento de um neurótico normal desde que a mãe fosse suficientemente
boa e o pai castrador suficientemente bom; refiro-me a uma mãe suficientemente
disponível, sensível e responsiva às modificações da subjetividade do filho e a
um pai suficientemente presente, justo, protetor, respeitador da lei,
qualidades que fariam dele uma boa figura de identificação.
Evidentemente
as coisas se complicavam quando tínhamos uma mãe e/ou um pai insuficientemente
bons. Falando a grosso-modo uma mãe insuficientemente boa levará o filho a se
apoiar nos valores do pai suficientemente bom. Não tendo internalizado um imanente
solo seguro, buscará segurança em valores transcendentes tornando-se
prisioneiro de conceitos pré-formados. Poderíamos dizer que sua segurança não
vem da terra-mãe, mas do astro-pai. Facilmente descambaria para um
falso-self.
Tendo
uma mãe suficientemente boa e um pai insuficiente bom terá de se haver com a
questão de tornar-se adulto, de sentir-se adulto, já que lhe falta a figura de
identificação apropriada.
Se
mãe e pai forem insuficientemente bons o filho ficará desarvorado, com uma
conduta errática, agressiva, dispersa, deprimida, ansiosa.
PARADIGMA
PERMISSIVO
Do paradigma
repressivo da modernidade passamos ao paradigma permissivo da pós-modernidade. A
família patriarcal entra em declínio. As identificações sólidas com o pai
sofrem com a perda de poder desse pai, com sua desorientação diante de um mundo
mutável onde nada é seguro, nem o emprego, nem as amizades, nem as convenções
sociais, nem a moralidade. Um pai que fica perdido entre o autoritarismo e a
condescendência, agindo muitas vezes erraticamente. Um comportamento próprio de
um período de transição. O homem firme, seguro, com valores sólidos, com um
superego forte, perde seus parâmetros e torna-se um homem inseguro, que não
sabe se expressa ou não seus sentimentos, que não sabe se desenvolve ou não sua
capacidade de empatia e identificação, que não sabe se deve ou não ser
autoritário. Quanto à mãe, chamada a entrar no mercado de trabalho por razões
econômicas, também o faz para livrar-se do jugo do marido, para tornar-se
independente, valorizar-se, igualar-se subjetiva e hierarquicamente ao marido;
ela então, torna-se uma profissional dedicada a sua carreira. Duas
conseqüências: menos tempo para o bebê e mais preocupação com o sustento da
casa. Esses dois fatores diminuem sua disponibilidade para o bebê, e a fusão e
a identificação mãe/bebê ficam prejudicadas, remetendo-nos a questões de
identidade/identificação. Consolida-se a figura do borderline que segundo
alguns autores tem como parte de sua genealogia uma mãe que na fase da
separação-individuação, quando o bebê ora solicita a simbiose, ora a
independência, não tem uma resposta sensível e adequada da mãe. Este borderline
não terá sua valências identificatórias preenchidas. Duas consequências são
possíveis: ele desesperadamente buscará relações anaclíticas para preencher
estas valências ou poderá usá-las através das identificações dual-porosas para
se conectar com o devir do mundo humano e social. Manter as valências identificatórias
em aberto e portanto a capacidade de identificação dual-porosa é conservar
características infantis e adolescentes: curiosidade, alegria, prazer, empatia,
necessidade de identificação não apenas mental, mas principalmente
psicossomática. No reverso o borderline pesado poderá procurar figuras de
identificação para saturar as valências identificatórias. Ele exigirá destas
figuras uma conduta incompatível com uma boa relação interpessoal; exigirá
comportamento de mãe primeva e de pai primevo da pessoa escolhida para seu par,
e fará demandas impossíveis de serem atendidas. Seguem-se a frustração, a
separação, o abandono, o sentimento de solidão, de vazio, de incompreensão;
aparecem a depressão, a ansiedade, os distúrbios de conduta, os comportamentos
perversos, as somatizações, os sintomas neuróticos, as vivências psicóticas,
etc.
Fazendo um pequeno
desvio angular podemos dizer que na família, as identificações sólidas
tornaram-se problemáticas pela solicitação que o mercado e a vida atual fazem à
mãe e pela perda da posição de patriarca por parte do homem, o que o deixa
confuso, em estado de busca de uma nova identidade. Frequentemente os pais e
mães, traumatizados pelo comportamento castrador de seus genitores tornam-se
excessivamente permissivos, com dificuldades de colocar limites para os filhos.
Ainda como uma reação à posição desvalorizada em que foram colocados pelos
pais/avós transmitem ao filho a ideia de que ele não é nada menos que um gênio
com direitos absolutos. A criança desenvolve o sentimento de onipotência e de dever
sagrado de satisfazer todos os seus desejos. Com isto o outro passa a ocupar a
posição de servo a ser usado.
O
pai, até então idealizado, preservado em sua autoridade e onipotência, afetivamente
distante dos filhos, alvo de um respeito reverencial, estímulo para a revolta
ou a submissão dos filhos, vai-se tornando mais próximo, evitando provocar o
temor reverencial, mostrando suas dúvidas e fraquezas, seu lado feminino, e
sendo percebido/sentido em seu dilaceramento. O filho ou se identifica com a
inconstância e cria um self criativo e um ego flexível – e aí teremos um
borderline brando --- ou fica baratinado, sem ponto de referência, sem âncora,
sem um eixo. As consequências negativas podem ser a busca de grupos místicos e
de drogas, a depressão, a ansiedade, a desorientação, a síndrome borderline
pesada, o pânico, etc. O resultado é a agressividade, as drogas, a falta de
consideração, a ausência de ética, a irresponsabilidade, o egocentrismo, o uso
do homem como se ele fosse uma mercadoria, etc. Uma situação perigosa para a
coesão da sociedade e para a sobrevivência do planeta. O que fazer diante deste
quadro? Será possível recuperar a disponibilidade da mãe? Duvido. Será que se a
qualidade da relação for boa as lacunas serão preenchidas? Ou será que as
valências maternas não preenchidas poderão encontrar um sentido positivo
através da identificação dual-porosa com o mundo? De uma maneira geral os pensadores mostram-se
pessimistas quanto à possibilidade do aproveitamento positivo dessas novas
posições subjetivas. Muitos deles, clara ou disfarçadamente preconizam uma
volta diferenciada ao regime de repressão patriarcal. Outras oferecem novos
caminhos. É o caso de Luc Ferry que especialmente em seu livro “A revolução do
amor” fala de um novo humanismo, diferente do humanismo do iluminismo, um
humanismo que não está ligado às grandes entidades transcendentes, como Pátria,
Família, Ideologias, etc., mas sim dirigem-se ao ser humano em particular. Diz
ele que hoje não seríamos capazes de sacrificar nossas vidas por um ideal
transcendente, mas sim seríamos por um outro ser humano querido. E este
querido pode se estender a todos os viventes.
Winnicott
muito nos ajuda na composição do novo paradigma que se encaminha para o
holístico, portanto ao ecológico e humanista. O conceito de espaço potencial
onde convivem paradoxalmente o subjetivamente concebido e o objetivamente
percebido deixa de lado a clássica dicotomia. Os objetos transicionais que
habitam este espaço são ao mesmo tempo subjetivos e objetivos. O conceito de
concern introduz uma nova forma de ética: não se trata mais de uma ética
imposta nem mesmo persuasiva, mas sim uma ética que nasce da própria
experiência da criança. Sem que ninguém a advirta, ela percebe que ao atacar a
mãe-objeto está ameaçando de destruição a mãe-ambiente. Surge então o concern,
o zelo, o cuidado com o outro que se estenderá à família e ao conjunto dos seres
humanos.
O
conceito winnicottiano de criatividade amarra definitivamente o homem ao
ambiente: ele cria o que já existe em ato ou potência. Com isto se ultrapassa a
dicotomia cultura/natureza. E finalmente o conceito de holding nos leva para além
da dicotomia individual/social. Citando: Citação. Livro: “Da pediatria à
psicanálise”. Artigo: “A tendência anti-social. “... a criança busca a
quantidade de estabilidade ambiental necessária para suportar o embate do
comportamento impulsivo. Trata-se da busca por uma provisão ambiental perdida,
uma atitude humana que, por ser confiável, proporciona ao indivíduo a liberdade
de mover-se e agir e excitar-se. É principalmente na direção da segunda
vertente que a criança provoca as reações totais do ambiente, como se buscasse
uma moldura cada vez mais ampla, um círculo que teria como seu primeiro exemplo
os braços ou o corpo da mãe. É possível perceber aqui uma série – o corpo da
mãe, seus braços, o relacionamento dos pais, o lar, a família, incluindo os
parentes próximos, a escola, o bairro com a sua delegacia, o país e suas leis”
(“A tendência antissocial” do livro “Da pediatria à psicanálise”) p.411.
Um
certo comportamento familiar-social faz-nos ter esperança que a direção
apontada a partir dos conceitos winnicottianos está em andamento. Dito de
chofre: o comportamento de castração está sendo substituído pela colocação de
limites.
Castração
e limite: coloco
a castração como pertencente mais ao campo do neurótico e o limite mais ao
campo do borderline. A castração, palavra evocativa de brutalidade e que em
Freud se refere à proibição do incesto com a mãe, é, quando examinada de um
ponto de vista mais amplo, uma metáfora da injunção ao abandono de
características femininas como empatia, identificação dual-porosa, etc., para
poder tornar o menino um “Verdadeiro Homem”. Ser homem com H maiúsculo é
proibir o feminino no menino e no adulto do sexo masculino, estimulando a
dureza, a implacabilidade, a impiedade.
Já na colocação de limites, o carinho e
sensibilidade da mãe no trato com a criança presentifica modos de
relacionamento e valores que não à toa chamamos de femininos tais como empatia,
dual-porosidade, compaixão, percepção sutil, intuição, impulso conciliador,
etc. Em não havendo uma interferência castradora os modos de relacionamento e
os valores da mãe advindos da relação afetuosa com o filho são preservados, só
aparecendo a questão do incesto e fixação materna em situações de desenvolvimento
distorcido quando então uma ação terapêutica se faz necessária.
A
castração como conceito foi introduzido por Freud e refere-se a uma ação dura,
cruel, enquanto que a colocação de limites é uma atividade realizada com
benevolência, amabilidade e sensibilidade.
Na
subjetividade neurótica o acesso ao feminino do homem é impedido mediante uma
ação castradora. Na prática esta castração é principalmente exercida pelo pai
que impede o acesso da criança aos seus aspectos femininos de empatia,
capacidade de identificação, sensibilidade sutil, etc. Hoje, na classe média
educada e informada a brutalidade castradora encontra-se atenuada e pode-se
mesmo dizer que está se difundindo não mais uma castração crua, mas uma colocação sensível de limites. Quando falo de castração penso em violência em
seus diversos graus. Quando falo de limites também penso em graus de
serenidade, firmeza e sensibilidade, respeitadoras da subjetividade da criança.
Gosto de usar para a castração a imagem de um muro compacto contra o qual a
criança irá se chocar e se machucar; já o limite eu o vejo como uma cortina de
veludo, macia e flexível que oferecerá proteção e limite à criança sem
machucá-la. O pai impiedosamente castrador do século XIX que vemos em filmes
como “A fita branca”, “A árvore da vida” está desaparecendo nas classes médias
dos centros urbanos. Os pais em geral são amorosos com os filhos e as
proibições são realizadas, o mais possível, de uma forma delicada, carinhosa e
sensível. A repressão que vem dos pais já não é mais traumática, castradora,
violenta e isto faz uma diferença. Não podemos, porém esquecer que as
proibições que a criança impõe a si mesma podem ser poderosamente mandatórias
mesmo quando os limites são dados por uma figura benigna. Esta benignidade tem
sua importância, pois evita a introjeção de uma personificação despótica. Mas,
mesmo quando o limite é colocado de forma adequada, a criança precisa exercer
uma forte pressão sobre si mesma para conter seus poderosos desejos imaturos
ainda não integrados pelo eu. A pressão emana então não do pavor/pânico
provocados por uma figura tirânica assustadora vociferando ordens, mas da força
impositiva das palavras em si. Esta nova maneira de colocar limites muda a
qualidade do recalque que de maligno passa a benigno o que permite que processos
de divisão do eu tenham um lugar mais proeminente no psiquismo, partilhando o
espaço psíquico com a repressão benigna. A normalidade contemporânea começa a se apresentar para mim
como um misto de neurótico e borderline onde convivem a onipotência mitigada,
as divisões do eu, o recalque benigno[6], a porosidade seletiva.
A
ideia de “recalque benigno” surgiu de seu contraponto, o “recalque
excessivamente traumático” (recalque maligno[7]) largamente exercido na época
vitoriana.
No recalque maligno temos um pai tirânico que exerce a
repressão com aspereza, violência, insensibilidade. A interdição fica
indissoluvelmente ligada a uma figura assustadora que, internalizada, irá
assombrar a criança como superego cruel, atacando impiedosamente o eu,
dificultando a elaboração da interdição.
No “recalque
benigno” a interdição é colocada com firmeza, mas sem desabrimento e com a
brandura possível, o que permite sua elaboração. Sabemos que a interdição ao se
defrontar com os intensos impulsos primitivos infantis perde o seu caráter de
suavidade para que os impulsos possam ser detidos. É comum ouvirmos uma criança
falando para si mesma diante de um objeto ou ato interditados um “não pode”
repetidas vezes, em um tom autoritário, com voz de comando. A suavidade
paternal transforma-se em severidade impositiva. Porém a figura dos pais
mantém-se benigna e assim é internalizada. A severidade e o rigor ficam
colocados na interdição ela própria e não naqueles que a exerceram. No primeiro
caso os bebês (as crianças) internalizam a proibição respeitando seus processos
de homeostase subjetiva. No segundo caso há uma imposição castradora que não
respeita o tempo de equilibração do bebê invadindo seu psiquismo e lá deixando
sua marca danosa. Uma marca diferente daquela benigna que o próprio bebê se
coloca, pois a que ele se coloca está dentro de suas possibilidades de suportar
o trauma sem uma quebra significativa da continuidade de ser.
Após todas essas reflexões atrevo-me a vislumbrar
num horizonte utópico a figura do Homem Transicional. Este Ser terá tido uma
mãe suficientemente boa possibilitando-lhe a internalização de valores
femininos que persistem na vida adulta por não se defrontarem com a castração
paterna, mas sim com a colocação graduada de limites tanto do pai quanto da
mãe, ambos realizando uma mesma tarefa que poderíamos chamar de masculina. Isso
aconteceria com mais frequência nas camadas sociais citadinas e esclarecidas.
Por outro lado vemos nessas mesmas camadas o homem exercer o papel feminino de
cuidar do bebê. Haveria, pois, um intercâmbio dos papéis masculinos e femininos
que tanto poderiam ser exercidos pelo homem quanto pela mulher. É preciso,
porém, assinalar que há diferenças sutis entre o feminino/masculino da mulher e
o masculino/feminino do homem. Citarei uma dessas diferenças: a gestação e a
amamentação ao seio pertencem exclusivamente à mulher e estabelecem um forte e
indelével vínculo entre mãe e bebê o que pode vir a criar futuras dificuldades
em “soltar” seu rebento para os perigos da vida em geral e do social em
particular, só ultrapassados com esforço e com ajuda do pai para quem não é tão
custoso expor o filho a esses perigos. Um exemplo: a mãe ao proibir o filho de
velejar encontra um pai que diplomaticamente interdita a proibição levando-o ao
mar. Este é um tipo de limite que deverá ser distinguido da colocação de
limites em geral, pois se refere ao processo de evolução de um ser humano que
passa, com a ajuda da ação balanceada dos pais, de uma situação de fusão e
simbiose materna (“dependência absoluta e relativa”) ao maturando processo de
responsabilização pelos seus atos (“rumo à independência”). Seria o equivalente
benigno da castração freudiana.
No final das contas o menino que teve
pai e mãe com as características acima apontadas pôde amenamente assimilar os
modos de ser feminino e o de fazer masculino vivendo simultaneamente o objetivo
e o subjetivo. Essa criança virá a ser, se nada atrapalhar sua trajetória, o
Homem Transicional, cujo habitat será na maior parte do tempo, o espaço
potencial, nele aprendendo a balancear o subjetivamente concebido e o
objetivamente percebido. Os pratos oscilarão entre processos borderline e
neuróides numa contínua variação de ambos.
Uma
observação final: os sinais do advento do Homem Transicional estão inseridos em
um contexto mais amplo no qual indícios de transformações em outras áreas
(econômica, social, política, cultural, etc.) estão presentes. As mutações
acontecem em bloco e estão intrinsecamente ligadas. O Homem Transicional só
poderá vingar como parte das transformações globais da sociedade.
Nahman
Armony
[1]
Ver “As palavras e as coisas” de Michel Foucault. Editora Martins Fontes de São
Paulo.
[2]
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1985
[3]
DARWIN, C. (1859). “A origem das espécies”. E-book, Porto: Lello&Irmãos
Editores. Publicações Europa-América. 2003.
[4]
WINNICOTT, D.W.: Objetos transicionais e
fenômenos transicionais IN: “O Brincar e a Realidade”. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1975.
[5]
___________________(1949): A Mente e sua
relação com o Psicossoma IN: “Da Pediatria à Psicanalise”. Rio de Janeiro:
Imago Editora,2000.
[6]
WINNICOTT,D.W. (1965) “O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do
indivíduo dentro da família), p.105, do livro “Explorações psicanalíticas”,
Editora Artes Médicas, 1994.
[7]
Ibidem.