Em
um artigo apresentado na SPID em 1985 propus-me acompanhar a evolução histórica
da clínica psicanalítica. Dele o que aqui nos interessa é a asserção de que em
certo momento de sua trajetória, a psicanálise deslocou-se do eixo
interpretativo para o covivencial. E o holding é parte do conjunto de ideias
que compõem o conceito de covivência. A
afirmação de tal deslocamento foi uma ousadia, pois ia de encontro à
centralidade da interpretação na psicanálise tão bem expressa na frase de
Roudinesco-Plon que no “Dicionário da Psicanálise” escrevem: “a interpretação acha-se no cerne da doutrina
e da técnica freudiana”, repetindo com outras palavras o que dizem Laplanche-Pontalis
em seu “Vocabulário da Psicanalise”. Minha colocação anunciava uma mudança de
paradigma o que criou grandes resistências nas hostes psicanalíticas. Acredito
que o medo de perder as raízes da psicanálise foi um dos fatores da revolta
indignada da maioria do auditório. De lá para cá houve muitas transformações na
teoria e na abordagem psicanalítica. Portanto não será mais tão estranho
ouvir-me dizer da possibilidade de usar qualquer um dos paradigmas ou uma
composição deles como ativadores de nossa conduta psicanalítica adequada à
situação clínica em curso. Darei dois exemplos clínicos para tornar meu
pensamento mais carnal.
1ª.
vinheta clínica: Meu analisando tem dificuldade de contar um acontecimento, mas
por fim, decide fazê-lo. Depois de um período de hesitação fala de uma vitória sua
após seu engajamento numa longa luta. Ao terminar de relatar o episódio
honorável diz “eu não ia contar, mas contei”. Imediatamente me vem à mente uma
decepção marcante em sua vida: ao passar no vestibular pretendeu fazer uma
festa e o pai negou, pois o irmão tinha sido reprovado e ele, pai, não queria
que o filho não aprovado se sentisse humilhado. Eu tinha a opção de interpretar
comparando o episódio passado com seu pai à sua dificuldade de me contar sua
vitória ou – e foi o que fiz – oferecer-lhe um holding que não havia tido.
Falei então: “seu triunfo muito me alegrou e me deixou feliz”. Ele ficou
emocionado a ponto de lhe virem lágrimas aos olhos. Permaneceu por um tempo
quieto com as lágrimas escorrendo lenta e silenciosamente. Passado este tempo trouxe
o assunto que pretendia examinar comigo.
Neste exemplo colocou-se para mim a questão de
ou dar holding ou uma interpretação. Uma coisa excluiria a outra. Mas os
defensores da ubiquidade da interpretação no curar psicanalítico poderiam olhar
minha intervenção de outro ponto de vista; ao expressar minha alegria por sua
vitória eu estaria realizando um “ato interpretativo” que falava de um pai que o
teria desconsiderado e diminuído. Seria, portanto, uma interpretação. Seria? Em
minha opinião trata-se de uma desnecessária discussão acadêmica. Aqueles que
consideram que as raízes da psicanálise só se mantêm preservando os termos
originais alcunharão meu procedimento de “ato interpretativo”, defendendo esta
ideia até a morte. Para aqueles que consideram mais conveniente marcar a
diferença entre o anterior e o novo (no exemplo clínico acima o procedimento
clássico será chamado de interpretação e o procedimento novo de vivência
compartilhada ou covivência) é preferível usar as duas nomenclaturas, uma para
cada procedimento clínico. Vale a pena citar aqui um trecho da carta que
Winnicott escreveu para Melanie Klein em 17 de novembro de 1952 e que se
encontra na p.31/32 do livro “O Gesto
Espontâneo”: “Pessoalmente, acho que
é muito importante que seu trabalho seja reafirmado por pessoas que façam
descobertas à sua própria maneira e que apresentem o que descobrem na sua
própria linguagem. É apenas desse modo que a linguagem será mantida viva. Se
você estipular que no futuro apenas a sua linguagem seja usada para a afirmação
das descobertas de outras pessoas, então a linguagem se torna uma linguagem
morta, como já se tornou na sociedade”.
Em
1923 no ensaio “O Ego e o Id”, [na p.32,] Freud se pergunta “Como uma coisa se torna pré-consciente?”
e responde: “Vinculando-se às
representações verbais que lhe são correspondentes”. Na década anterior
(1915 na seção “O Inconsciente”, [p.230]) ele já havia abordado esta questão
quando escreve: “Agora parece que sabemos
de imediato qual a diferença entre uma representação consciente e uma
inconsciente.....a representação consciente abrange a representação da coisa
mais a representação da palavra que pertence a ela, ao passo que a representação
inconsciente é a representação da coisa apenas....Uma representação que não
seja posta em palavras, ou um ato psíquico que não seja hipercatexizado,
permanece a partir de então no Ics. em estado de repressão”. Trazendo estas
ideias de Freud para a clínica meu entendimento é: quando o analista interpreta
o que para o analisando parece exótico, absurdo, não faz sentido, mesmo assim,
quando o analisando acredita no analista guarda o dito como representação de
palavra em sua mente, porém sem ligá-lo à realidade-coisa. No trabalho
psicanalítico de elaboração, a representação consciente de palavra aproxima-se
da representação inconsciente de coisa até estabelecerem um liame quando então
ocorre o verdadeiro conhecimento, um insight. Transpondo para a terminologia de
Winnicott: na situação em que mente-corpo-psique não estão integrados, a interpretação
pertence ao campo do mental (intelectual); mas quando mente-soma-psique estão
integrados mesmo a interpretação clássica provoca uma comoção no verdadeiro
self. Na vinheta acima relatada, uma interpretação clássica teria, naquela
situação, o efeito de dissociar a mente do psiquessoma, o que foi evitado
quando me engajei por inteiro na experiência plena da situação que estava sendo
vivida. Minha intervenção atingiu em cheio o campo experiencial tendo por isso
mesmo um efeito imediato, poderoso e, ousaria acrescentar, mais duradouro.
Bleger faz uma distinção entre interpretação
clivada e interpretação não-clivada. Na não-clivada o terapeuta estaria lidando
com um núcleo aglutinado ainda não discriminado: portanto a referência é uma
situação primitiva inicial de indiscriminação como é a fusão mãe-bebê desta
fase. Nesta situação o analisando não entenderia e nada ouviria que
representasse uma exclusão do analista da experiência vivida em união. Não
caberia uma interpretação clivada, aquela que distingue uma figura do passado
da figura presente do terapeuta. Na interpretação (que prefiro chamar de
intervenção) não clivada o analista responde vivencialmente ao que está sendo
experienciado pelo par terapêutico. O analista é evocado como Personificação
Imaginária operando no nível subjetivo.
Os
conceitos de relação de objeto e uso de objeto de Winnicott também nos servem
para distinguir o comportamento vivencial do comportamento interpretativo. Na
relação de objeto o analista não é visto na sua realidade pessoal; ele pertence
ao mundo interno do analisando e não conseguirá ser percebido como um
interlocutor externo. Suas intervenções serão sentidas como parte da dinâmica
de suas relações com as Personificações Imaginárias e não de sua relação com
uma pessoa real. Será preciso que se acrescente ao analista como Personificação
Imaginária pitadas crescentes de Realidade para que o analista possa ser usado
como uma pessoa externa, fora do controle onipotente do analisando. Este é um
processo transicional em que se acrescenta o objetivamente percebido ao que era
exclusivamente subjetivamente concebido. É quando a interpretação transmite uma
maior convicção e vigor, pois ela é ao mesmo tempo compreendida e vivida. Com
um analisando que já esteja vivendo num campo transicional, dependendo do
contexto, tanto poderá funcionar o comportamento interpretativo quanto um
comportamento co-vivencial. A pergunta que agora coloco é a seguinte: seria
necessário estar consciente da própria dinâmica para manter o ganho vivencial?
Ou mesmo sem ter uma consciência desta dinâmica o ganho igualmente se manteria?
Em outras palavras: a interpretação é sempre necessária ou bastam as
transformações advindas daquilo que é vivido entre duas pessoas? Eu me inclino
para a ideia de que a conscientização pode fortalecer o ganho vivencial, mas
que nem sempre é necessária (nem mesmo possível) para manter o jogo de
transformações.
Comecei
distinguindo claramente holding (como parte do comportamento covivencial) do
comportamento interpretativo, mas logo apareceram relações que aproximam estes
dois conceitos. A vida não aceita as dicotomias, as separações claras,
distintas e absolutas que colocamos em nossas teorias, pois é ela
demasiadamente complexa, sinuosa, criativa, surpreendente. Para tentar dar
conta dessa riqueza será necessário, após realizar o trabalho de clarificação
iluminista e socrático-platônica dos conceitos, misturá-los, entrelaçá-los,
tentar dar conta semântica de seus atravessamentos. A isto poderíamos dar o
nome de transconceituação a exemplo do conceito de transdisciplinaridade. Mas
isto me soa como excessivo e pretensioso. Talvez fosse melhor falar de paradoxo
em que duas orientações que na dicotomia cartesiana seriam opostas, se
atravessam e se transformam em uma unidade quando olhadas de uma perspectiva
holística. Darei um exemplo clínico em que apresentarei uma interpretação dada
em ambiente de holding em fase de dependência relativa, com o analista e o analisando
transitando no espaço transicional; o analista está por um lado ungido pelo
analisando como Personificação Subjetiva (subjetivamente concebido), mas também
visto na sua realidade humana (objetivamente percebido). Vamos à vinheta:
2ª
vinheta clínica: Jota me cumprimenta da maneira habitual (gentilmente) e pela
primeira vez apossa-se de duas almofadas nas quais se recosta. Fica longo tempo
em silêncio. Finalmente diz que há algo de estranho.... o quê? Não sei... o
silêncio... Conta um sonho que interpreto como indicativo de assimilação,
estranheza e aceitação surpresa do modo de atuação psicanalítica que venho
adotando: esquadrinhar os fatos indo às minúcias dos acontecimentos. É um sonho
prazeroso em que a investigação finamente pormenorizada é bem-vinda. Faço então
perguntas sobre um acontecimento relatado na sessão anterior: sua relação
amorosa com uma mulher que conhece há muitos anos e com quem teve intimidade
sexual por um período de tempo. Reencontrou-a há poucos meses (no máximo dois)
e estabeleceram uma relação afetiva em que toda noite, convidado por ela ia à
sua casa. Assistiam juntos a um filme, não se tocavam e iam dormir em quartos
separados. De repente ela deixou de convidá-lo e de atender aos seus
telefonemas. Pergunto o que havia acontecido, ou o que havia mudado. Nada, não
sabe. Todos estes pormenores são
conseguidos à custa de muitas perguntas. O interrogatório continua. Consigo
então saber que na última noite em que esteve com ela levantou-se para dormir
antes do filme terminar. Este gesto deu-lhe uma grande e prazerosa sensação de
liberdade. Continuando meu inquérito soube que foi a primeira vez que a deixou
sozinha vendo um filme muito embora alguns dos anteriores também não lhe
interessassem. Quando lhe perguntei por que não tinha na ocasião se retirado
responde que o filme o estava prendendo, resposta que é exemplar quanto a seu
modo de lidar com seus sentimentos, evitando dirigi-los para seu destinatário
humano através de um deslocamento para objetos indiferentes. Finalmente
transmito para ele minha hipótese interpretativa: o que estaria tirando a sua
liberdade seria a força atribuída ao desejo da companheira, pois ele se sentia compelido
a ficar a seu lado vendo um filme que o estava entediando. Até então ele tinha
atendido a este anseio. Quando finalmente realizou um ato de rompimento da
simbiose escravizadora, ela o dispensou, pois o que ela necessitava era de uma
pessoa submissa ao seu desejo. Diante desta interpretação o rosto de Jota, até
então impassivelmente simpático e bondoso, se entristeceu. Ficou longo tempo de
cabeça baixa com uma expressão de sofrimento. Passou-se algum tempo e ele, já
recomposto e semi-sorridente, perguntou como eu estava me sentindo na sua presença.
Respondi que estava sentindo simpatia por ele e perguntei como ele estava se
sentindo. Relaxado e aliviado, foi a resposta. Não soube dizer por quê. Eu
então fiz um breve retrospecto dos acontecimentos dinâmicos ocorridos na sua
relação com a companheira e acrescentei que seu relaxamento e alívio teriam a
ver com a possibilidade que ele tinha tido de sentir tristeza por um
acontecimento tormentoso.
Comentário:
se eu tivesse dado esta interpretação anos atrás ela provavelmente não
repercutiria em seu psiquismo. Ela só pode tocá-lo por termos desenvolvido um
ambiente de holding, um holding que chamo de transicional, pois ao mesmo tempo
em que ele se sentia sustentado, aceito, acolhido, não deixava de me perceber
como um ente distinto dele, com minhas mazelas, qualidades, defeitos, etc.
Há outros
entrelaçamentos e atravessamentos possíveis dos conceitos de holding e de
interpretação que deixarei para uma próxima vez.
Nahman Armony