UM CUIDADOSO EQUILIBRIO (do meu livro "O Anverso e o Verso")

Esta é
A posição exata
Em que as coisas devem ficar.
Nem para lá, nem para cá.
Um milímetro a mais
E o mundo desmorona.

Há um secreto acordo
Entre o céu e a terra
Só conhecido dos Deuses
Que habitam o fundo do Desejo.

Há um acordo secular
Cuidadosamente traçado
A escorar
As delicadas missões
As centenárias soluções
Do Grande Problema
Da vida
Vivida
Discretamente
Só para o gasto.

            Nahman Armony                    

                            

O SUPEREGO SOB NOVA ÓTICA


DO UNIVERSAL/PARTICULAR AO LOCAL/GLOBAL

 

Quando Freud criou o conceito de superego vivíamos uma subjetividade marcada pela dicotomia, pelos limites precisos, pelas relações universal/particular, etc. Os conceitos psicanalíticos eram forçados a entrar em uma epistemologia de exclusão, de não-contradição. Acontece que os fenômenos que o dispositivo analítico ia criando/revelando cabiam cada vez menos em tal epistemologia, exigindo um esforço de acomodação, de esmagamento cada vez maior. O crescimento do volume fenomênico acabou por estourar as costuras da velha epistemologia derramando-se em um novo pensar, habitado pelo paradoxo, pela inclusão, pela complexidade e onde o universal/particular é substituído pelo local/global. Os estudos winnicottianos sobre a formação da moral já pertenceriam a essa nova subjetividade. Este trabalho pretende articular as transformações éticas e morais que vão de Freud a Winnicott com o caminho que a subjetividade de nossos tempos tem percorrido indo do universal/particular ao local/global.

 

       A noção de global respeita a singularidade do local, permitindo que os vários particulares entrem em conexão segundo uma dinâmica de relacionamento intrínseca, imanente; o global é uma resultante dos locais e, ao mesmo tempo, constitui uma realidade “ao lado”[1](como se fosse um local) que interage com os locais. Já a palavra globalizaçào serve para, disfarçadamente, disseminar uma ideologia prévia, onde certos aspectos são repudiados e outros impostos. Tratar-se-ia, neste último caso, ainda de uma maneira de impingir um modelo arrogante e excludente, só que sob a roupagem contemporânea da globalização. Quem bem explica esta questão é André Martins de quem reproduzirei dois trechos de seu trabalho “Relações local-global nas redes transdisciplinares: globalização e singularidade”:

 

“Em nossa contemporaneidade recente, o arrefecimento social da pretensão à Verdade (digo social, pois na Academia parece-me ainda reinar a referência sistêmica), a falência dos totalitarismos, o descrédito relativo dos universais, instauraram, no lugar das relações universal-particular/parte-todo, relações do tipo local-global, onde o global, não se impondo mais como a verdade do particular, dissemina-se em rede, influenciando localmente os diversos particulares. As tentativas de globalização configuram-se neste novo quadro como tentativas do imperialismo em uma versão contemporânea. Não mais autoritário propriamente dito, mas inserido e legitimado na democracia; não mais em nome de alguma bandeira, no entanto apresentando-se como único tempo e espaço reais, viáveis. Não mais o universal, pois que a globalização não pretende ser a verdade dos particulares locais - mas apenas a “necessidade” dos locais -, e não exatamente de todos (embora queira ser legitimada pela maioria, visando o consenso e a disseminação de sua ideologia pela sedução) mas de modo a que simplesmente dêem lucro. Não mais a parte e o todo, pois que o global imposto pela globalização se dá por rede, visando atingir ao maior número possível de localidades indiferenciadamente. A intenção do universal era a de impor-se sobre os particulares, ainda que o fosse contra eles (já que era o universal que sabia a verdade do particular, e não o próprio particular); a intenção da globalização é de impor-se junto ao particular, apresentando-se como inevitável, procurando convencê-lo disto, seduzi-lo. Ao invés de extirpar ou exterminar a diferença, a globalização pretende excluí-la, pô-la fora do mundo (mas não ao ponto de que ela deixe de permitir e nutrir e propiciar fundos para a própria globalização, posto que sem miséria não há riqueza, sem exclusão não há inclusão, etc.).....  não há uma imposição natural do global sobre o local; ao contrário: certo, todo global influencia os locais, mas deles é constituído. Sendo a singularidade uma realidade constitutiva dos indivíduos e das sociedades, o global será sempre o reflexo destas diversas singularidades locais” [2].

 

         O superego freudiano com suas características de implacabilidade, impositividade, autoritarismo, severidade, subtaneidade, crueldade, universalidade, denuncia-se como pertencente à mesma cepa da subjetividade patriarcal imperialista. Um superego que reproduz uma moral já pronta e que deverá ser internalizado por cada sujeito. Imagino este superego como um grande chapéu cobrindo a humanidade, e projetando sua sombra sobre cada indivíduo, obrigando cada um a uma luta ingente para dele se libertar. O superego freudiano reproduz uma moral conveniente à manutenção do sistema de dominação de povos e pessoas. Evidentemente Freud não inventou tal superego; ele surgiu do trabalho teórico realizado por Freud, tendo por principal matéria-prima os psiquismos que se lhe apresentavam, trabalho este que, evidentemente, só pôde iniciar-se a partir dos meios que a época lhe facultava. A concepção de superego de Freud é portanto um testemunho das relações de poder e, mais amplamente, da subjetividade de sua época dentro da qual a relação superego/ego é uma relação universal/particular. Freud encara o superego como uma herança da espécie, passada de geração a geração sobredeterminando o superego individual de cada grupo geracional. Citando Freud:

“Já que o pênis - no sentido de Ferenczi(1924) - deve seu investimento narcísico extraordinariamente elevado à sua significação orgânica para a sobrevivência da espécie, pode-se conceber a catástrofe do complexo de Édipo—o abandono do incesto, a instituição da consciência moral e da moral mesma—como um triunfo da espécie sobre o indivíduo.”[3]

        

Temos aí um universal - a abstração “superego da espécie” - a ser introjetado por cada indivíduo particular que a ele se submete. Esta relação dominação/submissão é um aspecto da subjetividade capitalística.

         Na época de Freud a sociedade apresentava uma face moral rígida com regras a serem cumpridas. Mesmo transgredidas por alguns, elas permaneciam como pilares consensualmente aceitas pela sociedade. A idéia prevalente era de que a lei era para ser cumprida, e não contornada que é como hoje, geralmente, se pensa. Esta, porém, era uma idéia a ser consumida pelos menos abonados; enquanto esses, então inocentes bons-moços, se distraiam com a honestidade e honradez, certas elites refestelavam-se nas transgressões, sem jamais se esquecer de, empenhadamente, disfarçar seus rastros por trás de uma face moralista e legalista. Era uma maneira de manter as classes menos favorecidas engessadas, recusando-lhes o poder de ação. A dupla-moral vitoriana era uma estratégia de dominação de povos e indivíduos apoiada em uma moralidade rígida a ser seguida pelas pessoas e povos colonizados e dominados. Uma moralidade que se criava através de uma atividade que Freud capturou conceitualmente na figura do superego. O avanço do regime do local/global contribuiu para o esboroamento da dupla moral vitoriana. E aqui aproveito para prestar minha homenagem ao  grande jogador de futebol Gerson, grande craque de um passado recente, usando-o como exemplo paradigmático de um local que se dissemina no global. O seu “slogan” “levar vantagem”, contribuiu para o desmascaramento da dupla moral, facilitando a difusão da atuação singular, criando intensidades e nós de resistência ao domínio do imperialismo autoritário do universal/particular.

         Freud é uma extraordinária testemunha de uma sociedade cruel e implacável que valoriza um ideal de ego, modelo adquirido numa conjuntura superegóica de autoridade e medo e que, portanto, guarda características de imposição e exterioridade.

         Winnicott testemunha uma outra época e é de se esperar, portanto, que sua concepção de superego seja uma recriação afinada com as transformações sofridas pela subjetividade. E realmente, sem dispensar o superego freudiano (que ainda faz parte de nossa subjetividade como o atestam as relações autoritárias de poder) Winnicott fala-nos de um outro modo de alcançar a moralidade (ou, se preferirmos, a ética) diferente de uma intervenção, dura, violenta, súbita, agressiva, cruel, própria da resolução edípica cortante. Um modo que se passa nas relações duais e que tende mais ao suave, gradativo, amoroso. Um modo que poderia ser dito como tendo uma direção mais de dentro para fora, ao ser confrontado com a direção anterior, mais de fora para dentro, mas que ao ser olhado em sua especificidade apresenta-se como um processo que não é nem interior nem exterior; estaríamos, isto sim, em um espaço potencial de experiências transicionais, ao mesmo tempo interior e exterior sem ser nenhum dos dois; trata-se de um terceiro espaço, um espaço paradoxal, um espaço de trânsito e de transição. Neste espaço potencial produzido pela relação mãe-filho suficientemente boa vai-se, gradativamente, formando uma moral flexível que anatematizada pela subjetividade clássico/moderna, conquista aos poucos seu espaço em um mundo de variabilidade cada vez maior, em um mundo cujas rápidas transformações evidenciam e impõem cada vez mais uma ética criativa, singularizada para cada situação, e que, para  a subjetividade moderna aparece de um modo - no dizer de Bruno Latour - “oficioso”. A este propósito, vale a pena reproduzir um trecho de seu livro “Jamais fomos modernos”:

“Sob o julgamento moral por denúncia, há outro julgamento que sempre funcionou por triagem e seleção. Nós o chamamos de combinação, combinazione, mamata, mas também de negociação e consenso. Péguy dizia que a moral flexível é infinitamente mais exigente que a moral rígida. Ocorre o mesmo com a moral oficiosa que seleciona e reparte incessantemente as soluções práticas dos modernos. Ela é desprezada porque não permite a indignação, mas é ativa e generosa porque segue as inúmeras sinuosidades das situações e das redes. É desprezada porque leva em conta os objetos que não são nem questões arbitrárias de nosso desejo, nem tampouco simples receptáculo de nossas categorias mentais. Da mesma forma como a Constituição moderna despreza os híbridos que abriga, também a moral oficial despreza os consensos práticos e os objetos que a sustentam. Sob a grandeza moral, há a triagem meticulosa das circunstâncias e dos casos”[4].

         Na assim chamada segunda tópica que encontramos mais completamente desenvolvida em seu trabalho “O Ego e o Id” e em sua conferência “A dissecção da personalidade psíquica”, Freud divide o psiquismo em três partes: ego, id e superego. Feita e bem definida esta separação dentro dos moldes clássicos da epistemologia científica do século XIX, Freud promove uma “avant-première” de uma nova subjetividade ao dizer que essas instâncias psíquicas, até certo ponto, se interpenetram. O ego é aquela parte do id que se desenvolveu no contacto com a realidade continuando, porém, enraizado no id; o superego desenvolve-se a partir do ego e está também ligado ao id por laços filogenéticos. Porém a estrutura básica destas instâncias inclui limites bem definidos entre elas, pertencendo pois ainda a uma epistemologia cartesiana. Essas instâncias assim construídas não formam um conjunto solidário, não se constituem como unidade de ação, não colaboram entre si, mas antes, digladiam-se, exigindo que o ego atue como um mediador pressionado por si mesmo (na medida em que é o representante da realidade), pelo id e pelo superego. O id facilmente entra em confronto com o superego e este, por sua vez, mantém relações de violência dominadora com o ego. O superego freudiano, em suas relações com o ego, é autoritário, punitivo, cruel. Ele castiga o ego sempre que este se afasta do ideal-do-ego. O superego exige fidelidade do ego a um ideal-de-ego, a um sistema de valores, a uma moral transmitida de geração a geração. Estamos aqui no campo do universal/particular.

         Para que surja o superego winnicottiano não-edípico, precisamos colocar em seu lugar próprio - na subjetividade moderna - a tri-partição freudiana do aparelho psíquico, deixando-a, enquanto nos for conveniente, no limbo. Agora, não estaremos mais falando de um sistema psíquico que se divide em id, ego e superego, mas de um Ser indivisível, um Ser visto como uma unidade de funcionamento, onde psique, soma, mente, afeto, emoção, atuação, se integram formando um corpomente pessoal e singular que tomará uma ou algumas das vias possíveis e necessárias para dar conta dos vários acontecimentos que afetam a pessoa como organismo vivo. A este Ser denominamos de self, ou, se acompanharmos Winnicott, de verdadeiro self:

“O conceito de um falso self tem de ser contrabalançado  por uma formulação do que poderia, com propriedade, ser denominado self verdadeiro. No estágio inicial o self verdadeiro é a posição teórica de onde vem o gesto espontâneo e a idéia pessoal. O gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação. Somente o self verdadeiro pode ser criativo e se sentir real (...) O self verdadeiro provém da vitalidade dos tecidos corporais e da atuação das funções do corpo, incluindo a ação do coração e a respiração. Está intimamente ligado à idéia de processo primário e é, de início, essencialmente não-reativo aos estímulos externos, mas primário. Não há sentido na formulação da idéia do self verdadeiro, exceto com o propósito de tentar compreender o falso self, porque ele não faz mais do que reunir os pormenores da experiência de viver”[5].

 

O self é pois, primário, singular, pessoal, espontâneo. O superego winnicottiano, já não é uma instância do psiquismo, mas sim uma função do self. O self é um si-mesmo que, no seu melhor desenvolvimento, cresce harmoniosamente, sem formar rachaduras propiciadoras de divisões e oposições internas, permitindo assim uma ação integrada, o que o torna diferente do aparelho psíquico tri-partido freudiano da segunda tópica que tem como fundamento instâncias separadas, delimitadas e em oposição. O self é um si-mesmo, em princípio integrado, que pode exercer várias funções: destaco as de apreciação e criação de valores, funções atribuídas na teoria clássica ao superego. É dessa maneira que se pode falar de um superego winnicottiano. Esta formulação eu a faço a partir de minhas reflexões sobre a obra de Winnicott até onde a conheço. Exemplificarei meu modo de reflexão através de uma frase colhida no livro “Natureza Humana” com a prévia advertência de que é o conjunto da obra winnicottiana, e não este particular exemplo, que me leva a falar de superego como função do self. O exemplo servirá de ilustração. A frase é a seguinte: “Ele (Freud) chamou os impulsos instintivos de id, e a parte do self que está em contacto com o mundo externo, ele denominou ego”[6]. Ora, se Winnicott considera que o termo freudiano “ego” pode ser visto, de sua perspectiva, como parte do self (self não pertence ao universo terminológico freudiano), então, desta mesma perspectiva o superego seria parte do self. Mas falar de “partes” seria dividir o self e recair na concepção da segunda tópica. Não sendo este o espírito do conjunto da obra de Winnicott, creio que falar de funções do self (função superegoica do self), ao invés de falar de “partes” do self, deixa-nos mais fiéis ao pensamento winnicottiano. No seu melhor funcionamento, o self seria uma unidade integrada de pensamento/sentimento/ação capaz de exercer inúmeras funções, inclusive a de superego. Não sei se esta imagem ajudará ou não, nem mesmo se é inteiramente adequada, mas veio-me à mente o gênio da lâmpada do filme Aladim de Walt Disney, um ser mutável, uma criatura vaporosa, um ente holográfico, dotado de enorme plasticidade e por isto mesmo capaz de mudar de forma de acordo com as funções a serem exercidas. Esta metáfora pode parecer inadequada, pois as palavras necessárias para descrevê-la transmitem a impressão de um self inconsistente, fragmentado. Mas se pensarmos mais detidamente, a aparência de inconsistência e fragmentação desaparecem, dando lugar às idéias de incorporal e de plasticidade. O Gênio da Lâmpada, estando garantido por um continente milenar, um talismã que é a base de sua confiança e segurança, cônscio de sua força e poder, pode justamente adquirir as mais variadas formas sem medo de nelas se perder. Ele muda quando a situação o exige e na direção por ela requerida. Mudança que não depende propriamente de volição nem de acaso, cabendo melhor no conceito de “passibilidade” de Lyotard uma palavra que nos remete a outras tantas: passível, possível, passivo, possibilidade. Passibilidade seria o passível de acontecer em referência ao corpo próprio, mas também o possível em termos de circunstâncias e contextos, um possível tanto ativo quanto passivo, limitado e aberto pelas possibilidades. O self nem é corpo imanente nem espírito ou cultura transcendente. Pertenceria àquilo que Latour chama de “terceiro estado de coisas” que são “quase objetos”:

“Digamos então que os modernos quebraram. Sua Constituição podia absorver alguns contra-exemplos, algumas exceções, até mesmo alimentava-se disto; mas torna-se impotente quando as exceções proliferam, quando o terceiro estado das coisas e o terceiro mundo se misturam para invadir em massa todas as suas assembléias. Como Michel Serres, chamo estes híbridos de quase-objetos, porque não ocupam nem a posição de objetos que a Constituição prevê para eles, nem a de sujeitos, e porque é impossível encurralar todos eles na posição mediana que os tornaria uma simples mistura de coisa natural e símbolo social”[7].

 

         O self emana dos tecidos corporais atravessando-os e envolvendo-os  como um vapor, um incorporal que é quase-causa do corporal e do social.

        Darei outra amostra de meu modo de trabalhar os textos de Winnicott. Usarei um comentário deste autor a um trabalho de Joseph Sandler intitulado “On the concept of superego” apresentado em 7 de dezembro de 1960 na reunião científica da Sociedade Psicanalítica Britânica. Este comentário foi incluído no livro “Explorações Psicanalíticas”. Rechearei o excerto de Winnicott com algumas apreciações minhas em itálico:

“Um paciente pode nos dizer, como recentemente me disse um rapaz de 20 anos, exatamente o tipo de coisas que Freud pôs por escrito e que são citadas por Sandler. Até certo ponto, esse rapaz de 20 anos estava influenciado pelo pensamento desta década [Winnicott fala aqui do superego freudiano clássico e, portanto, de uma subjetividade moderna], que é naturalmente, muitíssimo influenciada pelo trabalho de Freud. Apesar disso, foi este próprio rapaz que elaborou, em uma auto-análise, ter ele em sua mente uma instituição que estava todo o tempo influenciando-o. Isto se achava parcialmente baseado na idéia do pai, e dos genitores em combinação, e aqui ele descobriu que podia manejá-lo através do desafio. [Apesar de imerso na subjetividade dos anos 60, tal como ela circulava entre os psicanalistas de então - predominantemente moderna, mas já com tendências a uma nova subjetividade - Winnicott traz-nos um paradoxo inovador - criar o que já existe. Neste momento o paradoxo incide sobre aquilo que ainda se situa na subjetividade moderna - o superego freudiano  clássico. O que virá a seguir falar-nos-á de uma outra subjetividade, onde o superego modelar se recolhe para dar lugar a um self criativo]. Parte se achava baseado, no entanto, em um self analisante e observante muito pessoal [Este self analisante e observante pessoal é um aspecto funcional do verdadeiro self cuja ascendência teórica é o superego freudiano] que estudava tudo o que estava acontecendo na vida dele e capacitava-o a passar por isso sem demasiado sofrimento. Isto podia ser chamado de superego...”[8].

 

Não sei se aqui poderíamos aproximar o self analisante e observante do “observador participante” de Sullivan. Eu diria que o self observante/analisante não deverá ser dividido em uma parte que vive e outra que observa; mas que, sim, vive, observa e analisa, tudo ao mesmo tempo. É este aspecto observante e analisante que permite falar do self como superego. Porém é preciso ter claro que não se trata de uma divisão no self, mas de um funcionamento integrado onde cabe a vivência, a análise e a observação. Eu chamaria a este aspecto de análise e observação de capacidade de hierarquização e contextualização; e colocar em contexto depende da atividade do self, isto é, uma atividade total que inclui os diversos modos do humano: pensamento, emoção, ação. Ao hierarquizar e colocar acontecimentos em contexto a pessoa torna-se capaz de realizar atribuições de valor relativas a situações específicas. Trata-se, portanto de um superego singularizado. Diferentemente do superego freudiano que é um superego da espécie - um universal -, este é um superego local, produtor de valores singulares para questões singulares contextualizadas. Este superego local forma-se na relação suficientemente boa de uma criança singular com sua mãe idiossincrática.

        Para deixar de me preocupar com possíveis lacunas que o livre desenvolvimento das idéias podem deixar em sua esteira, trabalharei sobre 4 aspectos da teoria winnicottiana. Acredito que uma compreensão mais ampla destes aspectos já introduzidos neste trabalho, permitirá uma apreensão melhor de suas noções de superego, de certo/errado, de moral, de ética.

1- A questão da criatividade. O que é criatividade para Winnicott? Não é, obrigatoriamente a criação de algo ainda não existente na cultura, embora possa sê-lo. O protótipo do significado de criação encontra-se naquilo que Winnicott chama de “momento de ilusão”. Esta noção foi criada a partir da situação de amamentação, mas ganhou o status de conceito. A criança com fome deseja o seio, alucina o seio e, quando este surge, sua sensação é a de tê-lo criado. Ela, portanto, criou um objeto que já lá estava. Estamos em pleno paradoxo. O objeto já existe e, ao mesmo tempo, foi criado. Este passo acontece em um espaço potencial que não é nem externo nem interno sendo os dois ao mesmo tempo. Outro paradoxo.

2- Desta maneira o objeto criado é, ao mesmo tempo, apresentado ao bebê pela mãe. Esta é outra das funções da mãe. Apresentar os objetos do mundo ao seu filho. Mas estes objetos só deverão se tornar conhecidos pelo filho quando este estiver pronto para criá-los. Por isto mesmo, não devem ser impostos, mas apenas apresentados. Se o filho já puder recriá-los, ele os acolherá. Quando Winnicott fala de objetos ele se refere não só a objetos materiais como também a objetos abstratos. As concepções morais, religiosas, valorativas são tão igualmente apresentadas ao ser humano em desenvolvimento quanto os objetos materiais. E só deverão ser incorporados quando o ser humano puder (re)criá-los, o que exclui a imposição. Duas citações, uma de Freud e outra de Winnicott ilustrarão a diferença entre imposição e apresentação e mostrarão a pertinência de cada uma das teorias do superego a duas subjetividades diferentes em uma das quais encontraremos o universal/particular enquanto na outra nos depararemos com o local/global.

Freud e a imposição:

“O superego conservará o caráter do pai, e quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rapidamente se produziu a sua repressão (pela influência da autoridade, a doutrina religiosa, a educação, a leitura), tanto mais rigoroso será depois o império do superego como consciência moral, talvez também como sentimento inconsciente de culpa, sobre o ego”[9].

 

Em uma citação anterior vimos que este complexo de Édipo rapida e violentamente implantado, produz um superego modelar, o superego da espécie.

 

Winnicott e a apresentação:

“Fica claro que, de acordo com a teoria que uso em meu trabalho, você está possibilitando ao seu filho desenvolver um sentido de certo e de errado ao ser uma pessoa confiável nessa fase formativa inicial das experiências da vida dele. Se não tiver êxito com o seu bebê desse modo (e certamente se sairá melhor com um bebê do que com um outro), terá de tirar o melhor proveito possível de ser estritamente um ser humano, embora saiba que coisas muito melhores poderiam estar acontecendo no processo de desenvolvimento natural da criança. Se fracassar por completo, então deve tentar implantar idéias de certo e errado através do ensino e do treinamento assíduo. Mas isso é um substituto para o procedimento realmente válido, é uma confissão de fracasso e você vai detestar essa idéia; e, em todo caso, esse método só funciona desde que você, ou alguém atuando no seu lugar, esteja presente a fim de impor a sua vontade. Por outro lado, se puder dar a partida para o seu bebê de modo que, através da sua confiabilidade, ele desenvolva um sentido pessoal de certo e errado, em vez de medos primitivos e toscos de retaliação, você descobrirá mais tarde que pode reforçar as idéias de seu filho e enriquecê-lo com as suas próprias idéias”[10].

 

A apresentação dos objetos do mundo à criança só é eficaz se esta pôde desenvolver uma confiança básica no ambiente. E esta confiança básica só surge quando há uma relação suficientemente boa com as pessoas significativas.

         A teoria usada por Winnicott emerge de uma subjetividade contemporânea diferente da subjetividade produtora da teoria do superego freudiano. O certo e o errado, figuras ligadas ao superego, dependem não mais de uma repressão súbita e de uma aceitação a-crítica dos valores superegóicos do pai e da sociedade, mas da relação de confiança com as figuras primitivas da vida do ser humano. Essa relação de confiança permite o desenvolvimento gradual (diferente da subtaneidade edípica) das idéias de certo e errado, portanto, do superego. Essa palavra superego pode ser considerada útil, pois nesta teoria, refere-se aos momentos em que o self total ocupa-se predominantemente dos problemas de valor. Não se trata mais de uma instância do psiquismo - o superego - que por se especializar em moral, encarrega-se dela, mas do psiquismo voltando-se, em sua totalidade, para questões de valor.

3- Culpa e “concern”. Interno e externo. A questão da “bondade”.

         Outro aspecto a ser estudado é a questão do sentimento de culpa. E aqui, duas distinções podem ser realizadas. Uma refere-se a uma diferença mais geral entre a corrente freudiana e kleiniana. Para a primeira, a culpa está colocada na relação do superego com o ego. Trata-se de uma punição imposta pelo superego ao ego por este não corresponder ao ideal-de-ego. Sendo, o superego freudiano basicamente o resultado de uma identificação do menino edípico com o superego do pai, que, por sua vez, carrega a experiência da espécie, podemos dizer que tal superego forma-se do exterior para o interior. Para não sermos injustos com Freud, é preciso que se diga que a experiência de vida comunitária da espécie produz uma moral que transita entre superego e id, dando-lhe um caráter de pulsão - portanto indiividual/particular - e de modelo - portanto universal. Porém o id, embora impulso, pulsão - e aqui não podemos deixar de pensar em singularidade no seu sentido pré-individual - em sua área de conexão com o superego, torna-se modelar, sendo o encarregado de transmitir, geneticamente, através do superego, as experiências passadas da espécie humana no que diz respeito à vida grupal. Já para a escola kleiniana a culpa não depende de um modelo externo ao indivíduo, de um superego portador da moralidade da espécie a exigir do ego esta moralidade e atacando-o quando não obedecido. A culpa surge do interior da criança quando ela, entrando na posição depressiva, percebe que Mãe-Boa e Mãe-Má são uma e só pessoa.

         Existe porém uma outra diferença, esta específica da teoria winnicottiana. Já não se trata de dois modos de encarar a culpa - a externa freudiana e a interna kleiniana. Winnicott confronta a culpa não mais com outra culpa mas sim com o “concern”. O “concern” resulta da unificação da mãe-objeto - alvo dos instintos do bebê - com a mãe-ambiente - com a qual o bebê estabelece uma relação tranqüila. O mesmo processo invocado para explicar a culpa kleiniana, explica o “concern” winnicottiano. Ao unificar mãe objeto e mãe-ambiente, até então dissociadas, o bebê teme perder a mãe ambiente se o seu amor excitado destruir a mãe-objeto. Mas, deixemos que Winnicott nos fale sobre o “concern”:

“A palavra “concern” emprega-se para denominar de modo positivo um fenômeno que de modo negativo chamaríamos de culpa. O sentimento de culpa está constituído pela angústia aliada à ambivalência e implica um certo grau de integração do ego do indivíduo que possibilita a retenção de uma boa imagem objetal junto com a idéia de sua destruição. O “concern” dá a entender uma maior integração, assim como  um maior crescimento, e se relaciona positivamente com o sentido individual da responsabilidade, especialmente no que se refere às relações nas quais hajam penetrado os impulsos instintivos”[11].

 

A culpa freudiana é agressiva, violenta, destrutiva. Um resultado do ataque do superego ao ego. Já o “concern” winnicottiano deve ser entendido como “cuidar de”, “importar-se com”, “zelar por”. Uma linguagem que nos remete a associações/sentimentos ligados à amorosidade e não à agressividade. No seu artigo “Moral e Educação”, Winnicott, por mais de uma vez aponta para a importância da bondade:

“As religiões deram muita importância ao pecado original, mas nem todas souberam criar a idéia de uma bondade original” (...)“Na realidade, a educação moral não dá resultados a não ser que a criança tenha criado, seguindo um processo natural de desenvolvimento, em si mesmo aquilo que, colocado no céu, chamamos Deus. O êxito do educador moral depende de que tenha havido este desenvolvimento na criança, permitindo aceitar o Deus do educador como projeção da própria bondade que forma parte da criança e de sua experiência real de vida”[12].

 

A globalização, e o universal/particular são, com muita facilidade, usados para oprimir povos e pessoas; já o local/global, faz-nos pensar em uma direção que embora vá para os dois sentidos, do local ao global e vice-versa, também nos desperta a idéia de “origem local”, núcleo de origem pontua”, núcleo de resistência à uniformização, à captura pelo universal, à globalização. Se pensarmos em seres humanos, muito mais facilmente a bondade surgirá do local/global do que do universal/particular, pois no universal/particular o pensamento guia-se por uma abstração/generalização do ser humano e não pelo ser humano individual ao qual o local/global nos remete. Podemos aqui novamente falar da noção de zelo, de “concern” de Winnicott. Um zelo que nasce do medo de perder a mãe ambiente suficientemente boa, de perder a relação amorosa com uma mãe amorosa, mas que também está penetrada por um conjunto de experiências que levam à vivência/noção de bondade. Esta idéia de bondade, embora possa parecer piegas e deslocada em um ensaio transdisciplinar, na verdade torna-se fundamental em um planeta onde predomina a destruição, o instinto de subjugação. Trata-se de valorizar a vida e, neste momento, valorizar a vida implica em falar também na bondade dos seres humanos, embora eles não sejam e não possam ser apenas bondosos. Refiro-me aqui não a uma bondade sentimentalóide, mas a uma bondade conseqüente a uma meditação sobre o desenvolvimento do ser humano e sobre a catastrófica situação atual de nossa sociedade. Platão não hesitou em falar do bem e do amor, tendo mesmo afirmado que qualquer existente deveria ser objeto da filosofia. Não há razão para deixar de pensar transdisciplinarmente a bondade, mesmo que corramos o risco de sermos tachados de piegas, mesmo que a bondade pareça estar inteiramente fora de lugar em um mundo cruel, impessoal e impiedoso.

4- Culpa e concern surgem de um movimento de integração, realizado pelo ser em desenvolvimento, das personificações de Mãe que até então se apresentavam dissociadas: no caso da culpa - integração Mãe-Boa e Mãe-Má, e no caso do “concern” - Mãe-Ambiente e Mãe-Objeto. Daí nasce o desejo de preservação de uma Mãe agora unificada. Um desejo de preservação que poderá, gradativamente, se estender a outros animados e inanimados. A ética tem aí, como núcleo inaugural e alimentador o desejo de preservação da mãe. Mas, podemos encontrar em Winnicott um outro modo de aquisição da capacidade de avaliação ética. Ela estaria na própria relação de fusão e de trocas afetivas e simbióticas entre mãe e filho constituídos em ambiente facilitador suficientemente  bom, que ficaria como núcleo gerador de uma tendência e de uma capacidade de decidir sobre cada situação singular sem referências prévias. Seria uma ética criativa, desinformada, só obediente ao devir. Gostaria aqui de citar Carneiro Leão que partindo de uma perspectiva filosófica, aproxima-nos desta ética criativa radical:

“O desafio da ética hoje não está em uma abstração nevoenta. O desafio concreto da ética está em entregar-se toda à espera do inesperado. Uma espera que vive e vivifica a vida do pensamento. Pois, pensar, como pensam os pensadores, não é saber, como sabem os conhecedores. É, perseverando na “espera do inesperado”, deixar-se transformar pelo vigor originário do não saber[13].

        

Desenvolvidos estes quatro ítens sinto-me mais à vontade para prosseguir na elaboração que venho realizando da teoria winnicottiana. Vejamos uma outra citação de Winnicott:

“Na época em que a criança está crescendo para o estado adulto, o destaque não é mais para o código moral que lhe transmitimos; ela passou para coisas mais positivas, o conjunto de conquistas culturais da humanidade. e então, ao invés de educação moral, propiciamos à criança a oportunidade de ser criativa que a prática das artes e da arte da vida oferece a todos aqueles que não copiam e não se submetem, mas desenvolvem genuinamente uma forma de auto-expressão”[14].

 

Este é o final do artigo de Winnicott “Moral e Educação”, e esta última frase indica, na minha opinião, a importância que Winnicott dá à criatividade, à descoberta em contraposição à imposição de idéias morais. Para Winnicott a cultura deve oferecer os seus produtos ao ser humano em desenvolvimento de modo que ele tenha a oportunidade de criar/recriar a cultura. A idéia de moral sempre esteve ligada à idéia de superego. O superego freudiano é um superego impositivo. A criança identifica-se com o Imperativo Categórico do superego paterno. No pensamento winnicottiano que estou desenvolvendo, a moral não surge de uma imposição, mas como uma criação do self. Talvez a palavra valor seja melhor aqui que a palavra moral. E, sem dúvida, esta moral adquirida através da atividade criativa do self pode mais facilmente deslizar para outros valores, já que não se trata da tonitroante voz de Deus que impõe uma Lei, mas de uma criação interna que tem a ver com a relação do ser humano com o ambiente no âmbito do valor. Portanto quando Winnicott fala do código moral transmitido ele o critica se é um código imposto de fora para dentro. Winnicott aceita sim, e mais que aceita, acha necessário, que as regras morais adquiridas pela cultura sejam apresentadas à criança assim como os objetos do mundo devem ser a ela apresentados. Mas é preciso que a criança re-crie estes objetos apresentados. A criança cria o seio que já lá está. A criança cria (ou inova) a moral que já lá está.

         Será que esta atividade integrada self/ambiente de re-criação de valores ainda exigiria uma abstração especial chamada superego? Ou poderíamos prescindir desta palavra? Questão a ser discutida. Poderíamos, partindo de Winnicott, pensar em um superego que surgindo da atividade do self, é solidário ao ego, está do lado do ego e não contra ele. Seria um superego que mal se distinguiria do próprio ego, pois, se cada situação deve ser pensada em si mesma como uma situação singular diferente de outras situações, então a função superegóica confunde-se com a função egóica. A diferença possível seria só pensar em superego quando se tratasse de um valor comunitário; mas se a comunidade está incorporada ao ego, ao si-mesmo,  então a atividade superegóica poderia ser perfeitamente ser chamada de “atividade egóica referente à grupalidade”. Como porém  superego pertence inelutavelmente à história da psicanálise, e como ela tem a ver com a moral, a ética, o valor, poderemos continuar dando esse mesmo nome àquela função do self que, ao abordar figurações de valor, tenha de tomar decisões éticas. Neste momento o self, que é um devir, estará exercendo as funções de superego já que estará referido a valores que deverão ser escolhidos e realizados. A palavra superego nos mantém dentro de uma continuidade histórica, dentro de uma tradição. As raízes da psicanálise não desaparecem, mas ao mesmo tempo não interferem nas mudanças que necessariamente a psicanálise tem de sofrer com as transformações da subjetividade. O superego impositivo tem a ver com a política colonialista de imposição de valores. Imposição de valores a pessoas e sociedades. Temos aí uma sociedade, uma subjetividade que comporta um Deus que castiga o homem por ter ele transgredido um mandato, obrigando-o a sofrer na terra, a ganhar o pão com suor e esforço, transformando a vida em dever, impondo um trabalho que tem o sentido de uma pesada obrigação necessária à sobrevivência. A sobrevivência deixa de ser um jogo e uma aposta espontâneos para ser uma obrigação moral, uma dívida do homem para com Deus. O homem já nasce devedor, culpado e o superego freudiano é a perpetuação deste estado de coisas. “Ganharás o pão com o suor de teu rosto”. Preceito bíblico que transforma a atividade espontânea em trabalho culposo. Adão, Eva e todos os homens são culpados de um pecado original e deverão expiar este pecado transformando o prazer da atividade em dever. O pecado tendo provocado a ira de Deus - o superego da humanidade multiplicado em incontáveis superegos individuais - faz com que a atividade humana adquira um caráter desprazeroso, pois fica referida a uma imagem ideal avaliadora e crítica. Esta imagem ideal não está distante do panóptico arquitetural de Bentham da sociedade disciplinar, uma figura que é tão da modernidade quanto a liga universal/particular. Panóptico, superego e Deus estão muito próximos em suas funções de observação, julgamento, punição e onipresença. Freud:

“Como todos sabem, as crianças de tenra idade são amorais e não possuem inibições internas contra seus impulsos que buscam o prazer. O papel que mais tarde é assumido pelo superego é desempenhado, no início, por um poder externo, pela autoridade dos pais. A influência dos pais governa a criança, concedendo-lhe provas de amor e ameaçando com castigos, os quais, para a criança, são sinais de perda do amor e se farão temer por essa mesma coisa. Essa ansiedade realística é o precursor da ansiedade moral subseqüente.  Na medida em que ela é dominante, não há necessidade de falar em superego e consciência. Apenas posteriormente é que se desenvolve a situação secundária (que todos nós com demasiada rapidez havemos de considerar como sendo a situação normal), quando a coerção externa é internalizada, e o superego assume o lugar da instância parental e observa, dirige e ameaça o ego, exatamente da mesma forma como anteriormente os pais faziam com a criança”[15].

 

Já para Winnicott há uma permanente criação e recriação de valores nos locais éticos de amorosidade, empatia e compreensão. Mas trata-se de um local contextualizado, um local que se relaciona a um global, embora não seja por ele determinado. Estou novamente falando de um global “ao lado” que interage com os vários locais e com os vários globais, participando de uma rede complexa de relações e de interinfluências multi-direcionadas em contínua transformação. Estas configurações, mais ou menos estáveis, mais ou menos instáveis, estão sujeitas ao tempo e ao espaço. Estou assim apresentando, teoricamente, uma ética flexível (local/global), contraponto de uma moral resistente (universal/particular) que se vai tornando teoreticamente obsoleta. Esta ética exige uma outra concepção de superego ou similar. Foi o que tentei desenvolver neste artigo.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA


 

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FREUD S., Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In Edição Standard Brasileira, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.

 

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___________, O desenvolvimento do sentido do certo e do errado em uma criança. In Conversando com os pais. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993.

 

 

___________, O desenvolvimento da capacidade de se preocupar. In O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

 

 

___________, Moral e Educação. Ibid.

 

                                                      Nahman Armony

            Retirado do livro “O Homem Transicional” de minha autoria




[1]  “Só acreditamos em totalidades ao lado. E se encontramos uma totalidade assim ao lado das partes, é um todo dessas partes, mas que não as totaliza, uma unidade de todas essas partes, mas que não as unifica, e que se acrescenta a elas como uma nova parte composta à parte”. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.61.
[2]MARTINS,  A. "Relações local-global nas redes transdisciplinares: globalização e singularidade" in Ciências Humanas, vol.21, n.1.  
[3] FREUD, S. “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” in Obras completas. ESB, vol. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 319. Também em “O ego e o id” (ibid., p.53), Freud nos fala de uma herança egóica/superegóica: “As experiências do ego parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas, quando se repetem com bastante freqüência e com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em experiências do id, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressucitando-as”.
[4]LATOUR, B. - “Jamais fomos modernos”. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. p.50.
[5]WINNICOTT, D.W. - “Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self “ in O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982. p.135-136.
[6]Idem - Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p.74.
[7]LATOUR, B.- op.cit., p.54.                            
[8]WINNICOTT, D.W. - “Joseph Sandler - Comentários sobre On The Concept of the Superego” in Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p.354.       
[9]FREUD, S.- “O Ego e o Id” Vol.XIX da Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.36.
[10]WINNICOTT, D.W. - “O desenvolvimento do sentido do certo e do errado em uma criança” in Coversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.125-126.
[11]WINNICOTT, D.W. -  “O desenvolvimento da capacidade de se preocupar” in O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1983. p.70.
[12]WINNICOTT, D.W. - “Moral e Educação” in O Ambiente e os Processos de Maturação. op.cit. p.89.
[13]CARNEIRO  LEÃO, E. in KOSOVSKI, E. (org.) Ética na comunicação. Rio de Janeiro: Mauad, 1995, p. 20.
[14]WINNICOTT, D.W. - “Moral e Educação” in O Ambiente e os Processos de Maturação. op.cit., p.98.
[15]FREUD, S. - A dissecção da personalidade psíquica. Edição Standard Brasileira, vol. 22. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.80-81.

ATAVISMOS EM AÇÃO



Muitos casais que se amam e desejam permanecer unidos vêm-se perplexos quando percebem que a relação está deteriorada. O que poderia ter acontecido? é a pergunta que se fazem. Eles queriam permanecer juntos, mas, acontecimentos inapreensíveis levaram-nos àquela situação indesejada. O que será que podemos, como observadores não envolvidos, apreender do inapreensível? Os fatores de discórdia são tantos que se torna impossível abarcá-los. Mas podemos selecionar uma dinâmica bastante encontrada na relação de casal. Trata-se de uma dinâmica darwiniana, pois se apóia numa emoção atávica existente desde o aparecimento da vida animal. Numa das partes mais primitivas de nossos circuitos cerebrais está de plantão um sistema de defesa/medo que se desencadeia quando está em jogo a hierarquia social, o domínio de um bicho por outro da mesma espécie. É a luta pela liderança cujo prêmio é ter o melhor quinhão, seja de comida seja de fêmeas. Ser líder tem sua importância na luta pela sobrevivência individual e na permanência para as futuras gerações de seus genes. Isto está incrustado em todos os seres vivos, inclusive no homem. Neste último a civilização produziu modificações. Um casal não pretende estragar seu convívio, sua mútua atração e seu amor por disputas de poder. E, no entanto, em um plano subterrâneo, fora do conhecimento consciente do casal elas existem e podem ser justamente um dos fatores da ruína da relação. Aqui estou me referindo às relações implícitas. No explícito ouvimos frequentemente o homem do casal dizer: “minha mulher é quem manda”. Há uma admissão explícita de que o poder é exercido pela mulher. Além de ter um caráter jocoso esta afirmação refere-se a questões de natureza objetiva tais como escolha de móveis, decoração da casa, organização do dia a dia da família, etc. A disputa pelo poder ao qual me refiro ocorre em outro nível. Por exemplo: em um casal a discussão de um tópico qualquer lido em um jornal ou revista gera uma discussão interminável sendo-lhes impossível chegar a um acordo ou à admissão que existem dois pontos de vista. O que há por trás da paixão com que se lançam a esse tipo de discussão tem a ver com a idéia de que aquele que tem a verdade está mais qualificado, é superior ao parceiro, e, portanto nos assuntos intelectuais detém o poder. Pode ser que um dos dois ceda, mas nele ou nela provavelmente permanecerá um traço de ressentimento que, se acumulado, o afastará do parceiro. A desvalorização constante e sutil do parceiro em várias situações de vida também provoca ressentimentos. Instruções no trânsito como se soubesse dirigir melhor que o parceiro, apontamento constante de defeitos realizado não com o intuito de corrigir, mas de diminuir o outro tornando-o inferior e garantindo o poder ou a fantasia de poder para si. Não se trata de mais ou menos amor, mas de um traço de personalidade que exige a ocupação de uma posição superior para sentir-se mais poderoso que o parceiro. É um traço de personalidade que se apóia em um desejo atávico que tinha a sua função em épocas pré-históricas e em outros momentos da História, mas que hoje já não é necessário à sobrevivência. Um exemplo desse anacronismo nós o vemos na adoção de crianças geneticamente diferentes dos pais adotivos. Por outro lado os efeitos práticos de uma luta de poder na família é desestruturante. É, pois uma disputa que já não se justifica. Sendo implícita, o casal não se dá conta do que está acontecendo. A ajuda de um terapeuta de casal porá a descoberto as fontes de mútuos ressentimentos possibilitando a evitação de comportamentos e verbalizações sutis que diminuam o companheiro e evitando o desencadeamento de uma guerra surda que só se manifestará claramente quando a aversão já tiver ido longe demais.
                                        
                                                                                      Nahman Armony
                                                                                                                                                                                                           
Primeira publicação na revista CARAS