Winnicott

 

            Vou começar recontando uma pequena história de Winnicott relatada por Susan Isaacs. Os filhos de um colega escandinavo que não falavam inglês, haviam estado com Winnicott quando tinham seus dois e quatro anos; anos depois, ao saberem que o veriam de novo, ficaram entusiasmados. Confrontados com o fato de que não tinham falado a mesma lingua, não puderam acreditar neste fato, tão viva e intensa tinha sido a comunicação entre eles.

            Winnicot foi um mestre da comunicação não só verbal mas também da não verbal. Isto o introduz, de chofre, no seio da assim chamada pós-modernidade, onde impera a crise da representação e portanto a crise da palavra representacional, o que ele tão bem expressou no seu confronto das maneiras católica e protestante de experienciar a cerimônia da comunhão. Sua capacidade de se comunicar através de afecções e não de representações está de acordo com toda uma teorização dos autores que se dedicam ao estudo do pós-modernismo. Estes autores falam justamente de uma comunicação não-mediada, de uma comunicação direta, onde o sensorial, o movimento, a expressão corporal e emocional, a postura, o gestual, a atitudinal, ganham a maior importância.

            Por suas características pessoais, por ter nascido na época em que nasceu e por ter tido a infância que teve, Winnicott não pode deixar de ser um inovador, um homem de trânsito entre o moderno e o pós-moderno.

            Winnicot teve pouco pai e muitas mães o que já poderia encaminhá-lo para uma sensibilidade especial para a relação dual. E realmente, seu principal objeto de estudo é a unidade dual mãe-filho, com a qual empatiza e à qual compreende por intuição. É em cima desta experiência que ele construiu o original de sua teoria: o espaço potencial e o objeto transicional. Esta relação remete a uma episteme não mais representacional mas já afeccional. Vemos então Winnicott antecipando em seus escritos as grandes linhas da lógica contemporânea: o paradoxo, a complexidade, a intuição, a valorização de uma experiência que escapa às palavras, o brincar, a esquiva às formalizações, a fluidez de limites, etc. Ele mesmo era um ser paradoxal, sabia-se paradoxal e aceitava-se paradoxal. Uma de suas afirmações, sobejamente conhecida, mais ou menos assim formulada “Sou psicanalista enquanto a psicanálise ajuda o meu paciente; caso contrário sou qualquer outra coisa que ele necessite” é uma frase que pode ser encarada como transdisciplinar. Existe um objeto total a ser ajudado (e não um recorte da realidade, um objeto criado pela psicanálise ou situação analítica), um objeto que em sua essência não pode ser aprisionado em nenhuma teoria e ao qual se deverá chegar pelos mais diversos caminhos convergentes. Um ser inapreensível pela palavra e que necessitará de intuição para ser compreendido.

            Mas, devo também rapidamente falar da vida de Winnicott. Nascido em 7 de abril de 1896 em Plymouth, Inglaterra, no seio de uma família abastada, em um período de relativa paz, estabilidade e prosperidade, teve uma infância tranqüila, “plenamente envolvido por mães e virtualmente privado de pai” (D.W.Winnicott: a biographical portrait de Brett Kahr). Cresceu em um ambiente de estabilidade emocional só empanada pelas periódicas depressões da mãe. Músico talentoso, bom cantor, fez do piano um companheiro para o resto de sua vida. Estudou medicina e dedicou-se à pediatria. Seu modo psicossomático de aproximação às questões infantis e à relação mãe-filho logo o encaminhou para a psicanálise. Com presumíveis problemas na área da sexualidade, fez 10 anos de análise com James Strachey, de 1924 a 1933. Foi o primeiro analista homem de crianças. Começou sua clínica psicanalítica privada em 1924. Fez supervisão com Melanie Klein, de 1935 a 1941, seis anos aproximadamente. Fez uma segunda análise com Joan Riviere durante cinco anos. Tornou-se um clínico respeitado mas, como pensador independente, encontrou dificuldades para ver aceitas suas idéias originais sobre teoria e clínica psicanalítica. Finalmente sua influência se consolidou e tornou-se o membro mais eminente do midlle group, um grupo independente que não era tributário nem de Melanie Klein nem de Anna Freud.  Casa-se uma primeira vez com Alice em 1923, uma mulher sujeita a depressões. Separa-se dela em 1949, e dois anos após casa-se uma segunda vez com Clare. Seu segundo casamento foi o que se pode chamar de um casamento feliz. Winnicott teve problemas coronários desde 1948, ano da morte de seu pai, e veio a falecer de doença cardíaca em 1971.

            Winnicott não teve filhos. Foi um homem extremamente generoso, uma generosidade que se manifestava na ajuda aos colegas, na assistência prestada até o fim da vida da ex-esposa, no estímulo aos novos analistas, e no seu esforço de traduzir a teoria psicanalítica em uma linguagem acessível a todas as pessoas, escrevendo e falando para os mais diversos grupos de pessoas, inclusive em programas radiofônicos. 

            Sua obra vem sendo cada vez mais estudada em diversos campos disciplinares o que nos revela a face genial de um homem que não tinha tal pretensão. É possível que algum dia seja ele colocado no panteón dos grandes inovadores do pensamento humano.           

 

WINNICOTT E A CRIATIVIDADE PRIMÁRIA


Winnicott nos fala de uma criatividade primária. Seria uma criatividade que surgiria a partir da subjetividade pura, ainda sem objeto. Um bebê com fome tem uma sensação física. Esta sensação física vem acompanhada da uma atávica intuição de que existe um objeto que poderá aliviar esta fome. É uma sensação vaga, nebulosa que vai se delineando cada vez mais claramente na medida em que as experiências de mamada se repetem. Usando uma linguagem fotográfica, a resolução é cada vez mais nítida. O objeto que se vai delineando, a princípio não tem existência própria. É criação e parte do bebê, pois o bebê ainda não tem noção  de eu e outro. Mas ao mesmo tempo em que o objeto seio/mãe/circunstâncias vai se tornando mais nítido o bebê começa a distinguir o eu do não-eu até o ponto de criar para si o objeto e o espaço transicional. O mesmo objeto que era apenas um paninho encostado no rosto, deixa de ser apenas um paninho e vai se transformando em  um objeto transicional externo e interno ao mesmo tempo. Pois bem, enquanto o objeto é apenas subjetivo, não havendo pois uma distinção entre eu e não-eu, a criatividade é chamada de primária. Portanto a  criatividade primária tem a ver, conceitualmente com subjetividade pura. Como estava dizendo acima a dor da fome sofre uma “elaboração imaginativa de função” e aparece como aquela sensação vaga e indefinida de existir um objeto que corresponde à fome. Quando surge o seio o bebê dirá “Ah aqui está o objeto que eu elaborei imaginativamente a partir da função digestiva”. A sensação vaga é elaboração imaginativa de função que recebe um reforço com o aparecimento do seio, mas que do ponto  de vista do bebê continua a ser uma elaboração imaginativa da função digestiva. Só quando ele distingue o eu do não-eu, o aperfeiçoamento da figura do seio deixa de ser apenas elaboração  imaginativa de função para ser também uma tomada de conhecimento do mundo exterior. Como o seio continua investido de fantasias o objeto seio continua sendo subjetivamente concebido ao mesmo tempo que objetivamente percebido. Há uma junção aqui do subjetivo com o objetivo.

O outro tipo de criatividade tem origem no espaço potencial. E aqui criatividade tem a ver com contacto vivo com o mundo externo. Significa dar um sentido à vida. Significa sentir que o mundo lhe pertence e que ele pertence ao mundo. Esta sensação tem seu precursor na dependência absoluta onde o bebê tem a experiência de onipotência, sendo onipotentemente o mundo. Sua segunda etapa nós a encontramos na experiência de transicionalidade, de espaço, objeto e fenômenos transicionais, onde ele já reconhece a realidade externa (objeto objetivamente percebido), mas impregna este objeto de subjetividade (ursinho, etc.) Enquanto protegido pelos pais e enquanto intelectualmente imaturo, predomina o subjetivamente concebido. Aos poucos a objetividade torna-se uma necessidade e encontram-se várias formas de mistura e convivência do subjetivamente concebido e objetivamente percebido. Formas estas às quais eu já me referi acima.

A criatividade depende de uma mãe suficientemente boa capaz de um holding adequado, isto é, um holding que permita ao bebê aceder ao espaço transicional. Eu já disse que o holding é uma nova maneira de viver e ver a vida, uma nova perspectiva, diferente do autoritarismo, dever, imposição, falso self, etc. Juntamente com o holding temos a espontaneidade, o espaço transicional, o verdadeiro self.

Jan Abram no seu livro “A Linguagem de Winnicott” adverte que o “ato criativo (como o pintar, o dançar, etc.) não é um sinônimo de viver criativamente. O viver criativamente tem mais a ver com a força vital que lança mão dos instintos para tornar-se um objeto ontologicamente presente no mundo. Esses instintos evocados pela força vital dão existência ao viver criativo. O viver criativo tem a ver com um sentimento de pertencimento ao mundo; tem também a ver com a capacidade de encontrar a poesia e a arte na coisas mais simples existentes no Universo. Isso fica muito claro no filme Paterson onde um simples objeto inanimado é olhado cuidadosamente, intensamente, ganhando uma  aura                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 divinal
que é pura poesia. ‘A criatividade primária apresenta-se como um impulso inato que se dirige à saúde’ (frase de Jan Abram referida à teorização winnicottiana). Ao impregnar um objeto ou um fenômeno de criatividade primária estaremos na vigência do que Winnicott chama simplesmente de ‘criatividade’.
                                                  Nahman Armony

  

 

AUSÊNCIA E PRESENÇA DE UM SENTIMENTO DE CULPA

Comentários sobre o texto “Ausência e Presença de um sentimento de culpa”  de Winnicott (Livro: Explorações psicanalíticas, p.129)

 

É um texto muito condensado. Dá a impressão de que Winnicott o escreveu para si mesmo motivado pelo desejo de compreender as razões de um erro que ele teria cometido. Um rascunho guardado para um aproveitamento futuro. Esta poderia ser a razão das dificuldades que o texto apresentou para mim. Certas passagens exigiram dedicação para serem decifrados. E não sei se minha leitura é fiel ao que Winnicott tentou transmitir. Mas, certamente houve trechos que ou não entendi, ou não fizeram sentido para mim. Talvez nas releituras eu venha a compreender o sentido e o encadeamento daquilo que não me foi possível compreender e concatenar nesta primeira abordagem do texto.

Caso 1- o que para mim é novo: frase: “tentar sentir-se culpada, sem nunca conseguir”(p.131). Para que sentir-se culpada? E por que ela não conseguia sentir-se culpada?

Tento responder à primeira pergunta: infiro que Winnicott refere-se à fase depressiva caracterizada pela culpa, fase esta necessária para que o ser humano possa chegar à maturidade, isto é, para que entre na fase “em direção à independência”.

Tentando agora responder à 2ª pergunta: por que há pacientes que não conseguem sentirem-se culpados se essa é uma etapa que naturalmente acontece no desenvolvimento sadio? Minha resposta: porque era uma retaliação que se justificava já que ela era “abominável”.  

A falha que Winnicott se atribui foi ele ter falado sobre preocupações pessoais ao paciente. Winnicott: “...caí nesta armadilha e eventualmente, em um estado de anseio por ter alguém com quem falar a respeito de mim, fiz uma ou duas referências a preocupações alternativas minhas”(p.130). A paciente ainda não estava preparada para desidealizar seu analista. “Se me fosse permitido simplificar um pouco, poderia dizer que o que fiz de errado foi exatamente equivalente ao que a mãe dela fez ao ficar grávida e dessa maneira interromper o relacionamento de filha única”(130). A paciente sentiu a falha do analista como um merecido abandono retaliatório porque ela era “abominável”. Citando: “Esta paciente entrou em um estado em que sentia que tinha de ser abominável. Ninguém teria possibilidade de fazer esse tipo de coisas exceto em reação a alguma horrível qualidade nela que levava todos a fazer o pior.”(p.130) Minha observação: portanto o ataque do analista era culpa dela. Do ponto de vista de um observador objetivo um falsa culpa. O seu analista falhar, tão bem aceito no consciente, revelou-se absolutamente inconcebível no Inconsciente. Sendo inconcebível, estaria fora de sua área de onipotência, a não ser que ela apelasse (como fez) para uma fantasia de ser uma Geny indigna, merecedora do desprezo de todos. Com esse sentimento ela enquadrou o ataque de Winnicott na sua área de onipotência. Citação de Winnicott: “O meu fracasso, portanto, foi algo que ela teve de tentar trazer para dentro da área de sua própria onipotência, e só poderia fazer isso por conhecer muito bem suas próprias ideias horríveis ideias e impulsos, sentir-se culpada e, desta maneira, explicar o que eu havia dito em termos de retribuição”(p.130).

Acredito que se possa dizer que seu ataque a si mesma era um ataque ao analista. Quando tudo corre bem, atacar o analista pode ser saudável. É o caso do amor primitivo que é voraz, que pretende devorar o objeto, assimilando-o. Citando Winnicott: “Trata-se de algo que pode desenvolver-se em comer e em ideias de incorporar aquilo que é valorizado”(ibid).

O sentimento de culpa que se manifestava pela extrema abjeção não era saudável; era um sentimento de culpa destrutivo. O sentimento de culpa saudável, construtivo é aquele que tem como referência o amor primitivo com seus componentes de amor e ódio. Quando Winnicott fala de ausência de sentimento de culpa é da ausência de culpa saudável que ele está falando. O sentimento de culpa saudável é aquele considerado como existente. E repetindo: falar de sentimento de culpa não saudável é o mesmo que falar de ausência de sentimento de culpa. A paciente procurava sentir-se culpada (no seu sentido saudável) mas não conseguia. Última citação: “Falhando-lhe, fiz o que os pais dela haviam feito, e a sua mãe fazer-lhe isto tão cedo lhe proporcionou uma vida inteira de tentar sentir-se culpada, sem nunca conseguir”(p.131).

Caso 2 –

1-  É interessante notar que ao falar da paciente Winnicott fala de esquizofrenia potencial, esquizoidia e neurose.   

2-  Ela valoriza a parte esquizóide de sua personalidade o que significa que ela se coloca em extremos e tem uma convicção inabalável de que está certa e o outro incontestavelmente errado. Winnicott: “Há um certo tipo de idealização que é essencial para o seu bem-estar”(p.131). Ela imagina encontrar o ‘homem certo’. Em outro sentido ela se acha sempre certa: “Revela-se, contudo, que todo o seu padrão de vida é determinado por um senso de valores absolutos”(132).  Sendo uma borderline muito inteligente, sua convicção e persistência acabam por fazer o oponente desistir. Winnicott: “Um dos resultados disto é que a sua doença tende a permitir-lhe alcançar o que quer e ela é inteligente o bastante para fazer funcionar isto em grau espantoso”(p.131). Esta capacidade mantém sua dinâmica dicotômica fascista e é indispensável para seu equilíbrio psíquico. Winnicott: “Com esta paciente, não existe dúvida, o julgamento é imediato”(p.132). Aquilo que ela pensa é a verdade absoluta. E tem de ser, pois faz parte de seu equilíbrio psíquico. Winnicott: “Sente que preferiria ficar doente o resto da vida do que ficar bem se isso significasse aceitar a conciliação”(p.131). O acordo, a conciliação significa para ela uma traição a si mesma e a lança numa culpa esmagadora. Esta intensidade culposa aconteceu quando apareceu a hipótese dela estar grávida. Ela que vinha lentamente aceitando o amor do um homem deu um jeito de conseguir gradualmente o término da relação porque ele não era o Homem Certo e ela só casaria com alguém que correspondesse à sua fantasia de ‘Homem Certo’. Winnicott: “O fato é que a pessoa certa teria sido um homem do passado”(p.131); seria o seu pai “alguém que apareceria em sua vida por causa do amor de sua mãe pelo seu homem”(p.132). Mas seus pais tinham falhado tanto na relação conjugal como na relação direta com ela. Seu pai “quisera um menino e nunca tivera muito interesse por ela como menina”(p.132). Com a sua mãe “seu relacionamento...era deficiente”. E temos ainda mais um fator: quando aborrecida com a mãe buscava conforto no seu pai, não o encontrando, pois ele também tinha dificuldades com ela. Não pôde pois viver uma fantasia de amor perfeito com o pai e o que  ela procura não é “um parceiro para casar mas sim [procura] o que perdeu, o primeiro caso amoroso dentro da família”(p.132). É claro que o tabu de que se fala aqui é o tabu do incesto. Por todas estas razões ela não poderia ter um filho com o pretendente e a gravidez deixou-a muito culpada porque na sua concepção de perfeição absoluta ela não poderia se deixar engravidar. O sentimento de culpa tinha a ver dela não corresponder ao seu ideal de perfeição: “Estou fornecendo isto como ilustração do tipo de senso de culpa que é muito arrebatado e pertence à catástrofe da traição de si”(p.132). Na citação seguinte vemos Winnicott devaneando com uma evolução quimérica dessa paciente:   “Imagino que se ela ficar bem, será capaz de viver entre tudo o que é sórdido, como a maioria de nós tem de fazer, mas se pode ver que esta paciente não pode olhar para o futuro e dizer: --- Quero ficar bem, exatamente por causa desta perda de coisas sagradas, em troca de algo que será feio, mal-ajambrado e sórdido”(p.132).

O sagrado aqui é o que ela pensa do mundo, de si, dos outros, do mundo. Enfim, são as suas irredutíveis convicções pessoais.

 

                                  Nahman Armony