AUSÊNCIA
E PRESENÇA DE UM SENTIMENTO DE CULPA
Comentários
sobre o texto “Ausência e Presença de um sentimento de culpa” de Winnicott (Livro: Explorações psicanalíticas,
p.129)
É um texto muito
condensado. Dá a impressão de que Winnicott o escreveu para si mesmo motivado
pelo desejo de compreender as razões de um erro que ele teria cometido. Um rascunho
guardado para um aproveitamento futuro. Esta poderia ser a razão das
dificuldades que o texto apresentou para mim. Certas passagens exigiram
dedicação para serem decifrados. E não sei se minha leitura é fiel ao que
Winnicott tentou transmitir. Mas, certamente houve trechos que ou não entendi,
ou não fizeram sentido para mim. Talvez nas releituras eu venha a compreender o
sentido e o encadeamento daquilo que não me foi possível compreender e
concatenar nesta primeira abordagem do texto.
Caso 1- o que para mim
é novo: frase: “tentar sentir-se culpada, sem nunca conseguir”(p.131). Para que
sentir-se culpada? E por que ela não conseguia sentir-se culpada?
Tento responder à
primeira pergunta: infiro que Winnicott refere-se à fase depressiva
caracterizada pela culpa, fase esta necessária para que o ser humano possa
chegar à maturidade, isto é, para que entre na fase “em direção à
independência”.
Tentando agora
responder à 2ª pergunta: por que há pacientes que não conseguem sentirem-se
culpados se essa é uma etapa que naturalmente acontece no desenvolvimento sadio?
Minha resposta: porque era uma retaliação que se justificava já que ela era
“abominável”.
A falha que Winnicott se
atribui foi ele ter falado sobre preocupações pessoais ao paciente. Winnicott: “...caí
nesta armadilha e eventualmente, em um estado de anseio por ter alguém com quem
falar a respeito de mim, fiz uma ou duas referências a preocupações
alternativas minhas”(p.130). A paciente ainda não estava preparada para
desidealizar seu analista. “Se me fosse permitido simplificar um pouco, poderia
dizer que o que fiz de errado foi exatamente equivalente ao que a mãe dela fez
ao ficar grávida e dessa maneira interromper o relacionamento de filha única”(130).
A paciente sentiu a falha do analista como um merecido abandono retaliatório
porque ela era “abominável”. Citando: “Esta paciente entrou em um estado em que
sentia que tinha de ser abominável. Ninguém teria possibilidade de fazer esse
tipo de coisas exceto em reação a alguma horrível qualidade nela que levava todos
a fazer o pior.”(p.130) Minha observação: portanto o ataque do analista era culpa dela. Do
ponto de vista de um observador objetivo um falsa culpa. O
seu analista falhar, tão bem aceito no consciente, revelou-se absolutamente
inconcebível no Inconsciente. Sendo inconcebível, estaria fora de sua área de
onipotência, a não ser que ela apelasse (como fez) para uma fantasia de ser uma
Geny indigna, merecedora do desprezo de todos. Com esse sentimento ela
enquadrou o ataque de Winnicott na sua área de onipotência. Citação de
Winnicott: “O meu fracasso, portanto, foi algo que ela teve de tentar trazer
para dentro da área de sua própria onipotência, e só poderia fazer isso por
conhecer muito bem suas próprias ideias horríveis ideias e impulsos, sentir-se
culpada e, desta maneira, explicar o que eu havia dito em termos de
retribuição”(p.130).
Acredito que se possa
dizer que seu ataque a si mesma era um ataque ao analista. Quando tudo corre
bem, atacar o analista pode ser saudável. É o caso do amor primitivo que é
voraz, que pretende devorar o objeto, assimilando-o. Citando Winnicott:
“Trata-se de algo que pode desenvolver-se em comer e em ideias de incorporar
aquilo que é valorizado”(ibid).
O sentimento de culpa
que se manifestava pela extrema abjeção não era saudável; era um sentimento de
culpa destrutivo. O sentimento de culpa saudável, construtivo é aquele que tem
como referência o amor primitivo com seus componentes de amor e ódio. Quando
Winnicott fala de ausência de sentimento de culpa é da ausência de culpa
saudável que ele está falando. O sentimento de culpa saudável é aquele
considerado como existente. E repetindo: falar de sentimento de culpa não
saudável é o mesmo que falar de ausência de sentimento de culpa. A paciente
procurava sentir-se culpada (no seu sentido saudável) mas não conseguia. Última
citação: “Falhando-lhe, fiz o que os pais dela haviam feito, e a sua mãe
fazer-lhe isto tão cedo lhe proporcionou uma vida inteira de tentar sentir-se
culpada, sem nunca conseguir”(p.131).
Caso 2 –
1- É
interessante notar que ao falar da paciente Winnicott fala de esquizofrenia
potencial, esquizoidia e neurose.
2- Ela
valoriza a parte esquizóide de sua personalidade o que significa que ela se
coloca em extremos e tem uma convicção inabalável de que está certa e o outro
incontestavelmente errado. Winnicott: “Há um certo tipo de idealização que é
essencial para o seu bem-estar”(p.131). Ela imagina encontrar o ‘homem certo’.
Em outro sentido ela se acha sempre certa: “Revela-se, contudo, que todo o seu
padrão de vida é determinado por um senso de valores absolutos”(132). Sendo uma borderline muito inteligente, sua
convicção e persistência acabam por fazer o oponente desistir. Winnicott: “Um
dos resultados disto é que a sua doença tende a permitir-lhe alcançar o que
quer e ela é inteligente o bastante para fazer funcionar isto em grau
espantoso”(p.131). Esta capacidade mantém sua dinâmica dicotômica fascista e é
indispensável para seu equilíbrio psíquico. Winnicott: “Com esta paciente, não
existe dúvida, o julgamento é imediato”(p.132). Aquilo que ela pensa é a
verdade absoluta. E tem de ser, pois faz parte de seu equilíbrio psíquico. Winnicott:
“Sente que preferiria ficar doente o resto da vida do que ficar bem se isso
significasse aceitar a conciliação”(p.131). O acordo, a conciliação significa
para ela uma traição a si mesma e a lança numa culpa esmagadora. Esta
intensidade culposa aconteceu quando apareceu a hipótese dela estar grávida.
Ela que vinha lentamente aceitando o amor do um homem deu um jeito de conseguir
gradualmente o término da relação porque ele não era o Homem Certo e ela só
casaria com alguém que correspondesse à sua fantasia de ‘Homem Certo’.
Winnicott: “O fato é que a pessoa certa teria sido um homem do passado”(p.131);
seria o seu pai “alguém que apareceria em sua vida por causa do amor de sua mãe
pelo seu homem”(p.132). Mas seus pais tinham falhado tanto na relação conjugal
como na relação direta com ela. Seu pai “quisera um menino e nunca tivera muito
interesse por ela como menina”(p.132). Com a sua mãe “seu relacionamento...era
deficiente”. E temos ainda mais um fator: quando aborrecida com a mãe buscava
conforto no seu pai, não o encontrando, pois ele também tinha dificuldades com
ela. Não pôde pois viver uma fantasia de amor perfeito com o pai e o que ela procura não é “um parceiro para casar mas
sim [procura] o que perdeu, o primeiro caso amoroso dentro da família”(p.132). É
claro que o tabu de que se fala aqui é o tabu do incesto. Por todas estas
razões ela não poderia ter um filho com o pretendente e a gravidez deixou-a
muito culpada porque na sua concepção de perfeição absoluta ela não poderia se
deixar engravidar. O sentimento de culpa tinha a ver dela não corresponder ao
seu ideal de perfeição: “Estou fornecendo isto como ilustração do tipo de senso
de culpa que é muito arrebatado e pertence à catástrofe da traição de si”(p.132).
Na citação seguinte vemos Winnicott devaneando com uma evolução quimérica dessa
paciente: “Imagino que se ela ficar
bem, será capaz de viver entre tudo o que é sórdido, como a maioria de nós tem
de fazer, mas se pode ver que esta paciente não pode olhar para o futuro e
dizer: --- Quero ficar bem, exatamente por causa desta perda de coisas
sagradas, em troca de algo que será feio, mal-ajambrado e sórdido”(p.132).
O sagrado aqui é o que ela pensa do
mundo, de si, dos outros, do mundo. Enfim, são as suas irredutíveis convicções
pessoais.
Nahman Armony
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