NOSTALGIA VELHOS TEMPOS

Olá pretinho da favela
Do alto de minha janela
Em panorâmica tela
Te vejo retangulado
Retocado, pasteurizado
Pretinho multicolorido
Pretinho já muito vivido.

Te vejo subindo o morro
Pés descalços, ar de liberdade,
Árvores, nuvens, disponibilidade

Te vejo levando a lata
Pesada de água e miséria
Sonhando um sonho feérico.
Tu invejas os doutores
Que do alto de sua pompa
Olham de cima o seu céu.

Tu imaginas os bacanos
Comendo o seu pão-caviar
Envoltos em ouro e seda
Tomando banhos de espuma
Morando fantásticas mansões

Meu pretinho querido,

Com os meus olhos compridos
Sem nenhuma doutorância
Te alcanço no alto do morro

E caminho contigo
Em terras de sonho
Em terras de amor
Além das convenções
Além das distorções
Só nós dois a brincar
Nessa triste nuvem fantasia.

                                 Nahman Armony



DISPONIBILIDADE PARA A IDENTIFICAÇÃO COMO EXPRESSÃO INTEGRADORA DE INTERPRETAÇÃO E ATO

                         Artigo publicado na revista “Tempo Psicanalítico”, n.26, março de 1992

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem a intenção de produzir uma abertura para uma visão holística da psicanálise, reunindo interpretação, motricidade, pensamento, corporalidade, palavra, ação, emoção, afeto, razão, em um único bloco dinâmico. O acesso para tal integração passa por uma nova atitude a ser adotada pelo analista diante de seu analisando: a "disponibilidade para a identificação". A amálgama dinâmica conseguida por esta via, evidente no trabalho com crianças, se oculta na situação terapêutica com adultos. A colocação, lado a lado de situações analíticas infantis e adultas permite apurar nossa percepção para sutis acontecimentos psico-corporais que, escandalosamente evidentes na psicanálise infantil, apresentam-se disfarçados no tratamento de adultos.

 

 

No decurso de uma psicoterapia infantil em que normalmente a interpretação e a atividade estão integradas no brincar, me vi algumas vezes confrontada com a pergunta: "Digo ou faço?". Com uma interpretação prematura corria o risco de perder uma compreensão mais profunda da comunicação da criança. Por outro lado, uma ação me era pedida, ação que me colocaria, a mim e a meu pequeno paciente, numa situação cujo significado ainda não estava bastante claro para mim. Ao escolher a segunda alternativa, o fazer não só se revelava portador de um sentido, mas me levava a um plano vivencial que me interpelava como pessoa e era terapêutico em si mesmo. O dizer que emergia

 

então, não se limitava a uma intenção de clareza comunicada ao paciente, mas era vivido com a concretude e a atualidade de uma emoção compartilhada. É esta integração entre a interpretação e o ato, assim como a profunda comunicação que o paciente estabeleceu comigo que procurarei mostrar através dos relatos de sessões que se seguem.

Pedro tem 6 anos e sua terapia dura há um ano e meio. Muito trabalho já foi feito com respeito ao luto pelo pai que perdeu antes dos três anos, e à elaboração das fantasias relacionadas ao seio e ao interior da barriga da mãe vivida como uma prisão sufocante. É preciso acrescentar que Pedro tem asma desde um mês de idade, é uma criança retraída e é descrito pelos que o cercam como "desligado" e "muito passivo" diante da agressão. Ao longo da terapia há vários momentos de regressão ligados à amamentação e ao nascimento. Duas semanas antes da sessão morre o bisavô com quem convivia.

Estamos sentados no chão e Pedro distribui as peças de um jogo de dominó: uma para mim, outra para você...Retoma então a brincadeira da sessão anterior e joga as peças espalhando-as pela sala toda. "Vamos nadar no mar, vamos procurar o tesouro". Deitados no chão, nos arrastamos à procura das peças durante algum tempo e sentamos para examinar os "tesouros" encontrados. Nesse momento, Pedro se coloca muito perto de mim e me pede para juntar os pés em torno dele de tal forma que ele se encontra num espaço fechado e delimitado por meu corpo. Atendo seu pedido e digo: "É, Pedro, você está dentro". Seu rosto se ilumina. -"Vamos brincar que você está grávida?" -"De quem?" -"De mim, ali" apontando para o divã no qual se deita de costas com as pernas encolhidas. Debruço-me e envolvo seu corpo com o meu como se fosse uma concha, tomando o cuidado de não tocar nele, de forma que ele tenha liberdade de movimentos. Estabelece-se então um contato muito intenso de olhar, olhar em que ao mesmo tempo me sinto mergulhando e que me invade com muita força. Ao contato de olhar segue o contato de rosto e Pedro encosta sua bochecha na minha; percorre então meu rosto com o nariz como se, depois de tê-lo "aprendido" através do olhar ele o fizesse agora com a respiração. Depois é minha vez de "sentir" o rosto dele que ele encosta-se ao meu nariz e movimenta para me fazer percorrer o mesmo trajeto. Ao mesmo tempo, o contato corporal se estreita e há uma espécie de ressonância: sinto suas modulações tônicas como se suas tensões se prolongassem no meu corpo. Desse acordo tônico nasce uma sensação de bem-estar muito prazerosa de perda dos limites corporais; uma percepção difusa de não-separação: estamos nós dois, só respirando, o mesmo ar, no mesmo ritmo. Pedro busca mais um contato: o de boca, e este é recusado. Digo: "a boca não pode, Pedro". Aparentemente, esta recusa não tem repercussão no momento e a vivência de fusão continua.

Entremeando esse diálogo corporal, surgem as palavras de Pedro:

- Meu avô foi para o céu!

e as minhas:

- Sim, teu avô morreu, você ficou muito assustado e aí dá vontade de ser nenenzinho outra vez, bem protegido dentro da barriga da mamãe.

- É...mas Deus não deixa!

E num outro momento pergunta: Você tem um filho? como é o nome dele? onde você mora?

Ele "nasce" escorregando de cabeça para baixo e se amparando nas mãos. Dirige-se então para a mesa, pega papel e pilots e vai começar a desenhar quando muda de idéia e diz, apontando para o divã: "É ali".

Sento a seu lado no divã e, para grande surpresa minha, Pedro, pela primeira vez, consegue desenhar uma figura humana. Há só um detalhe que falta: a boca. Me limito a dizer "Faltou a boca, não é Pedro?"; ao que ele responde

completando o desenho.

João, 5 anos, é um menino fóbico e tem problema de fala. Está em terapia há um ano. No jogo, sempre compete comigo numa luta em que parece que sua própria vida está em jogo. Ou então, quando sozinho, estabelece metas e obstáculos a serem ultrapassados. Apesar de muito ágil, cai muito, e quando se machuca, nega a dor. Há um sonho de repetição: ele cai pela janela, no vazio. Depois de uma partida de futebol que eu ganho, João me propõe uma nova brincadeira: nas olimpíadas de Sílvio Santos, a porta da esperança. Ele está do lado oposto da sala e há entre nós uma série de obstáculos que ele deve pular: um baú, almofadas, bambolês, etc. Eu devo me colocar como última barreira, ajoelhada, de braços abertos, e não posso deixá-lo passar. Atrás de mim está a janela. João atravessa a sala correndo na minha direção. Sob o impacto, caio sentada e o agarro envolvendo-o com meus braços. Segue-se então uma intensa luta em que acaba por me derrubar no chão. Nunca imaginei que um menino desta idade tivesse tanta força. É para mim agora que se trata de uma questão de vida ou morte: não posso deixá-lo passar de jeito nenhum. Finalmente consigo contê-lo e termino a luta em pé com João nos braços. Por um breve momento ele relaxa e sorri; nossos olhares se encontram. Começo a embalá-lo mas alguns instantes depois ele corre para o chão. Sento para recuperar o fôlego quando João sobe nas minhas costas, se equilibra e lança um grito de triunfo: "Sou o Palhaço! Viva o Palhaço!" ao que eu respondo "Você é João! João!". Ele desce então e se dirige à janela e me chama para olhar a rua. Sento no chão e novamente João sobe, desta vez nos meus ombros, e comenta o que vê na rua. De repente, como quem descobre e se diverte com uma idéia nova, ele diz "As pessoas lá fora vão pensar que tem dois chão aqui" - ao que respondo: "É João, parece que agora eu estou sendo o teu chão".

Na prática psicanalítica com crianças o movimento é explícito e evidente. O mesmo não ocorre com adultos; sua movimentação se expressa bem menos no amplo uso da musculatura esquelética e bem mais em gestos, expressões, atitudes, papéis desempenhados\vivenciados, afetos, emoções. É destes movimentos mais sutis, destas moções que falarei a seguir.

Com este propósito vamos discernir aquele afeto que, inibido no nascedouro, mal aparece, funcionando apenas como sinal, de um outro ao qual se permite que ganhe força, volume, individualidade, desabrochando em sentimentos e emoções, adquirindo vida e presença ao se manifestar em expressões e movimentos. O afeto, para uma psicanálise ainda vigente, é apenas um instrumento de sinalização para um pensamento representacional, devendo manter-se em um nível mínimo para não perturbar os processos elaborativos do pensamento; ou então uma ante-câmara inevitável, intrusa e indesejada de um salão iluminado e iluminista onde luzes brancas afastam os fantasmas do inconsciente permitindo uma visão mais clara da realidade.

Já o afeto que se intensifica e desdobra florescendo em suas variegadas cores, em seu jogo de luzes e sombras, pertence à linhagem catártica da história da psicanálise. Aqui, o afeto amalgamado à palavra viva é parte de uma vivência globalizadora onde palavra, ato, emoção, pensamento, afeto, sentimento, e mesmo, interpretação, não se separam. Este conjunto em seu movimento de conquista/reativação de novos/antigos espaços, produz um efeito de transformação, um efeito terapêutico.

Júlio é um rapaz alto, forte, bem apessoado, com problemas na área da sexualidade. Habitou o quarto dos pais durante longo período de sua infância, digamos, dos dois aos nove anos. Seu berço, ou cama, ficava ao lado do leito conjugal e o nível de seu colchão era o mesmo ou superava em altura o de seus pais. Fiz várias referências à possibilidade de Júlio ter assistido às relações sexuais do casal. Ele porém de nada se lembra, nada sente e nada de novo aparece. A idéia dos pais copulando soa-lhe como uma história inventada que nada tem a ver consigo embora reconheça intelectualmente que, sem dúvida, algo ele ouviu, viu ou sentiu em tão longo tempo de convivência noturna com os pais. Numa certa sessão eu me senti como se fosse o menino Júlio assistindo à relação sexual dos pais. E apareceu dentro de mim uma sensação. Não creio que esta sensação tenha surgido ali; acredito mais que ela foi se formando através de pequenos indícios acumulados no meu inconsciente, nas trocas entre mim e Júlio. E finalmente quando, adquirindo sentido,os fragmentos indiciais aglutinaram-se, identifiquei-me com o menino Júlio. E, a partir daquilo que era uma sensação quase opressiva dentro de mim, - uma opressão que me empurrava para a catarse- eu lhe disse: "A relação de seus pais pode ter sido sentida como um grandioso fenômeno da natureza, como uma pororoca".

Esta intervenção verbal - que formalmente poderia ser considerada uma interpretação – estava impregnada de uma poderosa intensidade, mercê de
uma identificação homóloga surgida na situação analítica. Interpretação e ato tornam-se, nestas circunstâncias, indistinguíveis.

Desta intervenção Júlio não pode dizê-la alheia a seus sentimentos. Tocado, impressionado, mobilizado, Júlio trouxe o assunto na sessão seguinte. E pudemos ver então um menino diante de uma tremenda, terrível manifestação da natureza. Ele perdido e fascinado em meio a uma assombrosa tempestade. Ele, hipnotizado, horrorizado, atraído pela grandiosidade e força do encontro de dois gigantes cósmicos e apavorado pela atração. Desejo de participar daquele formidável evento e medo de ser esmagado, perder-se, desaparecer. A relação sexual dos pais ganhou força e sentido e concomitantemente a imobilidade vivencial em que se encontrava em relação às suas dificuldades sexuais cessou; a análise agora ganhava um novo impulso.

Não se poderia dizer dos três exemplos relatados que o paciente estava associando livremente diante de um analista em estado de atenção flutuante. Mais adequado é denominar a atitude do terapeuta de "estado de identificação" o que pressupõe uma prévia "disponibilidade para a identificação". Este modo de estar do analista diante do paciente abre novos campos de experiência. Não é ocioso relembrar que o conceito de resistência surgiu quando da passagem da hipnose para o método de pressão, assim como a substituição deste método pela associação livre permitiu perceber a complexa estrutura da neurose, com seus inumeráveis deslocamentos e condensações incluindo-se aí o fenômeno da transferência. A aquisição da noção de "disponibilidade para a identificação" possibilita o aparecimento de um novo campo: um campo onde dinamismos intersubjetivos ligando paciente e terapeuta, se produzem2.

A dupla atenção flutuante/associação livre tem como pressuposto inicial uma comunicação entre analista e analisando processando-se em nível de linguagem. Admite-se que o analista interprete comunicações infra-verbais tais como posturas corporais, comportamentos, gestos, etc. Mais é mais raro aceitar-se que este tipo de  

comunicação seja de mão dupla, como se um analista não emitisse sinais perceptíveis que pudessem ser levados em conta na dinâmica da relação. Lembro-me de um paciente psicótico que, numa sessão em que eu estava preocupada em memorizar os acontecimentos, me surpreendeu com a pergunta: "Mas por que você deixou o gravador ligado hoje?". Através da suposta existência de um gravador concreto o paciente expressou uma percepção real de uma preocupação minha.

Esta área de comunicação averbal à qual a linguagem pode se sobrepor mas sem nunca esgotá-la se caracteriza por processos primitivos do pensamento, ou seja, a não distinção entre o símbolo e o simbolizado entre a realidade interna e a realidade externa. A identidade entre o símbolo e o simbolizado é para Fenichel característicado pensamento pré-lógico. "Ao passo que na distorção se evita a idéia de pênis”, disfarçando-a através da idéia de cobra, no pensamento pré-lógico pênis e cobra são uma e mesma coisa; isto é, são percebidas por uma concepção comum: o avistar da

cobra provoca emoções relacionadas com o pênis; e este fato é utilizado mais tarde quando a idéia consciente de cobra substitui a idéia inconsciente de pênis"3. Já Winnicott considera que o simbolismo tem um significado variável e confere o status de símbolo às duas concepções. "Se considerarmos, por exemplo, a hóstia da Sagrada Comunhão, simbólica do corpo de Cristo, penso que tenho razão se disser que, para a comunidade católico romana ela é o corpo de Cristo e, para a comunidade protestante, trata-se de um substituto, de algo evocativo, não sendo essencialmente, de fato, realmente o próprio corpo. Em ambos os casos, porém, trata-se de um símbolo"4.

Essa experiência não se limita ao campo religioso mas faz parte do cotidiano dos telespectadores que, ao encontrarem atores das novelas, repreendem com indignação as maldades das personagens ou elogiam suas façanhas com admiração. Podemos dizer que a pessoa do ator é apagada a favor da personagem assim como o analista, até certo ponto, é "apagado" na transferência. Em momentos privilegiados, ao se deixar afetar e moldar pelas necessidades do paciente, o analista desempenha o papel de objeto transicional e faz parte tanto de seu mundo interno quanto externo. Paciente e terapeuta sentem-se numa espécie de sonho acordado onde a "outra cena" é o espaço analítico.

Nas vinhetas infantis vimos como a criança retira o terapeuta de uma posição neutra e observadora, induzindo-o a preencher uma função, a desempenhar um papel. É preciso, porém, que não nos enganemos; de nada servirá para a criança o terapeuta atender ao seu pedido mantendo-se em uma exterioridade, teatralizando em obediência a um comando. Pedro não precisava simplesmente de um útero - de um receptáculo neutro - para se abrigar e depois nascer; ele necessitava de uma barriga vívida que o acolhesse e preenchesse suas necessidades. Pedro estava em busca de algo só alcançável por um terapeuta disposto a se identificar com seus sentimentos, fantasias, vivências. O desempenho de papéis e preenchimento de funções não é apenas uma representação, algo externo que se cola à personalidade do terapeuta ou um modelo dado pela criança a ser seguido. Pelo contrário: a criança aponta para uma necessidade afetivo/vivencial só possível de ser alcançada e acolhida por um terapeuta em estado de disponibilidade para a identificação. Só assim será possível viver com o pequeno paciente as fantasias/realidades necessárias ao seu desenvolvimento. Mme. Sechehaye5 quando aceitou amamentar Renèe através da maçã não estava distinguindo maçã de seio, símbolo de simbolizado; o aleitamento não estava sendo "representado" mas sim vivido já que as emoções e vivências da amamentação tanto da parte da paciente quanto da terapeuta estavam autenticamente lá. Enquanto a criança e o psicótico facilitam ao terapeuta o acesso ao pedido implícito devido à concomitância verbal/não- verbal de suas solicitações, a maioria dos pacientes adultos não verbaliza o aspecto escondido de seus pedidos. Assim, o que está desvelado no tratamento de crianças e psicóticos torna-se velado no tratamento dos adultos não-pdicóticos. Tal qual crianças e psicóticos, pacientes adultos solicitam do terapeuta o desempenho de papéis. Como porém não é uma solicitação com um aspecto verbal indubitável, o psicanalista ao se posicionar classicamente - neutralidade, observação, atenção flutuante, frieza técnica - não a perceberá. Para alcançá-la será preciso que ele se coloque numa disposição especial: é preciso que esteja disponível a responder às sutis solicitações do paciente no sentido de exercer uma função vivendo certo papel. É preciso que ele esteja em "disponibilidade para a identificação". No caso de Júlio, anteriormente citado, esta disponibilidade levou a uma identificação homóloga, a uma fusão com o paciente/menino. A pressão era no sentido de fazer o terapeuta viver/expressar o que o menino Júlio vivera/vivia como se o terapeuta fosse o próprio Júlio. Na maior parte das vezes porém, a pressão está direcionada não para uma identificação homóloga mas para uma identificação complementar. O terapeuta deverá viver um papel complementar indicado pelo paciente.

Vitório repete sem cessar o seu desespero com os revezes cotidianos: um pneu que fura, pais que brigam, trânsito entupido, vaga não conseguida, tudo parece ter um sentido que transcende a cotidianidade. Como se aqueles acontecimentos fossem um castigo dos deuses. Sendo o terapeuta o único Deus em presença, este se vê empurrado pelas reiterações, lamúrias, reivindicações, queixas - um conjunto que exprime um intenso sentimento de estar sendo injustiçado - para uma posição de Personificação-Má-Onipotente, responsável por tudo de ruim que lhe acontece. Por trás desta atribuição de maldade à Mãe-Terapeuta existe um vagido que é um poderoso pedido para o surgimento da Mãe-Boa-Todapoderosa que o proteja onipotentemente. Um psicanalista com o seu ego fechado às subliminares pressões do paciente, permaneceria neutro, usando a sua afetividade como um sinal para interpretar fantasias; não permitiria que uma alteração de seu ego o fizesse provisoriamente sentir-se como a própria Mãe-Má (por exemplo, não se daria o consentimento de sentir uma certa inquietude indicativa de uma fantasia de responsabilidade pelos infortúnios do "filho querido"6. Manter-se-ia "duro", inflexível, preservando e freqüentemente refugiando-se em seu papel de "interpretador" não podendo pois perceber que mesmo interpretações corretas podem quebrar o desenrolar dos dinamismos, obstando um desenvolvimento dinâmico da relação. Um paciente não encontrando tranqüilidade ou consentimento no terapeuta para vivenciá-lo como Mãe-Má faria um corte em seu processo dinâmico, ou perpetuando ou reprimindo o seu dinamismo; não haveria uma seqüência fantasmática, um desdobramento do dinamismo. Recorrendo mais uma vez à vinheta-Vitório: não fosse a liberdade que o campo psicanalítico - criado pelas linhas de força da relação analista-analisando - lhe forneceu, Vitório não poderia vir a perceber o seu desejo mais profundo, um desejo que ultrapassava o seu dinamismo paranóide: a aparição da Mãe-Boa-Onipotente. Este conjunto de exemplos práticos e considerações teóricas nos levam a concluir que a disponibilidade para a identificação permite o aparecimento e desdobramento de dinamismos intersubjetivos: paciente e terapeuta compartilham vivências. Nestas circunstâncias, palavra, ato, interpretação e pensamento estão de tal forma ligados, de tal maneira se interpenetram que só por um artifício analítico podem ser separados. Vive-se uma relação e dela se fala; intermitentemente esta fala assemelha-se a uma interpretação. Deste ponto de vista interpretação e ato formam uma unidade indissolúvel. Estamos, pois, diante de uma psicanálise a ser pensada e exercida também em termos holísticos.

 

Notas e Referências bibliográficas

1- Esta expressão foi usada pela primeira vez por um dos autores (Armony, N.) e encontra-se no artigo “Dinamismos em Psicanálise” publicado em “Psicanálise: da interpretação à vivência compartilhada” em 1989.

2- Encontramos formulações próximas às nossas em Winnicott. Selecionamos dois trechos de seu artigo La teoría de la relación paterno-filial escrito em 1960, constante do livro El proceso de maduración en el niño (Editorial Laia, Barcelona, 1975) ilustrativas deste parentesco. Estas citações, articuladas, se suplementam: "Lo importante, a mi modo de ver, es que la madre, por medio de su identificación con la criatura, sabe cómo se siente ésta y, por tanto, es capaz de darle casi exactamente todo cuanto necesita en forma de sostenimiento y de provisión de un medio ambiente general. Sin tal identificación considero que la madre no aportará lo que la criatura necesita a principio: una adaptación viva a sus necesidades"(pag.61).  "Parecidos

cambios de orientación los experimenta el analista al satisfacer las necesidades de un paciente que, en la transferencia, está reviviendo estas etapas iniciales. Y el analista, a diferencia de la madre, tiene que ser consciente de la sensibilidad que se está desarrollando en su interior en respuesta a la inmadurez y dependencia del paciente. Cabría pensar que esto es una ampliación de la descripción freudiana según la cual el analista se halla en un estado voluntario de atención"(pag.60).

3- Fenichel, citado por Marion Milner no artigo O papel da ilusão na formação simbólica in Novas tendências na psicanálise, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1969, pag. 119.

4- Winnicott, D.W. (1971)- O Brincar e a Realidade. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1975.

5- Sechehaye, M.A. (1947)- La realisation symbolique Hans Huber, Berne, Editor.

6- O paciente poderá envidar poderosos esforços para retirar o terapeuta de sua posição de serenidade envolvendo-o em suas fantasias, mobilizando-o com suas emoções, manipulando seus pontos vulneráveis até conseguir colocá-lo no papel fantasmático complementar ou homólogo.

 

             Nahman Armony e Rejane S. Armony

LETHEA&ALETHEA


VERDADE&MENTIRA

                                                                 

         Uma longa tradição dicotômica que teve seus expoentes em Platão e Descartes nos acostumou a enxergar o mundo através de extremos. Bom-mau; justo-injusto; saúde-doença, etc. Atualmente estes extremos têm se suavizado propiciando a percepção de uma zona intermediária, o que provoca dificuldades éticas. Trataremos aqui da dicotomia verdade-mentira. Começarei por uma situação simples: vemos seguidamente na vida e na ficção alguém dizendo para uma pessoa prestes a morrer, ou acometida de um mal incurável a mentira do “está tudo bem”, “tudo vai dar certo”. Trata-se de uma mentira? Ou é uma questão de foco? Esta pergunta é pertinente, pois o conhecimento bruto e súbito da realidade poderá fazer a pessoa sentir-se ainda pior e provocar ainda mais sofrimento.

         Quando o psiquiatra lida com pacientes psicóticos deverá tomar extremo cuidado em não tocar em assuntos para os quais exista uma susceptibilidade exagerada levando a reações de ansiedade, agressividade, pânico, confusão mental, etc. Diante de delírios esquizofrênicos não se deve contrapô-los à realidade para não despertar reações excessivas. O psiquiatra ou o analista deve permanecer silencioso o que certamente criará uma situação ambígua na qual o paciente poderá vir a ter a certeza de que o interlocutor concorda com ele. Uma ambigüidade cuja função ética é evitar situações críticas de descontrole.

         Todos nós temos zonas de hiper-susceptibilidade. Num relacionamento de casal se uma dessas áreas é revelada pelas palavras do companheiro, a isto pode se seguir uma crise de conseqüências funestas, seja no âmbito pessoal com prejuízos corporais e psíquicos, seja no âmbito do relacionamento de casal quando a pessoa ofendida em sua auto-estima e ameaçada em seu equilíbrio psíquico fecha definitivamente a porta da relação. Nestes casos caberia a omissão, a concordância ambígua e a distorção tranqüilizadora. Por exemplo: uma pessoa que tenha grande dificuldade com dinheiro e que se a reconhecesse ficaria psiquicamente desequilibrada por considerar a usura uma baixaria da pior espécie, não poderia ouvir do companheiro nenhuma alusão a esta característica; criar-se-ia um mal-entendido, uma idéia deliróide que a faria reagir com fúria, com depressão, com confusão, com extrema ansiedade. Se rola aquilo que em vários artigos meus chamei de “paixão visceral”, uma paixão que não admite outra coisa senão a continuidade da intimidade amorosa, aceitando então lidar com os aspectos imaturos do amado, aquele assunto (a usura) não pode ser tocado. Por algum tempo ele deverá ser evitado até que o progresso da relação permita que ele seja tangenciado e por fim, eventualmente, um dia possa-se falar abertamente dele. Para conservar a integridade e força da relação e o relacionamento ele próprio é necessário lançar mão da omissão, da ambigüidade, da tergiversação. Pode-se dizer que aqui a ética não é a da verdade, mas da preservação de uma relação amorosa que aceita as partes imaturas (psicóticas) do outro. É claro que existe a esperança de que a verdade do amor, gerando um comportamento sensível e adaptado às situações, acabe por promover um amadurecimento dos aspectos dissociados, possibilitando sua saída das trevas e tornando viável uma relação mais transparente. 

                                                   Nahman Armony

     Primeira publicação na revista CARAS.

     

CREPÚSCULO

Discretamente
Vou-me apagando
Um a um meus personagens me abandonam
E a solidão
Reclama os seus direitos
De nascença.

Nada há a objetar.
É dobrar-me
À lei da vida
Que Talião escreveu
Em letras de fogo
No meu fundo.

Encontrar um cântaro generoso
Sábio
Amoroso
Que desvende meu labirinto
Que alcance meu centro sensível
Que envolva minhas feridas em seu mistério,

É demasiado?
                          Nahman Armony

PERCURSOS DA CLÍNICA


Percursos da Clínica[1]

                                                         

          Ao lançar um olhar abrangente sobre as mudanças na prática psicanalítica, tomando como referência as potencialidades de expansão da teoria e da técnica freudiana já realizadas pelos analistas da atualidade, e especialmente impregnado pela realidade do Rio de Janeiro e do Brasil, percebo dois grandes eixos através dos quais a psicanálise se desloca: um eixo lacaniano e um não-lacaniano. Eu mesmo me surpreendo com esta formulação, onde um único nome ao ser colocado em destaque dilui as ricas e complexas contribuições diferenciadas de autores como Winnicott, Sullivan, Kohut, M.Klein, Searles, Bion, Bleger, Balint, Racker, Green e muitos outros, das quais a psicanálise já não pode prescindir. Não é, portanto, uma situação com a qual eu concorde, mas acossado, à minha revelia, por uma realidade carioca, quiçá brasileira, produtora de mesas de debates compostas por um expositor de orientação lacaniana e outro (perdoem-me a generalização) não-lacaniana, acabei aceitando-a.  Não se trata porém de um aceite passivo, já que ela é empobrecedora; na medida de minhas reduzidas possibilidades tentarei dar o meu mínimo empurrão no determinismo histórico (se é que a história seja assim tão determinante) e sem dúvida este trabalho se insere nesta linha. De qualquer forma este episódio serviu para chamar a minha atenção para um fato muito curioso e que deve ter o seu significado: a escola lacaniana apresenta características que a colocam em confronto com as demais escolas. Exercendo, a título de humor, a capacidade de livre fabulação associativa arruma-se na minha mente uma piada: num balé, o passo destoante de um filho bailarino faz com que a mãe-coruja se vanglorie ser dele o único passo certo.

Evidentemente não ignoro que dificilmente um psicanalista da atualidade deixará de sofrer a influência direta ou indireta, afirmativa ou negativa do pensamento lacaniano tão forte é a sua presença política e teórica; porém, excluindo, por medida de prudência, uma zona sombreada, podemos demarcar, para fins metodológicos, um espaço sim e outro não lacaniano.

Como sinalizador mais representativo da diferença entre estes dois campos escolhi os modos de conhecimento utilizados na sessão analítica que por sua vez geram formas de relacionamento e intervenção psicanalíticas diversas. Uma corrente admite a existência e importância no interior da sessão psicanalítica de uma comunicação de inconsciente a inconsciente, de um conhecimento afetivo, de uma relação empática, de identificação, de "feeling"; são formas de conhecimento, comunicação e relação usadas terapeuticamente e teorizadas pelos autores não-lacanianos. Já a corrente lacaniana descarta senão a possibilidade, pelo menos a importância deste tipo de conhecimento, afirmando que esta forma de psicanálise não pertence ao legado de Freud.

Freud foi um grande pensador e como tal possui uma polivalência criativa indutora de múltiplas leituras. Sem dúvida nenhuma, nosso mestre comum indicou um caminho de conhecimento operativo que ultrapassa o simbólico. Enquanto Lacan afirma que "....não há outras, nem terceira orelha, nem quarta, para uma transaudição que se quereria direta do inconsciente pelo inconsciente"("Função de campo da fala e da linguagem em psicanálise" in Escritos, Ed.Perspectiva, S.Paulo, 1978, pag.118), Freud nos diz que o psicanalista "....deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente". ("Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise", vol.12, pag.154). Uma colocação ainda mais ousada nós a encontramos formulada alguns anos após: em um de seus artigos sobre telepatia e psicanálise Freud diz que precisamos estar preparados "....para presumir que o conhecimento foi transferido dele para a suposta profetiza, por algum método desconhecido que excluiu os meios de comunicação que nos são familiares, ou seja, teremos de inferir que existe algo como a transmissão de pensamentos." (vol.18, pag.225)

A corrente não-lacaniana tornada solidária por uma posição lacaniana avessa a um conhecimento afetivo-empático-identificatório, não apresenta uma unidade. É possível distinguir dentro dela três linhas:  a compreensão empática ou é usada como um instrumento de conhecimento propiciador de interpretações mais afinadas com o inconsciente do analisando, ou torna-se um meio facilitador de crescimento, ou é levada até o desempenho deshierarquizante.. Importar-me-ei menos com as diferenças que com as semelhanças; de qualquer forma, ora estarei referido solidariamente às três linhas, ora a uma delas.

O conjunto da produção psicanalítica forneceu-me bases para a formação de minha própria teoria; porém, pensar outras teorias a partir da minha própria seria repeti-la sob vários disfarces. Por isso mesmo socorri-me de disciplinas e autores extra-analíticos na esperança de que uma multidisciplinaridade venha a permitir uma discussão mais ampla e produtiva das questões psicanalíticas.

Todos sabemos que a psicanálise mudou. Entre os vários fatores destas mudanças encontram-se as transformações da subjetividade humana. O paciente que se apresenta hoje para tratamento difere daquele dos fins do século 19 meados do século 20. O olhar do analista também mudou percebendo algo diferente de estrutura neurótica. Estarei certamente cansando o auditório ao dizer que os casos descritos naquela época eram de neuroses estruturadas (histérica, obsessiva, fóbica) enquanto que na atualidade predominam os fronteiriços, as personalidades narcísicas, o sofrimento existencial, os quadros poli-sintomáticos. O que estas mudanças têm a ver com a história do homem em seu sentido mais amplo, incluindo sua cultura e suas instituições? Invocarei Foucault e Deleuze em suas análises sobre o poder nas sociedades industrial e pós-industrial articulando-as com as correntes psicanalíticas referidas.

Segundo Foucault surge no século 19, em substituição ao poder monárquico, o poder disciplinar produtor do "indivíduo". A figuração arquitetônica deste poder disciplinar é o panóptico carcerário. Ao se exercer o binômio vigilância-punição sobre o corpo e o espírito de um ser humano, incitando-o a seguir um modelo, criam-se os processos de individualização. É neste contexto que surge a psicanálise que ao desdobrar  sua teoria fala-nos de um superego vigilante  e punitivo, prescritivo e proscritivo, incitando o ego a se estruturar segundo um ego ideal, e um ideal de ego. A idéia de ego bem estruturado é um prolongamento do ideal de pessoa bem estruturada pertencente ao imaginário social do século 19 que se estende até meados do século 20. Esperava-se das pessoas uma integridade, uma continuidade, uma coerência, uma disciplina que as tornassem absolutamente confiáveis, membros sadios de uma comunidade sadia voltados para um mesmo objetivo e dirigidos por uma mesma ideologia.  A este indivíduo estruturado correspondem as neuroses estruturadas. O modelo da estruturação dominava o campo social de tal maneira que tanto o comportamento do paciente quanto o olhar do analista estavam por ele moldados. Usando a concepção de indivíduo introduzida por Foucault chamarei ao homem de ego bem estruturado, isto é, àquele que responde a um modelo social disciplinar veiculado pelo superego, de homem-individual; a hipérbole deste homem é o neurótico clássico - um paciente que tanto se apresenta como é apreendido como estruturado.

Havia, portanto um modelo estruturador a ser seguido, modelo este que em psicanálise apresenta-se na figura do superego. O superego é fundamentalmente resultado da identificação do menino com o masculino social (superego do pai), e recalque do  feminino. O poder disciplinar impõe ao homem uma repressão do feminino, desvalorizando este feminino, restringindo-o às mulheres  e assim desvalorizando-as também. Tentava-se manter este feminino desvalorizado em um gueto, isolando-o da cultura masculina; mas a partir deste gueto o feminino exercia sua pressão. 

Embora a sociedade disciplinar isole o feminino, retirando-o  das linhas de força positivadas pelo modelo, não o descaracteriza, não o nega nem controla. Já a sociedade pós-industrial permite que o feminino e outras forças marginais saiam de seus guetos, pois agora conta com um novo e mais sutil instrumento de poder: o controle.

Para Deleuze estamos vivendo o advento da sociedade de controle. Enquanto a disciplina opera por vigilância e punição, o controle opera por regramento de fluxos. O modelo deste novo tipo de poder é a informática e o marketing. O poder tenta modular os movimentos livres. Os desviantes e marginais até então habitantes dos bastidores podem agora se manifestar. O modelo da estruturação diminui de importância no imaginário social - não mais se espera coerência nos homens e organização nas neuroses. Começa-se a falar de singularidades, múltiplas tendências que impelem o homem para desencontradas direções; o imaginário social despe o homem de seu código de honra aceitando uma instabilidade incompatível com o ideal de personalidade ou caráter bem estruturado; similarmente, as neuroses já não se apresentam estruturadas; os fóbicos, histéricos, obsessivos cedem cada vez mais espaço para os borderlines, os psicossomáticos, para os quadros narcísicos.  As singularidades pré-individuais até então recalcadas e reprimidas, tornam-se socialmente e pessoalmente visíveis, manifestando-se com maior liberdade no homem e na sociedade. Diante desta situação o poder busca novos meios de lidar com o que pode ser denominado de homem singular e grupo singular, aqueles homens e grupos que não se conformam ao código estabelecido, criando sua maneira original de viver e de pensar. Uma analogia imperfeita, porém esclarecedora da sutileza operativa deste poder está nos esportes modernos; no surf, windsurf, asa delta o desportista aproveita as forças, os movimentos já existentes, codificando-os e usando-os  para seu objetivo. Digo que o exemplo é imperfeito porque nestes esportes existe uma codificação apenas pragmática dos fluxos e não uma sobrecodificação aprisionadora, uma espécie de neoburocracia teórica e institucional que captura e direciona  o pensamento e a experiência livres. Segundo Deleuze não é, porém a sobrecodificação a forma de controle mais eficaz que a atualidade vem estabelecendo. Esta se caracteriza mais por aquilo que poderíamos chamar de "liberdade controlada". Pessoas e grupos são livres, mas o poder os acompanha pari-passu direcionando seus fluxos no sentido de seu interesse. Um exemplo extremo seria o dos psicóticos não enclausurados em um hospital psiquiátrico, mas assistidos por um "acompanhante terapêutico".

O Édipo freudiano é um testemunho da sociedade disciplinar. O Édipo lacaniano encontra-se na transição sociedade disciplinar-sociedade de controle. Um cotejamento de duas citações, uma freudiana e outra lacaniana servirá para nos esclarecer a respeito. Freud:  "A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do retorno da catexia libidinal"("A dissolução do complexo de Édipo", vol.19, pag.221). A catexia libidinal que liga o filho à mãe está proibida de retornar, mas permanece viva e atuante nos porões da mente e da cultura. Podemos fazer um símile com os titãs que enterrados sob as montanhas as fazem tremer periodicamente, pois sua força não está anulada, não está controlada - está reprimida, isolada, guetificada. Vejamos agora a colocação de Lacan: "Todo esto invita a reconsiderar la función del padre que está en el centro de la cuestión de Édipo....Distinguiremos tres tiempos. Primer tiempo: la metáfora paterna actúa en sí por cuanto la primacia del falo es instaurada en el orden de la cultura....En este primer tiempo el niño trata de identificarse con lo que es el objecto del deseo de la madre y no solamente de su contacto, de sus cuidados; pero hay en la madre el deseo de algo más que la satisfacción del deseo del niño; por detrás de ella se perfilan todo ese orden simbólico, el falo". (Lacan- Las formaciones del inconsciente. E.Nueva Visión, Buenos Aires, 1979, pag.86). Enquanto Freud testemunha um patriarcalismo que abafa e desvaloriza os modos femininos de conhecimento e relação sem porém estabelecer um controle sobre eles, Lacan coloca-se em outra posição: o objeto de desejo da mãe não seria o bebê mas a ordem simbólica. Desta maneira os impulsos e movimentos maternais (cuidar do bebê, colocá-lo ao colo, amamentá-lo, fundir-se, afastar-se, manifestar amor, raiva, contrariedade, fastio, aversão, desgosto, responder às suas solicitações, evitar seu sofrimento) não mais seriam livres, não teriam mais a força impositiva de um impulso primitivo mas estariam sobrecodificados, capturados, aprisionados, acompanhados, controlados pelo falo - significante dos significantes - pelo código simbólico, pelo masculino.  Os titãs podem agora vir à superfície pois sua força está dirigida, canalizada, controlada pelos deuses: não mais assustam. Os movimentos feminino-maternos controlados e direcionados pelas linhas do modelo-código masculino não mais atemorizam. O asadeltista não mais teme o vento, uma força livre que ele capturou através de uma codificação. A captura da comunicação-relação feminino-materna pelo código masculino tornar-se-á mais evidente se cotejada com o pensamento de Winnicott: este autor considera que a relação mãe-bebê será por algum tempo psicótica, desvinculada dos aspectos propriamente sociais e culturais; mãe e bebê estarão em uma "folie a deux", num mundo próprio por eles mesmos criado, protegidos por uma continência realizada por alguém outro - geralmente o pai ou a família - continência que protege a díada da interferência do social.

Ao me referir a Freud e Lacan no parágrafo anterior tive de realizar uma esquematização, uma simplificação pela base. Freud, aberto ao novo, buscando corajosamente a verdade do auto-conhecimento, preocupado com as injustiças sociais assim como Lacan atento às tendências do pensamento francês e universal, procurando se manter como centro irradiador de cultura contemporâneo-renovadora, buscam e encontram linhas de fuga para o sistema masculino fálico-castrado. Freud através do genital tenta ultrapassar a dicotomia, mas não é aí que ele o consegue pois a fase genital ainda referenda a supremacia dos modos masculinos de relação, conhecimento e comunicação. Já vimos, porém que ele consegue abrir brechas no modelo masculino quando fala, entre outras coisas, de comunicação de inconsciente a inconsciente, deflagrando um movimento que desemboca em várias noções de linhagem feminina: empatia, disponibilidade para a identificação, reverie, preocupação materna primária, espaço transicional, devoção, etc. Lacan também tenta ambiguamente, ambivalentemente, escapar ao fálico-castrado, cuja outra manifestação é a dicotomia código-falta(Baudrillard) e acompanhando o espírito da época elocubra sobre o real, reconsidera o estatuto do Grande Outro tornando-o barrado, pensa  a pulsão de morte, introduz o objeto "a" causa de desejo. Este objeto "a" nos interessa particularmente, pois é como o feminino se manifesta na clínica lacaniana; o analista colocado na posição de objeto causa de desejo remete-nos a um feminino misterioso, um feminino excitante que nunca se deixa capturar e por isso mesmo gerador de um movimento incessante na análise; ao mesmo tempo mantém uma distância, facilitadora de idealizações, o que põe em xeque a concepção teórica do analista como resto-rebotalho. Não é o mesmo feminino da corrente não-lacaniana; este outro, suplemento do anterior, é um feminino maternal, acolhedor, doador, continente, amoroso, capaz de empatizar, de estabelecer identificações homólogas e complementares, um feminino que se deixa alcançar realizando fusões e simbioses, vivendo separações e individuações, experienciando uma variada gama de sentimentos fortes e sutis, que passam pelo amor, raiva,  medo, inveja, ciúme, um feminino que se une ao paciente possibilitando  crescimento, permitindo experiências básicas não vivenciadas na época própria, colmatando lacunas, desfazendo excessos. 

Maternal é uma palavra estigmatizada em psicanálise. Lembra "passar a mão na cabeça", pieguice, sentimentalismo. Podemos pensar que esta fachada é persistentemente evocada pelos analistas "anti-maternais" pelo temor ao poder intrusivo e devorador da mãe. Realmente, quem garante que a mãe-analista usará o seu poder em favor do filho? E, no entanto, se o analisando não corre este risco, ( e ele o teme devido às suas fantasias arcaicas) não poderá usufruir dos benefícios de uma relação que poderá chegar às bases de seu devir-pessoa. Para além da fachada desvalorizativa, maternal significa o uso dos meios femininos de comunicação, relação e conhecimento - a empatia, a identificação homóloga e complementar, a simbiose,etc. Pode-se então ampliar o mundo que nos é apresentado pelos sentidos e pela razão, pela representação e pela palavra, vivendo intensidades, experimentando uma ampla e sutil gama de afetos, mergulhando em fantasias ainda não verbalizadas. É o mundo das singularidades,  do aprendizado das trocas afetivas, do exercício da sensibilidade somato-psíquica e dos afetos sutis que fazem parte de um pensamento e conhecimento holísticos, é onde se plantam os alicerces da confiança e segurança básicas, os cimentos da criatividade e espontaneidade que sempre poderão respirar e palpitar mesmo quando soterradas por montanhas de regras, leis e teorias. A função materna tem a ver com a singularidade aqui entendida como princípio de atividade e como possibilidade de expressão e expansão de forças em devenir.

Este feminino-maternal permite, no campo psicanalítico a ultrapassagem da dicotomia sujeito/objeto, observador/observado, pensamento/ação, possibilitando um estado de comunhão e de integração. Sua função holística faz-nos reconhecer sua pertenencia ao movimento ecológico que, diante da situação  catastrófica dos vários meios-ambientes (físico, social, mental) busca a superação das dicotomias.

O progresso da sociedade ocidental está inextricavelmente ligado a um pensamento que valoriza a compartimentização, a racionalidade desfantasmatizante, as dicotomias. Durante muitos séculos os benefícios advindos deste pensamento foram de tal monta que o preço em sofrimento e destruição que a humanidade pagava parecia valer a pena. Hoje, a ameaça de aniquilamento que pesa sobre o homem em conseqüência desta mesma visão de mundo propiciadora dos avanços de nossa sociedade exige uma mudança de mentalidade; a reversão do platonismo, a superação das dicotomias estão entre as transformações necessárias. A distância homem-mundo, sujeito-objeto, distância esta que cria um hiato, um vazio, uma falta entre os dois termos da dicotomia, necessita ser superada e reposicionada. Este é um trabalho demorado e penoso de subjetivação pois de tal maneira o pensamento dicotômico-faltoso imperou produtivamente durante séculos no universo ocidental que terminou por se entranhar no cerne mesmo da idéia de homem; a dicotomia e a falta passaram a ser vistas como inerentes à própria condição humana. Só com muita dificuldade damo-nos conta de que dicotomia-falta,  é uma formação subjetiva datada.

Falta é uma palavra onipresente na psicanálise de hoje. Tem porém significados diversos. Para a corrente lacaniana a falta é parte inerente da constituição do homem seja pelo "assassínio da coisa" ao advir o símbolo (Escritos, pag.184), seja pela alienação do sujeito no Outro. Citações: "Assim o símbolo se manifesta primeiro como assassínio da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização do seu desejo".(Escritos, pag. 184). "É preciso supor nele (no homem) uma certa hiância biológica, aquela que tento definir quando lhes falo do estádio do espelho. A captação total do desejo, da atenção, já pressupõe a falta. A falta já está aí quando falo do desejo do sujeito humano no que se refere à sua imagem, quando falo desta relação imaginária extremamente geral que se denomina narcisismo."(Seminário 2, pag.402/3). Para Lacan, símbolo, falta e desejo estão entranhadamente ligados e impelem o homem a produzir sempre e cada vez mais. As infindas máscaras das identificações imaginárias deverão ser desveladas até que o analisando defronte-se com a falta e a aceite como parte inevitável do viver. A falta assim desmascarada deixará de ser tamponada pelo sintoma, e será o motor de uma produção simbólica. 

Para a corrente não-lacaniana o motor da atividade humana está em um impulso inerente ao viver e que Winnicott chamou de criatividade potencial, criatividade primária, verdadeiro self e Kohut de self nuclear. Segundo esses autores o impulso para a atividade não depende de um vazio a ser rodeado, mas de um desdobramento do ser. Neste sentido mais primitivo não existiria um vazio, uma falta, um hiato, mas uma potencialidade de desenvolvimento que se faz independentemente da existência ou não de uma falta. A semente de um vegetal pode nos servir de exemplo para esta noção; ela busca o seu desdobramento por uma premência interna; é de sua natureza desenrolar-se em caule, folhas e flores, assim como é do homem expandir-se em seus processos de criação. Enquanto em processo de criação o ser humano sente-se pleno e possuído por uma alegria oceânica. Logo, porém surge o obstáculo, a alteridade, o outro, o diferente que oferece resistência à expansão de seu ser. Passa a ter então uma aguda consciência de sua limitação. A plenitude cede seu lugar à incompletude. Correlativa à falta lacaniana que remete ao código simbólico e à totalidade paranóica, a incompletude tem seu horizonte na relação afetiva. É nessa perspectiva que se pode viver uma solidão sem abandono. Plenitude e incompletude fazem parte de um devir permanente que nunca se coagula em uma única posição.

Quando, na função auto-nomeada de porta-voz da corrente não-lacaniana falo de falta, não me refiro nem a uma falta filosófica, nem a uma falta biológica, nem ao sentimento de incompletude que surge no processo de separação-individuação. Enquanto Lacan nos fala de uma falta estrutural, biológica e/ou filosófica, eu distingo falta de incompletude, reservando a palavra falta a um pensamento/sentimento que decorre de uma relação afetivo-empático-identificatória excessivamente problemática com os genitores e mais especialmente com a função-mãe. Em decorrência surgem problemas na área de identificação provocando uma vivência de falta que nos remete a um certo conceito de falta; à idéia de conflito, apanágio das neuroses estruturadas, acrescenta-se a idéia de falta, própria dos borderlines.

O  paciente "difícil" fala ao analista ou diretamente ou por aproximações, de sua vivência de falta: ausência de finalidade da vida,  futilidade da existência,  desorientação, vazio, falta. Outros se distanciam desta vivência através de uma ansiedade estilhaçadora, de uma dispersão, falando compulsivamente, pulando de um assunto para outro, desinteressados de uma resposta verbal do analista; a função desta fala não é comunicar pensamentos mas sim provocar sentimentos e estabelecer modos de relação. Aqui, a vivência de falta, eclipsada pela fragmentação ansiosa é sentida pelo analista. Este percebe a busca de algo que lhes falta, a procura desesperada de um ancoradouro, de um continente, de um anteparo, de uma figura benigna a ser internalizada para acalmar receios de fragmentação, dispersão e aniquilamento.

O aumento do contingente de analisandos "faltosos" pode ser compreendido dentro de um contexto histórico.

Na modalidade disciplinar a família apresentava-se sólida, estável e com papéis bem definidos. A mãe cuidava do lar e tinha condições de fornecer à criança uma atenção constante e cuidadosa; o pai era a autoridade inconteste do grupo familiar,  portador das regras e leis da cultura, respeitado,  reverenciado e a quem se devia obediência. Esta situação foi se modificando. Em nossa civilização pós-industrial a mulher ocupa um lugar no mercado de trabalho sendo forçada a ele retornar o mais rapidamente possível, diminuindo assim seu período de dedicação ao filho; mesmo o seu tempo de cuidado com o bebê está permeado de preocupações que antes eram assumidas, especialmente neste período, pelo homem. Creches e babás entram rapidamente em cena para liberar a mãe de parte das injunções maternas. O pai perde sua posição não somente por uma diluição do poder pela família como também pela invasão dos poderes técnicos e da moral maciçamente divulgada pela mídia. Questionado pela companheira e pelos filhos o pai deixa de ser o representante da sociedade no seio da família. A atitude reverencial em relação ao pai desaparece. Perdem-se assim sólidas e persistentes referências identificatórias, tanto na relação com o pai quanto na relação com a mãe, daí resultando problemas na área das identificações e da identidade.

Estamos numa sociedade em mudança. As identificações dispersas e diluídas são parte de nosso cotidiano. Um contingente destas pessoas busca o terapeuta em estado de sofrimento, de inquietude; não sabe o que fazer com a "falta". Para o terapeuta que acredita ser o sentimento de falta uma decorrência das experiências históricas da pessoa torna-se importante distinguir quais as identificações em jogo: se as maternas ou as paternas. Vários autores distinguem duas áreas funcionais do psiquismo: uma área edípica ligada à concepção estrutural do psiquismo, às neuroses clássicas, ao modelo social veiculado pelo superego-ideal de ego, e uma outra área que recebe diversos nomes: Winnicott a chama de espaço transicional ou potencial, Balint de falta básica e "primary love", Kohut de zona do self habitada pelo self e pelos objetos- do-self, Melanie Klein fala de mecanismos de defesa primitivos em contraposição a mecanismos de defesa maduros. Eu mesmo, em um artigo anterior distingui dinamismos básicos referidos à função-mãe de dinamismos secundários ligados à função-pai. Todos estes autores priorizam a função-mãe no processo de humanização e afirmam uma insistência, uma perseverança, uma duração funcional através de toda existência  destes padrões mentais precocemente adquiridos. No artigo de Félix Guattari "Linguagem, consciência e sociedade" encontro o seguinte trecho: Nessa mesma via de uma compreensão polifônica e heterogenética da subjetividade encontraremos a vantagem de seus aspectos etológicos e ecológicos serem levado em consideração. Daniel Stern em "The Impersonal World of the Infant", explorou de modo notável as formações subjetivas pré-verbais da criança....ele valoriza o caráter de conjunto transubjetivo das experiências precoces da criança que não dissocia o sentimento de si do sentimento do outro. É uma dialética entre os "afetos partilháveis" e os afetos "não-partilháveis" que estruturam dessa forma a subjetividade emergente. Subjetividade em estado nascente que não cessaremos de reencontrar no sonho, no delírio, na exaltação criadora, no sentimento amoroso..."(pag.6).

Uma conseqüência importante desta concepção que reconhece duas funções, uma maternal e outra paternal, pode ser assim expressa: ao se desmoronarem as identificações referidas ao modelo social, ao superego, à personificação do pai, os padrões mentais adquiridos na relação simbiótica com a função-mãe ganham relevo. As conseqüências das falhas vivenciais da relação mãe-infans que poderiam passar desapercebidas caso persistissem as identificações superegóicas, tornam-se dolorosamente visíveis quando estas se desagregam. A função-mãe ganha uma ainda maior proeminência.

As sociedades matricentradas da aurora da humanidade foram substituídas pelas sociedades patriarcais. A mulher oprimida criou o movimento feminista; este, porém, capturado pelos sistemas de poder, nada mais fez senão reforçar o modo masculino de pensamento. O aspecto do feminino que se tornou aceito pela sociedade masculina é o feminino sexuado, o feminino misterioso, "la femme fatale", um feminino explicitamente assustador; porém não tão terrível quanto o implicitamente assustador feminino maternal. Deste pouco se fala porquanto nos remete à criança fraca, vulnerável, inerme, que nos habita e que eternamente deseja retornar ao colo da Grande Mãe. O feminino maternal é muito mais perigoso que o feminino sexual pois enquanto o segundo tenta devorar uma pessoa adulta que se pode defender, o primeiro evoca o infante que não teria meios de defesa em relação aos desejos invasores, devoradores, devastadores, colonizadores da Mãe. Mais fácil, pois, aceitar o feminino sexual que o feminino maternal. Tornou-se porém necessário trabalhar com instrumentos feminino-maternos de conhecimento, relação e comunicação sob pena de não sairmos dos impasses de nossa civilização. Um feminino a ser desenvolvido tanto no homem quanto na mulher. Reabilitar o feminino, e mais especialmente o feminino-maternal representa a possibilidade de darmos mais um giro na voluta da história, afastando-nos dos perigos resultantes dos desequilíbrios ecológicos. Isto não significa que as aquisições do pensamento masculino e o próprio pensamento masculino devam ser abandonados. Pensamento masculino e feminino deverão conviver harmoniosamente possuindo cada um o seu espaço, o seu momento. Haverá ocasiões próprias para uma separação sujeito/objeto, homem/mundo e outras em que esta dicotomia será inoportuna. O comportamento interpretativo, a postura enigmática de intenção interpretativa, a postura simbionte/comportamento covivencial, todas têm, neste momento da história, o seu lugar. Possivelmente estamos descobrindo uma outra postura terapêutica onde masculino e feminino se interpenetram. Mas isto já seria matéria para um novo trabalho. 

                                Nahman Armony

 



[1] Artigo publicado em “A psicanálise e seus destinos” – “II Fórum Brasileiro de Psicanálise. Organizadores: José D.C. Albuquerque e Edson Lannes, outubro de 1991.

PAIXÃO E PRAGMATISMO


Dra. Alicia Florrick, uma mulher casada, personagem da excelente série televisiva “The good wife - pelo direito de recomeçar”, ao receber um convite de amor via telefônica de um antigo flerte recentemente renovado pergunta: “e o plano?”, e diante da perplexidade muda do interlocutor, acrescenta: “a poesia está muito bem, mas preciso de um plano. Sou casada, amo meus dois filhos, meu marido precisa de mim para sua campanha de eleição... onde está o plano?” Desconcertado o pretendente desliga o telefone. Esta circunstância extrema pode nos ajudar a abordar situações menos claras levando-nos a reflexões sobre a paixão e seus destinos.
         Uma das interpretações possíveis da fala da protagonista é a seguinte: ela tem uma vida estruturada e o que o pretendente oferece é inconsistente em termos de segurança embora a paixão exerça um grande apelo pela enorme mobilização das energias psíquicas e físicas que a felicidade de um encontro arrebatado proporciona. Na maioria das vezes --- esta é minha experiência ---- a racionalidade pragmática não funciona e as pessoas se atiram cegamente nos redemoinhos da paixão sem pensar nas consequências, tamanha é sua força.   
         A paixão é um acontecimento súbito, comparável ao clarão de um raio que cai sobre duas pessoas e as eletrifica,  unindo-as pelo desejo, pela esperança, pelas fantasias de intensa felicidade e completude: “ele é o meu homem (ou minha mulher) e é com ele que eu quero misturar minha carne e minha alma, pois é a ele que eu pertenço desde o inicio dos tempos”. Parece ser um sentimento imotivado, pois acontece antes que haja tempo dos dois se conhecerem em seus gostos, em seus valores, em suas susceptibilidades, em seus dinamismos interpessoais e intersubjetivos. Poder-se-ia argumentar que a expressão do rosto e a atitude corporal já falam de quem é a pessoa. Isto pode ser parcialmente verdade quanto à “poesia” do encontro, uma poesia que está ligada a uma atividade psico-cerebral primitiva que regem os encontros amorosos dos animais da natureza e que nada dizem da personalidade social e ética do parceiro. Só quando a paixão arrefece é que estes aspectos mais evoluídos passam a ser importantes. E aí certamente haverá diferenças maiores ou menores que serão elaboradas ou não pelo casal mantendo-os unidos ou provocando uma separação. Como diz Monteiro Lobato em seu livro infantil “Reforma da natureza” através da voz da boneca falante Emília, o mundo foi mal feito por Deus. O ideal seria que as pessoas pudessem escolher por quem se apaixonar depois de conhecê-las em profundidade e extensão, descartando as muito dessemelhantes como risco excessivo e optando por aquelas com diferenças menos radicais. Mas não é assim que o mundo funciona e temos de nos conformar com o difícil caminho da paixão por um quase desconhecido e batalhar para superar e acolher diferenças através da compreensão e aceitação da personalidade do outro. Só assim o arrebatamento poderá durar sob a forma de amor apaixonado. Mas, sem dúvida isto exige grande esforço de ambas as partes. Antes de tudo é preciso tolerância com as diferenças. Existe uma dificuldade inata de aceitação das diferenças. Quando somos crianças amamos o semelhante; o diferente é um inimigo mortal, pois ameaça invadir uma personalidade ainda imatura e muito influenciável. Essa criança precisará evoluir para uma maneira de estar no mundo em que poderá se abrir para as novidades trazidas pelo ambiente, porém preservando o seu modo de ser, só permitindo modificações favoráveis ao aumento de potência de sua personalidade. Há um longo caminho a ser percorrido para se chegar a este modo de ser; é, porém uma capacidade que só se desenvolve no embate interpessoal e intersubjetivo. E a situação de paixão é privilegiada para a sustentação desse processo. 
                                          Nahman Armony
          Primeira publicação na revista CARAS. 

        

DESABAFO (do livro "O Anverso e o Verso)

Martela, martelo, o prego
Num contínuo ritmar
Bate forte, duro e cego
É preciso não parar.

Martela, martelo, a tela
Desta vida a desfilar
Martelando se consegue
Ver a vida não passar.

Martela, cabeça, a prece
Enche de som este ar
Que o vazio então parece
Que se esquece de se achar.

Martela, cabeça, o mundo
Pro mundo não martelar
Na cabeça a dor é funda
Deixa a alma empedrar

Martela o Universo todo
Cabeça, mundo e luar
Pois vêm do mesmo lodo
E lá irão se juntar.

Martela, martelando
Assim se vai ficando
Sem direito de parar
Sem poder se perscrutar
Sem a fome de amar
A vida é só martelar
Martelar sem parar.

Martela, martelo, a dor
Martela, martelo, a alma
Martela, martelo, o amor
Martela, martelo, a fome
Martela, martelo, a carne
Martela, martelo, o mundo
Martela, martela, martela,
Enche de som este ar
Martela com fome e dor
Não para de martelar
Até que a unha do Homem
Penetre em carne e sangue
No centro da alma do Mundo
No torvelinho do Tudo,

Quem sabe então descansar?

                Nahman Armony

 

ÉTICA E SUBJETIVIDADE NOS BORDERLINES PRÓXIMOS DA NORMALIDADE


ÉTICA E SUBJETIVIDADE NOS BORDERLINES PRÓXIMOS DA NORMALIDADE[1]

 

Grinker[2], já em 1968, em sua portentosa pesquisa apresentada no livro The borderline syndrome encontra quatro tipos de borderline: 1º – O border psicótico; 2º – O borderline nuclear; 3º – As pessoas “como se”; 4º – O border neurótico.

Grinker propõe uma gradação do borderline em uma linha que vai de um extremo onde ele coloca o psicótico a outro extremo onde o neurótico é alojado. Winnicott (1982, p.121.[3]) trará uma mudança radical a essa concepção, separando psicose e neurose em duas linhas. Citando: “Os psicanalistas experientes concordariam em que há uma gradação da normalidade não somente no sentido da neurose, mas também da psicose, e que a relação íntima entre depressão e normalidade já foi ressaltada. Pode ser verdade que há um elo mais íntimo entre normalidade e psicose do que entre normalidade e neurose, etc”. Winnicott, portanto admite duas linhas de normalidade: a da psicose e a da neurose. O borderline para ele pertence à linha da psicose.

Há, pois, uma gradação que vai da neurose mais grave à neurose próxima da normalidade e outra que vai da psicose mais grave ao borderline próximo da normalidade. Subentendido está que a normalidade perfeita, absoluta, é figura de ficção.

André Martins[4] (2002, p.212) facilita nossa comunicação ao batizar estas duas linhas de psicóide e neuróide.

O modo neuróide pertence a uma subjetividade moderna vitoriana, onde a repressão e o recalque predominam. O recalque tanto é estruturante do psiquismo e mantenedor de seu equilíbrio quanto o responsável pelas dificuldades neuróticas. Citando: A análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a empreender uma revisão desses antigos recalques; alguns são demolidos, ao passo que outros são identificados, mas construídos de novo, a partir de um material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é bastante diferente das anteriores; podemos confiar em que não cederão facilmente ante uma maré ascendente da força instintual”[5] (Freud, 1969: 259-60)

 

Outra citação:

Não podemos negar que também as pessoas sadias possuem, em sua vida mental, aquilo que, por si só, possibilita a formação tanto dos sonhos como dos sintomas; e devemos concluir que também elas efetuaram recalques......se alguém submete a um exame mais atento sua vida desperta, descobre ......que essa vida pretensamente sadia está marcada aqui e ali por grande número de sintomas banais e destituídos de importância prática”[6] (Freud, 1969 p.532-3).

 

Freud fala-nos também que o superego masculino, uma vez formado quando da resolução do complexo de Édipo, dificilmente deixa-se influenciar e modificar.

Na chamada pós-modernidade, o modo psicóide de viver ganha proeminência. Estarei daqui para frente falando do estado borderline próximo da normalidade. Diferentemente do neuróide, que realizou fortes identificações com as figuras poderosas de sua infância (especialmente pai), o psicóide apresenta uma insuficiência de identificações, resultado de uma menor dedicação maternal e de uma maior permissividade, transigência e brandura parental. A expressão “insuficiência de identificações” é a usada por muitos dos psicanalistas que estudam a condição borderline. É uma expressão que tem conotações negativas, patológicas. Prefiro substituí-la por “valências identificatórias não saturadas”, que tanto nos remetem para o negativo quanto para o positivo desta situação. Será negativa quando o psicóide estiver tomado pelo desespero de saturar por inteiro e definitivamente as valências famintas de identificação mediante relações fusionais ou simbióticas. Será positiva quando as valências forem mantidas abertas permitindo um conhecimento/relação/comunicação contínuo com o mundo pessoal e cultural. Aqui, torna-se indispensável um adendo: a capacidade de identificação dual-porosa também se forma no relacionamento suficientemente bom com uma mãe que permite a mutualidade e as identificações cruzadas. Se a capacidade de empatia e identificação da criança não vier a sofrer uma repressão severa como sói acontecer pela ação de algo da ordem de uma função Pai Patriarcal Vitoriana, ela poderá espraiar-se no social em permanente movimento de identificação dual-porosa, portanto em permanente criatividade.

Assinalarei apenas alguns aspectos desta subjetividade, justamente aqueles que servirão como ponte para as considerações sobre a ética que a condição borderline introduz.

As valências identificatórias abertas fazem com que o borderline não se cristalize em um Eu estável, precisando a todo o momento se recriar diante das aceleradas transformações da atualidade. Não está preso a ideologias, não tendo, portanto, uma moral a priori. Suas escolhas éticas são tomadas no calor dos acontecimentos, de acordo com os contextos e circunstâncias. Sua tendência à ação imediata fala de um descontrole; o aprendizado através da ação, da inibição e da percepção do contexto (função secundária e juízo primário) remete-nos a um controle que não depende de ações repressoras, mantendo-se assim a espontaneidade. Featherstone[7] (1995, p.142), um sociólogo, chama a esta situação de “controle descontrolado das emoções”, o que pode ser lido psicanaliticamente como espontaneidade modificada pela experiência e conhecimento.

Como já deve ter ficado claro, a subjetividade borderline nos remete a uma ética interpessoal, pontual, intersubjetiva. Um longo caminho na história da ética foi percorrido até aí. Vou resumi-lo.

Começarei com Sócrates/Platão. Sua ética é orientada por modelos transcendentes que existem no mundo das idéias. É a idéia abstrata que legitima a ação. Por exemplo: é a idéia de justiça que autentica a pessoa e a ação justa. A conduta ética consiste em ascender às idéias verdadeiras absolutas (epistêmicas) e então agir de acordo com elas. Universalidade, transcendência e conteúdo são as características da ética platônica. Uma ética modelar.

A transcendência da idéia platônica transforma-se, na ética kantiana, em imanência transcendental. A Razão Universal impõe um Imperativo Categórico que advém de um mesmo e necessário raciocínio realizado isoladamente por cada homem do conjunto dos homens, os quais, por sua própria natureza, necessitam ser racionais. Diz Kant[8] (1974, p.223) : “O imperativo categórico é, portanto, só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei universal”. Todos os homens racionais, se livres, pensarão desta mesma maneira. Apesar das aparências, continuamos com uma ética universal; esta, porém, não tem conteúdo, mas um modus faciendi, um modelo de ação calcado na racionalidade.

As transformações da sociedade humana exigiram a desconstrução do imperativo categórico, trazendo-o da impessoalidade à pessoalidade, do abstrato ao concreto. A relação interpessoal torna-se o foco de pensamento de vários autores da atualidade.

Featherstone (1995: p.74)[9]  fala de “autocontrole mutuamente esperado” e “respeito para com o outro”.

Anthony Giddens (1991: p.123)[10] refere-se à necessidade da realização de um trabalho para ganhar a confiança do outro.

Gilles Lipovetsky (1994: p.23)[11] fala de uma “ética dialogada da responsabilidade” e de “éticas inteligentes e aplicadas”.

Estes três pensadores confluem para uma ética que depende de uma atividade mental, pois há um espaço separando os corposmentes a ser ultrapassado pelos símbolos de segunda ordem (Armony[12], 1998, p.40-41)[13]. Para eles os corpos não estão em continuidade, mas sim em contigüidade. A primazia não é do corpo, mas sim da mente. Em última instância é a mente quem decide o que é mais conveniente, mais útil, mais adequado para a boa convivência entre os seres humanos. Ou diz quais os valores inatos do humano.

Para Levinas a ética precede a ontologia. O encontro com o outro é inaugural e anterior a qualquer fala. Este outro é radicalmente outro, pura diferença, um rosto infinito, incognoscível, em relação ao qual o eu tem uma responsabilidade primária, imediata, antes de qualquer conhecimento. Meu comentário: a idéia de que o verdadeiro encontro se dá antes da simbolização aproxima a ética de Levinas da ética do borderline. A radicalidade do outro, porém, afasta aquilo que a primeira idéia aproximou. A identificação dual porosa amalgama as duas subjetividades, criando um campo comum embora preservando a singularidade da cada um. Difícil conciliar esta idéia com a radicalidade do outro.

Martin Buber (1982)[14] é quem mais se aproxima da ética borderline. Sua ênfase em um encontro onde o eu está aberto “com todos os poros de meu corpo” a toda “recepção” e “percepção” que vem do tu assemelha-se à noção de identificação dual-porosa. As citações seguintes reforçam esta semelhança:

Nenhum daqueles dois precisa renunciar à sua opinião; só que fazendo eles algo de improviso e acontecendo-lhes de improviso este algo que se chama união, eles penetram num reino onde não é mais válida a lei da opinião [...] O encontro já se tinha dado anteriormente quando, cada um em sua alma, voltou-se para-o-outro, de maneira que, daqui por diante, cada um, tornando o outro presente, falava-lhe e a ele se dirigia verdadeiramente(Buber, 1982: p. 39).

Assim sendo, mesmo que se possa prescindir da fala, da comunicação, há contudo um elemento que parece pertencer indissoluvelmente à constituição mínima do dialógico, de acordo com seu próprio sentido: a reciprocidade da ação interior. Dois homens que estão dialogicamente ligados devem estar obviamente voltados um-para-o-outro (Buber, 1982: p. 40-1).

 

         Apesar das diferenças, não há dúvida de que há uma forte afinidade entre as noções de dialógico e dual-poroso.

Finalmente falarei do borderline, do homem da atualidade. Suas valências identificatórias abertas permitem a inclusão do mundo humano circundante na área narcísica. O outro humano ou o outro cultural, embora seja reconhecido como diferente faz parte do si mesmo. Isto nos remete a uma ética não-racional, uma ética espontânea, uma ética, diria eu pensando em Winnicott, não intelectual/mental, mas psicossomática. Eu quereria o melhor para mim e para o outro não porque isso é necessário à boa convivência ou porque o altruísmo, a responsabilidade, etc são valores em si a serem preservados, mas porque, por um movimento abarcante meu, o outro faz parte de mim e é fundamental para a minha criatividade, vida e preservação.

Dizendo de outra maneira: o corpomente, tornando-se sensível a outros corposmentes, conhece-os, com eles se relaciona e se comunica, não apenas através de símbolos de segundo grau, mas através da porosidade de suas fronteiras, o que o torna contínuo com o outro, embora ao mesmo tempo separado. O outro é parte de mim sem deixar de ser outro. Qualquer dano ao outro é um dano a uma parte de mim. Por isto mesmo, diante de um sofrimento necessário a ser infligido, ele o será de maneira a causar o mínimo estrago e o mínimo sofrimento à unidade múltipla criada pela identificação dual-porosa. Quanto mais regiões ficarem ao alcance da identificação dual-porosa, mais amplamente poderá se exercer a sua ética. Neste tipo de ética, o entendimento não se dá pela racionalidade intelectual nem a ação acontece por voluntarismo. Não é nem mesmo um entendimento entre dois seres, pois o eu não está separado do outro. É mais um processo de equilibração ecológica que inclui preservação, realização, expansão e assimilação do diferente; um processo de equilibração que, mais que a dialética, utiliza uma sutil interação co-vivencial entre dois ou mais corposmentes. Não há regras a serem seguidas, mas devires atravessados pelo desejo de preservação e realização. Uma preservação, realização e expansão que inclui o outro justo porque o outro é, através da identificação dual-porosa, ao mesmo tempo, um si-mesmo.

         Esta ética possível do borderline tem uma conseqüência clínica: não se trata de transformar psicóide em neuróide (narcísico em edípico), mas sim de manter em mente as potencialidades de desenvolvimento positivo do modo psicóide de existência.

         Assim como o psicóide não exclui o neuróide, a ética dual-porosa não elimina a ética racionalista da responsabilidade.

         A primeira está referida a um estado vibracional, co-vivencial, intuitivo, simbiótico, conjuntivo; a segunda refere-se a um estado de separação, de individualidade, de aguçamento intelectual, de minuciosidade, de disjunção.

A complexidade do humano e dos acontecimentos pede a multiplicação dos pontos de referência éticos. Deslizar de um ponto de referência para outro será mais adequado ao movimento líquido das relações humanas e culturais que permanecer aderido a uma única referência. A ética dual-porosa unívoca e a ética da responsabilidade/solidariedade se suplementam.

 

                                                           Nahman Armony

 

 

 

 

 



[1] Artigo publicado em Psicanálise, uma prática  teorizada (tributo a Horus Vital Brazil) (2007) Rio de Janeiro: editor José Nazar: Cia. de Freud: SPID. 
[2] GRYNKER,R.R., WERBLE,B., DRYE,R.C. (1968) – “The borderline syndrome”.Basic Books, New York, London.
[3] WINNICOTT, D.W. (1982) – “Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à classificação psiquiátrica?”(1959-1964)  IN “O ambiente e os processos de maturação”. Editora Artes Médicas, Porto Alegre.
[4] MARTINS, A. (2002) – “Pulsão de morte? Natureza e cultura na metapsicologia freudiana”. Tese de doutorado em Psicologia Psicanalítica. UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
[5] FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. Obras completas, vol. 23. Rio de Janeiro: Imago, 1969
[6] FREUD,  S. (1917). Conferência 28 – “Terapia analítica” das “Conferências introdutórias sobre psicanálise”. Obras completas, vol. 16. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
 
[7] FEATHERSTONE, M. (1995) – “Cultura de consumo e pós-modernismo”. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
[8] KANT, I.  – “Fundamentação da metafísica dos costumes”. IN: Os Pensadores, vol. XXV. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1974. 
[9] FEATHERSTONE, M. (1995) – Ibid.
[10] GIDDENS, A. (1991) – As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista.
[11] LIPOVETSKY, G. (1994) A era do vazio. Lisboa: Relógio D’Água s/d.
[12] ARMONY, N. (1998) Borderline: uma outra normalidade. Rio de Janeiro: Editora Revinter.
 
[14] BUBER, M. (1982) Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Editora Perspectiva.