Olá pretinho da favela
Do alto de minha janela
Em panorâmica tela
Te vejo retangulado
Retocado, pasteurizado
Pretinho multicolorido
Pretinho já muito vivido.
Te vejo subindo o morro
Pés descalços, ar de liberdade,
Árvores, nuvens, disponibilidade
Te vejo levando a lata
Pesada de água e miséria
Sonhando um sonho feérico.
Tu invejas os doutores
Que do alto de sua pompa
Olham de cima o seu céu.
Tu imaginas os bacanos
Comendo o seu pão-caviar
Envoltos em ouro e seda
Tomando banhos de espuma
Morando fantásticas mansões
Meu pretinho querido,
Com os meus olhos compridos
Sem nenhuma doutorância
Te alcanço no alto do morro
E caminho contigo
Em terras de sonho
Em terras de amor
Além das convenções
Além das distorções
Só nós dois a brincar
Nessa triste nuvem fantasia.
Nahman Armony
DISPONIBILIDADE PARA A IDENTIFICAÇÃO COMO EXPRESSÃO INTEGRADORA DE INTERPRETAÇÃO E ATO
Artigo
publicado na revista “Tempo Psicanalítico”, n.26, março de 1992
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem a intenção de
produzir uma abertura para uma visão holística da psicanálise, reunindo
interpretação, motricidade, pensamento, corporalidade, palavra, ação, emoção,
afeto, razão, em um único bloco dinâmico. O acesso para tal integração passa
por uma nova atitude a ser adotada pelo analista diante de seu analisando: a
"disponibilidade para a identificação". A amálgama dinâmica
conseguida por esta via, evidente no trabalho com crianças, se oculta na
situação terapêutica com adultos. A colocação, lado a lado de situações
analíticas infantis e adultas permite apurar nossa percepção para sutis
acontecimentos psico-corporais que, escandalosamente evidentes na psicanálise
infantil, apresentam-se disfarçados no tratamento de adultos.
No
decurso de uma psicoterapia infantil em que normalmente a interpretação e a
atividade estão integradas no brincar, me vi algumas vezes confrontada com a
pergunta: "Digo ou faço?". Com uma interpretação prematura corria o
risco de perder uma compreensão mais profunda da comunicação da criança. Por
outro lado, uma ação me era pedida, ação que me colocaria, a mim e a meu pequeno
paciente, numa situação cujo significado ainda não estava bastante claro para mim.
Ao escolher a segunda alternativa, o fazer não só se revelava portador de um sentido,
mas me levava a um plano vivencial que me interpelava como pessoa e era terapêutico
em si mesmo. O dizer que emergia
então,
não se limitava a uma intenção de clareza comunicada ao paciente, mas era
vivido com a concretude e a atualidade de uma emoção compartilhada. É esta
integração entre a interpretação e o ato, assim como a profunda comunicação que
o paciente estabeleceu comigo que procurarei mostrar através dos relatos de
sessões que se seguem.
Pedro
tem 6 anos e sua terapia dura há um ano e meio. Muito trabalho já foi feito com
respeito ao luto pelo pai que perdeu antes dos três anos, e à elaboração das
fantasias relacionadas ao seio e ao interior da barriga da mãe vivida como uma prisão
sufocante. É preciso acrescentar que Pedro tem asma desde um mês de idade, é uma
criança retraída e é descrito pelos que o cercam como "desligado" e
"muito passivo" diante da agressão. Ao longo da terapia há vários
momentos de regressão ligados à amamentação e ao nascimento. Duas semanas antes
da sessão morre o bisavô com quem convivia.
Estamos
sentados no chão e Pedro distribui as peças de um jogo de dominó: uma para mim,
outra para você...Retoma então a brincadeira da sessão anterior e joga as peças
espalhando-as pela sala toda. "Vamos nadar no mar, vamos procurar o
tesouro". Deitados no chão, nos arrastamos à procura das peças durante
algum tempo e sentamos para examinar os "tesouros" encontrados. Nesse
momento, Pedro se coloca muito perto de mim e me pede para juntar os pés em
torno dele de tal forma que ele se encontra num espaço fechado e delimitado por
meu corpo. Atendo seu pedido e digo: "É, Pedro, você está dentro".
Seu rosto se ilumina. -"Vamos brincar que você está grávida?"
-"De quem?" -"De mim, ali" apontando para o divã no qual se
deita de costas com as pernas encolhidas. Debruço-me e envolvo seu corpo com o
meu como se fosse uma concha, tomando o cuidado de não tocar nele, de forma que
ele tenha liberdade de movimentos. Estabelece-se então um contato muito intenso
de olhar, olhar em que ao mesmo tempo me sinto mergulhando e que me invade com
muita força. Ao contato de olhar segue o contato de rosto e Pedro encosta sua
bochecha na minha; percorre então meu rosto com o nariz como se, depois de
tê-lo "aprendido" através do olhar ele o fizesse agora com a
respiração. Depois é minha vez de "sentir" o rosto dele que ele encosta-se
ao meu nariz e movimenta para me fazer percorrer o mesmo trajeto. Ao mesmo
tempo, o contato corporal se estreita e há uma espécie de ressonância: sinto
suas modulações tônicas como se suas tensões se prolongassem no meu corpo.
Desse acordo tônico nasce uma sensação de bem-estar muito prazerosa de perda
dos limites corporais; uma percepção difusa de não-separação: estamos nós dois,
só respirando, o mesmo ar, no mesmo ritmo. Pedro busca mais um contato: o de boca,
e este é recusado. Digo: "a boca não pode, Pedro". Aparentemente,
esta recusa não tem repercussão no momento e a vivência de fusão continua.
Entremeando
esse diálogo corporal, surgem as palavras de Pedro:
- Meu avô
foi para o céu!
e as
minhas:
- Sim, teu
avô morreu, você ficou muito assustado e aí dá vontade de ser nenenzinho outra
vez, bem protegido dentro da barriga da mamãe.
- É...mas
Deus não deixa!
E num
outro momento pergunta: Você tem um filho? como é o nome dele? onde você mora?
Ele
"nasce" escorregando de cabeça para baixo e se amparando nas mãos. Dirige-se
então para a mesa, pega papel e pilots e vai começar a desenhar quando muda de
idéia e diz, apontando para o divã: "É ali".
Sento
a seu lado no divã e, para grande surpresa minha, Pedro, pela primeira vez,
consegue desenhar uma figura humana. Há só um detalhe que falta: a boca. Me
limito a dizer "Faltou a boca, não é Pedro?"; ao que ele responde
completando
o desenho.
João, 5 anos, é um menino fóbico e tem problema de
fala. Está em terapia há um ano. No jogo, sempre compete comigo numa luta em
que parece que sua própria vida está em jogo. Ou então, quando sozinho,
estabelece metas e obstáculos a serem ultrapassados. Apesar de muito ágil, cai
muito, e quando se machuca, nega a dor. Há um sonho de repetição: ele cai pela
janela, no vazio. Depois de uma partida de futebol que eu ganho, João me propõe
uma nova brincadeira: nas olimpíadas de Sílvio Santos, a porta da esperança.
Ele está do lado oposto da sala e há entre nós uma série de obstáculos que ele
deve pular: um baú, almofadas, bambolês, etc. Eu devo me colocar como última
barreira, ajoelhada, de braços abertos, e não posso deixá-lo passar. Atrás de
mim está a janela. João atravessa a sala correndo na minha direção. Sob o
impacto, caio sentada e o agarro envolvendo-o com meus braços. Segue-se então
uma intensa luta em que acaba por me derrubar no chão. Nunca imaginei que um
menino desta idade tivesse tanta força. É para mim agora que se trata de uma questão
de vida ou morte: não posso deixá-lo passar de jeito nenhum. Finalmente consigo
contê-lo e termino a luta em pé com João nos braços. Por um breve momento ele
relaxa e sorri; nossos olhares se encontram. Começo a embalá-lo mas alguns instantes
depois ele corre para o chão. Sento para recuperar o fôlego quando João sobe
nas minhas costas, se equilibra e lança um grito de triunfo: "Sou o
Palhaço! Viva o Palhaço!" ao que eu respondo "Você é João!
João!". Ele desce então e se dirige à janela e me chama para olhar a rua.
Sento no chão e novamente João sobe, desta vez nos meus ombros, e comenta o que
vê na rua. De repente, como quem descobre e se diverte com uma idéia nova, ele
diz "As pessoas lá fora vão pensar que tem dois chão aqui" - ao que
respondo: "É João, parece que agora eu estou sendo o teu chão".
Na prática psicanalítica com crianças o movimento é
explícito e evidente. O mesmo não ocorre com adultos; sua movimentação se
expressa bem menos no amplo uso da musculatura esquelética e bem mais em
gestos, expressões, atitudes, papéis desempenhados\vivenciados, afetos,
emoções. É destes movimentos mais sutis, destas moções que falarei a seguir.
Com este propósito vamos discernir aquele afeto que,
inibido no nascedouro, mal aparece, funcionando apenas como sinal, de um outro
ao qual se permite que ganhe força, volume, individualidade, desabrochando em
sentimentos e emoções, adquirindo vida e presença ao se manifestar em
expressões e movimentos. O afeto, para uma psicanálise ainda vigente, é apenas
um instrumento de sinalização para um pensamento representacional, devendo
manter-se em um nível mínimo para não perturbar os processos elaborativos do
pensamento; ou então uma ante-câmara inevitável, intrusa e indesejada de um
salão iluminado e iluminista onde luzes brancas afastam os fantasmas do
inconsciente permitindo uma visão mais clara da realidade.
Já o
afeto que se intensifica e desdobra florescendo em suas variegadas cores, em
seu jogo de luzes e sombras, pertence à linhagem catártica da história da
psicanálise. Aqui, o afeto amalgamado à palavra viva é parte de uma vivência
globalizadora onde palavra, ato, emoção, pensamento, afeto, sentimento, e
mesmo, interpretação, não se separam. Este conjunto em seu movimento de
conquista/reativação de novos/antigos espaços, produz um efeito de
transformação, um efeito terapêutico.
Júlio é um rapaz alto, forte, bem apessoado, com
problemas na área da sexualidade. Habitou o quarto dos pais durante longo
período de sua infância, digamos, dos dois aos nove anos. Seu berço, ou cama,
ficava ao lado do leito conjugal e o nível de seu colchão era o mesmo ou
superava em altura o de seus pais. Fiz várias referências à possibilidade de
Júlio ter assistido às relações sexuais do casal. Ele porém de nada se lembra,
nada sente e nada de novo aparece. A idéia dos pais copulando soa-lhe como uma
história inventada que nada tem a ver consigo embora reconheça intelectualmente
que, sem dúvida, algo ele ouviu, viu ou sentiu em tão longo tempo de
convivência noturna com os pais. Numa certa sessão eu me senti como se fosse o
menino Júlio assistindo à relação sexual dos pais. E apareceu dentro de mim uma
sensação. Não creio que esta sensação tenha surgido ali; acredito mais que ela
foi se formando através de pequenos indícios acumulados no meu inconsciente,
nas trocas entre mim e Júlio. E finalmente quando, adquirindo sentido,os
fragmentos indiciais aglutinaram-se, identifiquei-me com o menino Júlio. E, a partir
daquilo que era uma sensação quase opressiva dentro de mim, - uma opressão que
me empurrava para a catarse- eu lhe disse: "A relação de seus pais pode
ter sido sentida como um grandioso fenômeno da natureza, como uma
pororoca".
Esta
intervenção verbal - que formalmente poderia ser considerada uma interpretação
– estava impregnada de uma poderosa intensidade, mercê de
uma
identificação homóloga surgida na situação analítica. Interpretação e ato tornam-se,
nestas circunstâncias, indistinguíveis.
Desta
intervenção Júlio não pode dizê-la alheia a seus sentimentos. Tocado, impressionado,
mobilizado, Júlio trouxe o assunto na sessão seguinte. E pudemos ver então um
menino diante de uma tremenda, terrível manifestação da natureza. Ele perdido e
fascinado em meio a uma assombrosa tempestade. Ele, hipnotizado, horrorizado,
atraído pela grandiosidade e força do encontro de dois gigantes cósmicos e
apavorado pela atração. Desejo de participar daquele formidável evento e medo
de ser esmagado, perder-se, desaparecer. A relação sexual dos pais ganhou força
e sentido e concomitantemente a imobilidade vivencial em que se encontrava em
relação às suas dificuldades sexuais cessou; a análise agora ganhava um novo impulso.
Não se poderia dizer dos três exemplos relatados que o
paciente estava associando livremente diante de um analista em estado de
atenção flutuante. Mais adequado é denominar a atitude do terapeuta de
"estado de identificação" o que pressupõe uma prévia
"disponibilidade para a identificação". Este modo de estar do analista
diante do paciente abre novos campos de experiência. Não é ocioso relembrar que
o conceito de resistência surgiu quando da passagem da hipnose para o método de
pressão, assim como a substituição deste método pela associação livre permitiu
perceber a complexa estrutura da neurose, com seus inumeráveis deslocamentos e
condensações incluindo-se aí o fenômeno da transferência. A aquisição da noção
de "disponibilidade para a identificação" possibilita o aparecimento
de um novo campo: um campo onde dinamismos intersubjetivos ligando paciente e
terapeuta, se produzem2.
A
dupla atenção flutuante/associação livre tem como pressuposto inicial uma comunicação
entre analista e analisando processando-se em nível de linguagem. Admite-se que
o analista interprete comunicações infra-verbais tais como posturas corporais,
comportamentos, gestos, etc. Mais é mais raro aceitar-se que este tipo de
comunicação
seja de mão dupla, como se um analista não emitisse sinais perceptíveis que
pudessem ser levados em conta na dinâmica da relação. Lembro-me de um paciente
psicótico que, numa sessão em que eu estava preocupada em memorizar os acontecimentos,
me surpreendeu com a pergunta: "Mas por que você deixou o gravador ligado
hoje?". Através da suposta existência de um gravador concreto o paciente
expressou uma percepção real de uma preocupação minha.
Esta área de comunicação averbal à qual a linguagem
pode se sobrepor mas sem nunca esgotá-la se caracteriza por processos
primitivos do pensamento, ou seja, a não distinção entre o símbolo e o
simbolizado entre a realidade interna e a realidade externa. A identidade entre
o símbolo e o simbolizado é para Fenichel característicado pensamento
pré-lógico. "Ao passo que na distorção se evita a idéia de pênis”, disfarçando-a
através da idéia de cobra, no pensamento pré-lógico pênis e cobra são uma e
mesma coisa; isto é, são percebidas por uma concepção comum: o avistar da
cobra
provoca emoções relacionadas com o pênis; e este fato é utilizado mais tarde quando
a idéia consciente de cobra substitui a idéia inconsciente de pênis"3.
Já Winnicott considera que o simbolismo tem um significado variável e confere o
status de símbolo às duas concepções. "Se considerarmos, por exemplo, a
hóstia da Sagrada Comunhão, simbólica do corpo de Cristo, penso que tenho razão
se disser que, para a comunidade católico romana ela é o corpo de Cristo
e, para a comunidade protestante, trata-se de um substituto, de algo
evocativo, não sendo essencialmente, de fato, realmente o próprio corpo. Em
ambos os casos, porém, trata-se de um símbolo"4.
Essa
experiência não se limita ao campo religioso mas faz parte do cotidiano dos telespectadores
que, ao encontrarem atores das novelas, repreendem com indignação as maldades
das personagens ou elogiam suas façanhas com admiração. Podemos dizer que a
pessoa do ator é apagada a favor da personagem assim como o analista, até certo
ponto, é "apagado" na transferência. Em momentos privilegiados, ao se
deixar afetar e moldar pelas necessidades do paciente, o analista desempenha o
papel de objeto transicional e faz parte tanto de seu mundo interno quanto
externo. Paciente e terapeuta sentem-se numa espécie de sonho acordado onde a
"outra cena" é o espaço analítico.
Nas vinhetas infantis vimos como a criança retira o terapeuta
de uma posição neutra e observadora, induzindo-o a preencher uma função, a
desempenhar um papel. É preciso, porém, que não nos enganemos; de nada servirá
para a criança o terapeuta atender ao seu pedido mantendo-se em uma
exterioridade, teatralizando em obediência a um comando. Pedro não precisava
simplesmente de um útero - de um receptáculo neutro - para se abrigar e depois
nascer; ele necessitava de uma barriga vívida que o acolhesse e preenchesse
suas necessidades. Pedro estava em busca de algo só alcançável por um terapeuta
disposto a se identificar com seus sentimentos, fantasias, vivências. O
desempenho de papéis e preenchimento de funções não é apenas uma representação,
algo externo que se cola à personalidade do terapeuta ou um modelo dado pela
criança a ser seguido. Pelo contrário: a criança aponta para uma necessidade
afetivo/vivencial só possível de ser alcançada e acolhida por um terapeuta em
estado de disponibilidade para a identificação. Só assim será possível viver
com o pequeno paciente as fantasias/realidades necessárias ao seu
desenvolvimento. Mme. Sechehaye5 quando aceitou amamentar Renèe
através da maçã não estava distinguindo maçã de seio, símbolo de simbolizado; o
aleitamento não estava sendo "representado" mas sim vivido já que as
emoções e vivências da amamentação tanto da parte da paciente quanto da
terapeuta estavam autenticamente lá. Enquanto a criança e o psicótico facilitam
ao terapeuta o acesso ao pedido implícito devido à concomitância verbal/não-
verbal de suas solicitações, a maioria dos pacientes adultos não verbaliza o
aspecto escondido de seus pedidos. Assim, o que está desvelado no tratamento de
crianças e psicóticos torna-se velado no tratamento dos adultos não-pdicóticos.
Tal qual crianças e psicóticos, pacientes adultos solicitam do terapeuta o desempenho
de papéis. Como porém não é uma solicitação com um aspecto verbal indubitável,
o psicanalista ao se posicionar classicamente - neutralidade, observação, atenção
flutuante, frieza técnica - não a perceberá. Para alcançá-la será preciso que ele
se coloque numa disposição especial: é preciso que esteja disponível a
responder às sutis solicitações do paciente no sentido de exercer uma função
vivendo certo papel. É preciso que ele esteja em "disponibilidade para a
identificação". No caso de Júlio, anteriormente citado, esta
disponibilidade levou a uma identificação homóloga, a uma fusão com o
paciente/menino. A pressão era no sentido de fazer o terapeuta viver/expressar
o que o menino Júlio vivera/vivia como se o terapeuta fosse o próprio Júlio. Na
maior parte das vezes porém, a pressão está direcionada não para uma identificação
homóloga mas para uma identificação complementar. O terapeuta deverá viver um
papel complementar indicado pelo paciente.
Vitório repete sem cessar o seu desespero com os
revezes cotidianos: um pneu que fura, pais que brigam, trânsito entupido, vaga
não conseguida, tudo parece ter um sentido que transcende a cotidianidade. Como
se aqueles acontecimentos fossem um castigo dos deuses. Sendo o terapeuta o
único Deus em presença, este se vê empurrado pelas reiterações, lamúrias,
reivindicações, queixas - um conjunto que exprime um intenso sentimento de estar
sendo injustiçado - para uma posição de Personificação-Má-Onipotente,
responsável por tudo de ruim que lhe acontece. Por trás desta atribuição de
maldade à Mãe-Terapeuta existe um vagido que é um poderoso pedido para o
surgimento da Mãe-Boa-Todapoderosa que o proteja onipotentemente. Um
psicanalista com o seu ego fechado às subliminares pressões do paciente,
permaneceria neutro, usando a sua afetividade como um sinal para interpretar
fantasias; não permitiria que uma alteração de seu ego o fizesse provisoriamente
sentir-se como a própria Mãe-Má (por exemplo, não se daria o consentimento de
sentir uma certa inquietude indicativa de uma fantasia de responsabilidade
pelos infortúnios do "filho querido"6. Manter-se-ia
"duro", inflexível, preservando e freqüentemente refugiando-se em seu
papel de "interpretador" não podendo pois perceber que mesmo
interpretações corretas podem quebrar o desenrolar dos dinamismos, obstando um
desenvolvimento dinâmico da relação. Um paciente não encontrando tranqüilidade
ou consentimento no terapeuta para vivenciá-lo como Mãe-Má faria um corte em
seu processo dinâmico, ou perpetuando ou reprimindo o seu dinamismo; não
haveria uma seqüência fantasmática, um desdobramento do dinamismo. Recorrendo
mais uma vez à vinheta-Vitório: não fosse a liberdade que o campo psicanalítico
- criado pelas linhas de força da relação analista-analisando - lhe forneceu,
Vitório não poderia vir a perceber o seu desejo mais profundo, um desejo que
ultrapassava o seu dinamismo paranóide: a aparição da Mãe-Boa-Onipotente. Este
conjunto de exemplos práticos e considerações teóricas nos levam a concluir que
a disponibilidade para a identificação permite o aparecimento e desdobramento
de dinamismos intersubjetivos: paciente e terapeuta compartilham vivências.
Nestas circunstâncias, palavra, ato, interpretação e pensamento estão de tal
forma ligados, de tal maneira se interpenetram que só por um artifício
analítico podem ser separados. Vive-se uma relação e dela se fala;
intermitentemente esta fala assemelha-se a uma interpretação. Deste ponto de
vista interpretação e ato formam uma unidade indissolúvel. Estamos, pois,
diante de uma psicanálise a ser pensada e exercida também em termos holísticos.
Notas e Referências
bibliográficas
1-
Esta expressão foi usada pela primeira vez por um dos autores (Armony, N.) e encontra-se
no artigo “Dinamismos em Psicanálise” publicado em “Psicanálise: da
interpretação à vivência compartilhada” em 1989.
2-
Encontramos formulações próximas às nossas em Winnicott. Selecionamos dois trechos
de seu artigo La teoría de la relación paterno-filial escrito em 1960,
constante do livro El proceso de maduración en el niño (Editorial Laia,
Barcelona, 1975) ilustrativas deste parentesco. Estas
citações, articuladas, se suplementam: "Lo importante, a mi modo de ver,
es que la madre, por medio de su identificación con la criatura, sabe cómo se
siente ésta y, por tanto, es capaz de darle casi exactamente todo cuanto
necesita en forma de sostenimiento y de provisión de un medio ambiente general.
Sin tal identificación considero que la madre no aportará lo que la criatura necesita
a principio: una adaptación viva a sus necesidades"(pag.61). "Parecidos
cambios de orientación los
experimenta el analista al satisfacer las necesidades de un paciente que, en la
transferencia, está reviviendo estas etapas iniciales. Y el analista, a diferencia
de la madre, tiene que ser consciente de la sensibilidad que se está desarrollando
en su interior en respuesta a la inmadurez y dependencia del paciente. Cabría
pensar que esto es una ampliación de la descripción freudiana según la cual el analista
se halla en un estado voluntario de atención"(pag.60).
3-
Fenichel, citado por Marion Milner no artigo O papel da ilusão na formação simbólica
in Novas tendências na psicanálise, Zahar Editores, Rio de
Janeiro 1969, pag. 119.
4-
Winnicott, D.W. (1971)- O Brincar e a Realidade. Imago Editora, Rio de
Janeiro, 1975.
5-
Sechehaye, M.A. (1947)- La realisation symbolique Hans Huber, Berne,
Editor.
6- O
paciente poderá envidar poderosos esforços para retirar o terapeuta de sua posição
de serenidade envolvendo-o em suas fantasias, mobilizando-o com suas emoções,
manipulando seus pontos vulneráveis até conseguir colocá-lo no papel fantasmático
complementar ou homólogo.
Nahman Armony
e Rejane S. Armony
LETHEA&ALETHEA
VERDADE&MENTIRA
Uma longa tradição dicotômica que teve
seus expoentes em Platão e Descartes nos acostumou a enxergar o mundo através
de extremos. Bom-mau; justo-injusto; saúde-doença, etc. Atualmente estes
extremos têm se suavizado propiciando a percepção de uma zona intermediária, o que
provoca dificuldades éticas. Trataremos aqui da dicotomia verdade-mentira. Começarei
por uma situação simples: vemos seguidamente na vida e na ficção alguém dizendo
para uma pessoa prestes a morrer, ou acometida de um mal incurável a mentira do
“está tudo bem”, “tudo vai dar certo”. Trata-se de uma mentira? Ou é uma
questão de foco? Esta pergunta é pertinente, pois o conhecimento bruto e súbito
da realidade poderá fazer a pessoa sentir-se ainda pior e provocar ainda mais
sofrimento.
Quando o psiquiatra lida com pacientes
psicóticos deverá tomar extremo cuidado em não tocar em assuntos para os quais
exista uma susceptibilidade exagerada levando a reações de ansiedade,
agressividade, pânico, confusão mental, etc. Diante de delírios esquizofrênicos
não se deve contrapô-los à realidade para não despertar reações excessivas. O
psiquiatra ou o analista deve permanecer silencioso o que certamente criará uma
situação ambígua na qual o paciente poderá vir a ter a certeza de que o
interlocutor concorda com ele. Uma ambigüidade cuja função ética é evitar situações
críticas de descontrole.
Todos nós temos zonas de hiper-susceptibilidade.
Num relacionamento de casal se uma dessas áreas é revelada pelas palavras do
companheiro, a isto pode se seguir uma crise de conseqüências funestas, seja no
âmbito pessoal com prejuízos corporais e psíquicos, seja no âmbito do relacionamento
de casal quando a pessoa ofendida em sua auto-estima e ameaçada em seu
equilíbrio psíquico fecha definitivamente a porta da relação. Nestes casos
caberia a omissão, a concordância ambígua e a distorção tranqüilizadora. Por
exemplo: uma pessoa que tenha grande dificuldade com dinheiro e que se a
reconhecesse ficaria psiquicamente desequilibrada por considerar a usura uma
baixaria da pior espécie, não poderia ouvir do companheiro nenhuma alusão a
esta característica; criar-se-ia um mal-entendido, uma idéia deliróide que a
faria reagir com fúria, com depressão, com confusão, com extrema ansiedade. Se rola
aquilo que em vários artigos meus chamei de “paixão visceral”, uma paixão que
não admite outra coisa senão a continuidade da intimidade amorosa, aceitando
então lidar com os aspectos imaturos do amado, aquele assunto (a usura) não
pode ser tocado. Por algum tempo ele deverá ser evitado até que o progresso da
relação permita que ele seja tangenciado e por fim, eventualmente, um dia
possa-se falar abertamente dele. Para conservar a integridade e força da
relação e o relacionamento ele próprio é necessário lançar mão da omissão, da
ambigüidade, da tergiversação. Pode-se dizer que aqui a ética não é a da
verdade, mas da preservação de uma relação amorosa que aceita as partes
imaturas (psicóticas) do outro. É claro que existe a esperança de que a verdade
do amor, gerando um comportamento sensível e adaptado às situações, acabe por
promover um amadurecimento dos aspectos dissociados, possibilitando sua saída
das trevas e tornando viável uma relação mais transparente.
Nahman
Armony
Primeira publicação na revista CARAS.
CREPÚSCULO
Discretamente
Vou-me apagando
Um a um meus personagens me abandonam
E a solidão
Reclama os seus direitos
De nascença.
Nada há a objetar.
É dobrar-me
À lei da vida
Que Talião escreveu
Em letras de fogo
No meu fundo.
Encontrar um cântaro generoso
Sábio
Amoroso
Que desvende meu labirinto
Que alcance meu centro sensível
Que envolva minhas feridas em seu mistério,
É demasiado?
Nahman Armony
Vou-me apagando
Um a um meus personagens me abandonam
E a solidão
Reclama os seus direitos
De nascença.
Nada há a objetar.
É dobrar-me
À lei da vida
Que Talião escreveu
Em letras de fogo
No meu fundo.
Encontrar um cântaro generoso
Sábio
Amoroso
Que desvende meu labirinto
Que alcance meu centro sensível
Que envolva minhas feridas em seu mistério,
É demasiado?
Nahman Armony
PERCURSOS DA CLÍNICA
Percursos da Clínica[1]
Ao lançar um olhar abrangente sobre as
mudanças na prática psicanalítica, tomando como referência as potencialidades
de expansão da teoria e da técnica freudiana já realizadas pelos analistas da
atualidade, e especialmente impregnado pela realidade do Rio de Janeiro e do
Brasil, percebo dois grandes eixos através dos quais a psicanálise se desloca:
um eixo lacaniano e um não-lacaniano. Eu mesmo me surpreendo com esta
formulação, onde um único nome ao ser colocado em destaque dilui as ricas e
complexas contribuições diferenciadas de autores como Winnicott, Sullivan,
Kohut, M.Klein, Searles, Bion, Bleger, Balint, Racker, Green e muitos outros,
das quais a psicanálise já não pode prescindir. Não é, portanto, uma situação
com a qual eu concorde, mas acossado, à minha revelia, por uma realidade
carioca, quiçá brasileira, produtora de mesas de debates compostas por um
expositor de orientação lacaniana e outro (perdoem-me a generalização)
não-lacaniana, acabei aceitando-a. Não
se trata porém de um aceite passivo, já que ela é empobrecedora; na medida de
minhas reduzidas possibilidades tentarei dar o meu mínimo empurrão no
determinismo histórico (se é que a história seja assim tão determinante) e sem
dúvida este trabalho se insere nesta linha. De qualquer forma este episódio
serviu para chamar a minha atenção para um fato muito curioso e que deve ter o
seu significado: a escola lacaniana apresenta características que a colocam em
confronto com as demais escolas. Exercendo, a título de humor, a capacidade de
livre fabulação associativa arruma-se na minha mente uma piada: num balé, o
passo destoante de um filho bailarino faz com que a mãe-coruja se vanglorie ser
dele o único passo certo.
Evidentemente
não ignoro que dificilmente um psicanalista da atualidade deixará de sofrer a
influência direta ou indireta, afirmativa ou negativa do pensamento lacaniano
tão forte é a sua presença política e teórica; porém, excluindo, por medida de
prudência, uma zona sombreada, podemos demarcar, para fins metodológicos, um
espaço sim e outro não lacaniano.
Como
sinalizador mais representativo da diferença entre estes dois campos escolhi os
modos de conhecimento utilizados na sessão analítica que por sua vez geram
formas de relacionamento e intervenção psicanalíticas diversas. Uma corrente
admite a existência e importância no interior da sessão psicanalítica de uma
comunicação de inconsciente a inconsciente, de um conhecimento afetivo, de uma
relação empática, de identificação, de "feeling"; são formas de
conhecimento, comunicação e relação usadas terapeuticamente e teorizadas pelos
autores não-lacanianos. Já a corrente lacaniana descarta senão a possibilidade,
pelo menos a importância deste tipo de conhecimento, afirmando que esta forma
de psicanálise não pertence ao legado de Freud.
Freud
foi um grande pensador e como tal possui uma polivalência criativa indutora de
múltiplas leituras. Sem dúvida nenhuma, nosso mestre comum indicou um caminho
de conhecimento operativo que ultrapassa o simbólico. Enquanto Lacan afirma que
"....não há outras, nem terceira
orelha, nem quarta, para uma transaudição que se quereria direta do
inconsciente pelo inconsciente"("Função de campo da fala e da
linguagem em psicanálise" in Escritos, Ed.Perspectiva, S.Paulo, 1978,
pag.118), Freud nos diz que o psicanalista "....deve
voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do
inconsciente transmissor do paciente". ("Recomendações aos
médicos que exercem a psicanálise", vol.12, pag.154). Uma colocação ainda
mais ousada nós a encontramos formulada alguns anos após: em um de seus artigos
sobre telepatia e psicanálise Freud diz que precisamos estar preparados "....para presumir que o conhecimento
foi transferido dele para a suposta profetiza, por algum método desconhecido
que excluiu os meios de comunicação que nos são familiares, ou seja, teremos de
inferir que existe algo como a transmissão de pensamentos." (vol.18,
pag.225)
A
corrente não-lacaniana tornada solidária por uma posição lacaniana avessa a um
conhecimento afetivo-empático-identificatório, não apresenta uma unidade. É
possível distinguir dentro dela três linhas:
a compreensão empática ou é usada como um instrumento de conhecimento
propiciador de interpretações mais afinadas com o inconsciente do analisando,
ou torna-se um meio facilitador de crescimento, ou é levada até o desempenho
deshierarquizante.. Importar-me-ei menos com as diferenças que com as
semelhanças; de qualquer forma, ora estarei referido solidariamente às três
linhas, ora a uma delas.
O
conjunto da produção psicanalítica forneceu-me bases para a formação de minha
própria teoria; porém, pensar outras teorias a partir da minha própria seria
repeti-la sob vários disfarces. Por isso mesmo socorri-me de disciplinas e autores
extra-analíticos na esperança de que uma multidisciplinaridade venha a permitir
uma discussão mais ampla e produtiva das questões psicanalíticas.
Todos
sabemos que a psicanálise mudou. Entre os vários fatores destas mudanças
encontram-se as transformações da subjetividade humana. O paciente que se
apresenta hoje para tratamento difere daquele dos fins do século 19 meados do
século 20. O olhar do analista também mudou percebendo algo diferente de
estrutura neurótica. Estarei certamente cansando o auditório ao dizer que os
casos descritos naquela época eram de neuroses estruturadas (histérica,
obsessiva, fóbica) enquanto que na atualidade predominam os fronteiriços, as
personalidades narcísicas, o sofrimento existencial, os quadros
poli-sintomáticos. O que estas mudanças têm a ver com a história do homem em
seu sentido mais amplo, incluindo sua cultura e suas instituições? Invocarei
Foucault e Deleuze em suas análises sobre o poder nas sociedades industrial e
pós-industrial articulando-as com as correntes psicanalíticas referidas.
Segundo
Foucault surge no século 19, em substituição ao poder monárquico, o poder
disciplinar produtor do "indivíduo". A figuração arquitetônica deste
poder disciplinar é o panóptico carcerário. Ao se exercer o binômio vigilância-punição
sobre o corpo e o espírito de um ser humano, incitando-o a seguir um modelo,
criam-se os processos de individualização. É neste contexto que surge a
psicanálise que ao desdobrar sua teoria
fala-nos de um superego vigilante e
punitivo, prescritivo e proscritivo, incitando o ego a se estruturar segundo um
ego ideal, e um ideal de ego. A idéia de ego bem estruturado é um prolongamento
do ideal de pessoa bem estruturada pertencente ao imaginário social do século
19 que se estende até meados do século 20. Esperava-se das pessoas uma
integridade, uma continuidade, uma coerência, uma disciplina que as tornassem
absolutamente confiáveis, membros sadios de uma comunidade sadia voltados para
um mesmo objetivo e dirigidos por uma mesma ideologia. A este indivíduo estruturado correspondem as
neuroses estruturadas. O modelo da estruturação dominava o campo social de tal
maneira que tanto o comportamento do paciente quanto o olhar do analista
estavam por ele moldados. Usando a concepção de indivíduo introduzida por
Foucault chamarei ao homem de ego bem estruturado, isto é, àquele que responde
a um modelo social disciplinar veiculado pelo superego, de homem-individual; a
hipérbole deste homem é o neurótico clássico - um paciente que tanto se
apresenta como é apreendido como estruturado.
Havia,
portanto um modelo estruturador a ser seguido, modelo este que em psicanálise
apresenta-se na figura do superego. O superego é fundamentalmente resultado da
identificação do menino com o masculino social (superego do pai), e recalque
do feminino. O poder disciplinar impõe
ao homem uma repressão do feminino, desvalorizando este feminino,
restringindo-o às mulheres e assim
desvalorizando-as também. Tentava-se manter este feminino desvalorizado em um
gueto, isolando-o da cultura masculina; mas a partir deste gueto o feminino
exercia sua pressão.
Embora
a sociedade disciplinar isole o feminino, retirando-o das linhas de força positivadas pelo modelo,
não o descaracteriza, não o nega nem controla. Já a sociedade pós-industrial
permite que o feminino e outras forças marginais saiam de seus guetos, pois
agora conta com um novo e mais sutil instrumento de poder: o controle.
Para
Deleuze estamos vivendo o advento da sociedade de controle. Enquanto a
disciplina opera por vigilância e punição, o controle opera por regramento de
fluxos. O modelo deste novo tipo de poder é a informática e o marketing. O
poder tenta modular os movimentos livres. Os desviantes e marginais até então
habitantes dos bastidores podem agora se manifestar. O modelo da estruturação
diminui de importância no imaginário social - não mais se espera coerência nos
homens e organização nas neuroses. Começa-se a falar de singularidades,
múltiplas tendências que impelem o homem para desencontradas direções; o imaginário
social despe o homem de seu código de honra aceitando uma instabilidade
incompatível com o ideal de personalidade ou caráter bem estruturado;
similarmente, as neuroses já não se apresentam estruturadas; os fóbicos,
histéricos, obsessivos cedem cada vez mais espaço para os borderlines, os
psicossomáticos, para os quadros narcísicos.
As singularidades pré-individuais até então recalcadas e reprimidas,
tornam-se socialmente e pessoalmente visíveis, manifestando-se com maior
liberdade no homem e na sociedade. Diante desta situação o poder busca novos
meios de lidar com o que pode ser denominado de homem singular e grupo
singular, aqueles homens e grupos que não se conformam ao código estabelecido,
criando sua maneira original de viver e de pensar. Uma analogia imperfeita,
porém esclarecedora da sutileza operativa deste poder está nos esportes
modernos; no surf, windsurf, asa delta o desportista aproveita as forças, os
movimentos já existentes, codificando-os e usando-os para seu objetivo. Digo que o exemplo é
imperfeito porque nestes esportes existe uma codificação apenas pragmática dos
fluxos e não uma sobrecodificação aprisionadora, uma espécie de neoburocracia
teórica e institucional que captura e direciona
o pensamento e a experiência livres. Segundo Deleuze não é, porém a
sobrecodificação a forma de controle mais eficaz que a atualidade vem
estabelecendo. Esta se caracteriza mais por aquilo que poderíamos chamar de
"liberdade controlada". Pessoas e grupos são livres, mas o poder os
acompanha pari-passu direcionando seus fluxos no sentido de seu interesse. Um
exemplo extremo seria o dos psicóticos não enclausurados em um hospital
psiquiátrico, mas assistidos por um "acompanhante terapêutico".
O
Édipo freudiano é um testemunho da sociedade disciplinar. O Édipo lacaniano
encontra-se na transição sociedade disciplinar-sociedade de controle. Um
cotejamento de duas citações, uma freudiana e outra lacaniana servirá para nos
esclarecer a respeito. Freud: "A autoridade do pai ou dos pais é
introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego que assume a severidade do
pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do
retorno da catexia libidinal"("A dissolução do complexo de
Édipo", vol.19, pag.221). A catexia libidinal que liga o filho à mãe está
proibida de retornar, mas permanece viva e atuante nos porões da mente e da
cultura. Podemos fazer um símile com os titãs que enterrados sob as montanhas
as fazem tremer periodicamente, pois sua força não está anulada, não está
controlada - está reprimida, isolada, guetificada. Vejamos agora a colocação de
Lacan: "Todo esto invita a
reconsiderar la función del padre que está en el centro de la cuestión de
Édipo....Distinguiremos tres tiempos. Primer tiempo: la metáfora paterna actúa
en sí por cuanto la primacia del falo es instaurada en el orden de la
cultura....En este primer tiempo el niño trata de identificarse con lo que es
el objecto del deseo de la madre y no solamente de su contacto, de sus
cuidados; pero hay en la madre el deseo de algo más que la satisfacción del
deseo del niño; por detrás de ella se perfilan todo ese orden simbólico, el
falo". (Lacan- Las formaciones del inconsciente. E.Nueva Visión,
Buenos Aires, 1979, pag.86). Enquanto Freud testemunha um patriarcalismo que
abafa e desvaloriza os modos femininos de conhecimento e relação sem porém
estabelecer um controle sobre eles, Lacan coloca-se em outra posição: o objeto
de desejo da mãe não seria o bebê mas a ordem simbólica. Desta maneira os
impulsos e movimentos maternais (cuidar do bebê, colocá-lo ao colo,
amamentá-lo, fundir-se, afastar-se, manifestar amor, raiva, contrariedade,
fastio, aversão, desgosto, responder às suas solicitações, evitar seu
sofrimento) não mais seriam livres, não teriam mais a força impositiva de um
impulso primitivo mas estariam sobrecodificados, capturados, aprisionados,
acompanhados, controlados pelo falo - significante dos significantes - pelo
código simbólico, pelo masculino. Os
titãs podem agora vir à superfície pois sua força está dirigida, canalizada,
controlada pelos deuses: não mais assustam. Os movimentos feminino-maternos
controlados e direcionados pelas linhas do modelo-código masculino não mais
atemorizam. O asadeltista não mais teme o vento, uma força livre que ele
capturou através de uma codificação. A captura da comunicação-relação
feminino-materna pelo código masculino tornar-se-á mais evidente se cotejada
com o pensamento de Winnicott: este autor considera que a relação mãe-bebê será
por algum tempo psicótica, desvinculada dos aspectos propriamente sociais e
culturais; mãe e bebê estarão em uma "folie a deux", num mundo
próprio por eles mesmos criado, protegidos por uma continência realizada por
alguém outro - geralmente o pai ou a família - continência que protege a díada
da interferência do social.
Ao
me referir a Freud e Lacan no parágrafo anterior tive de realizar uma
esquematização, uma simplificação pela base. Freud, aberto ao novo, buscando
corajosamente a verdade do auto-conhecimento, preocupado com as injustiças
sociais assim como Lacan atento às tendências do pensamento francês e
universal, procurando se manter como centro irradiador de cultura
contemporâneo-renovadora, buscam e encontram linhas de fuga para o sistema
masculino fálico-castrado. Freud através do genital tenta ultrapassar a
dicotomia, mas não é aí que ele o consegue pois a fase genital ainda referenda
a supremacia dos modos masculinos de relação, conhecimento e comunicação. Já
vimos, porém que ele consegue abrir brechas no modelo masculino quando fala,
entre outras coisas, de comunicação de inconsciente a inconsciente, deflagrando
um movimento que desemboca em várias noções de linhagem feminina: empatia,
disponibilidade para a identificação, reverie, preocupação materna primária,
espaço transicional, devoção, etc. Lacan também tenta ambiguamente,
ambivalentemente, escapar ao fálico-castrado, cuja outra manifestação é a
dicotomia código-falta(Baudrillard) e acompanhando o espírito da época elocubra
sobre o real, reconsidera o estatuto do Grande Outro tornando-o barrado,
pensa a pulsão de morte, introduz o
objeto "a" causa de desejo. Este objeto "a" nos interessa
particularmente, pois é como o feminino se manifesta na clínica lacaniana; o
analista colocado na posição de objeto causa de desejo remete-nos a um feminino
misterioso, um feminino excitante que nunca se deixa capturar e por isso mesmo
gerador de um movimento incessante na análise; ao mesmo tempo mantém uma
distância, facilitadora de idealizações, o que põe em xeque a concepção teórica
do analista como resto-rebotalho. Não é o mesmo feminino da corrente
não-lacaniana; este outro, suplemento do anterior, é um feminino maternal,
acolhedor, doador, continente, amoroso, capaz de empatizar, de estabelecer
identificações homólogas e complementares, um feminino que se deixa alcançar
realizando fusões e simbioses, vivendo separações e individuações,
experienciando uma variada gama de sentimentos fortes e sutis, que passam pelo
amor, raiva, medo, inveja, ciúme, um
feminino que se une ao paciente possibilitando
crescimento, permitindo experiências básicas não vivenciadas na época
própria, colmatando lacunas, desfazendo excessos.
Maternal
é uma palavra estigmatizada em psicanálise. Lembra "passar a mão na
cabeça", pieguice, sentimentalismo. Podemos pensar que esta fachada é
persistentemente evocada pelos analistas "anti-maternais" pelo temor
ao poder intrusivo e devorador da mãe. Realmente, quem garante que a
mãe-analista usará o seu poder em favor do filho? E, no entanto, se o
analisando não corre este risco, ( e ele o teme devido às suas fantasias
arcaicas) não poderá usufruir dos benefícios de uma relação que poderá chegar
às bases de seu devir-pessoa. Para além da fachada desvalorizativa, maternal
significa o uso dos meios femininos de comunicação, relação e conhecimento - a
empatia, a identificação homóloga e complementar, a simbiose,etc. Pode-se então
ampliar o mundo que nos é apresentado pelos sentidos e pela razão, pela
representação e pela palavra, vivendo intensidades, experimentando uma ampla e
sutil gama de afetos, mergulhando em fantasias ainda não verbalizadas. É o
mundo das singularidades, do aprendizado
das trocas afetivas, do exercício da sensibilidade somato-psíquica e dos afetos
sutis que fazem parte de um pensamento e conhecimento holísticos, é onde se plantam
os alicerces da confiança e segurança básicas, os cimentos da criatividade e
espontaneidade que sempre poderão respirar e palpitar mesmo quando soterradas
por montanhas de regras, leis e teorias. A função materna tem a ver com a
singularidade aqui entendida como princípio de atividade e como possibilidade
de expressão e expansão de forças em devenir.
Este
feminino-maternal permite, no campo psicanalítico a ultrapassagem da dicotomia
sujeito/objeto, observador/observado, pensamento/ação, possibilitando um estado
de comunhão e de integração. Sua função holística faz-nos reconhecer sua
pertenencia ao movimento ecológico que, diante da situação catastrófica dos vários meios-ambientes
(físico, social, mental) busca a superação das dicotomias.
O
progresso da sociedade ocidental está inextricavelmente ligado a um pensamento
que valoriza a compartimentização, a racionalidade desfantasmatizante, as
dicotomias. Durante muitos séculos os benefícios advindos deste pensamento
foram de tal monta que o preço em sofrimento e destruição que a humanidade
pagava parecia valer a pena. Hoje, a ameaça de aniquilamento que pesa sobre o
homem em conseqüência desta mesma visão de mundo propiciadora dos avanços de
nossa sociedade exige uma mudança de mentalidade; a reversão do platonismo, a
superação das dicotomias estão entre as transformações necessárias. A distância
homem-mundo, sujeito-objeto, distância esta que cria um hiato, um vazio, uma
falta entre os dois termos da dicotomia, necessita ser superada e
reposicionada. Este é um trabalho demorado e penoso de subjetivação pois de tal
maneira o pensamento dicotômico-faltoso imperou produtivamente durante séculos
no universo ocidental que terminou por se entranhar no cerne mesmo da idéia de
homem; a dicotomia e a falta passaram a ser vistas como inerentes à própria
condição humana. Só com muita dificuldade damo-nos conta de que
dicotomia-falta, é uma formação
subjetiva datada.
Falta
é uma palavra onipresente na psicanálise de hoje. Tem porém significados
diversos. Para a corrente lacaniana a falta
é parte inerente da constituição do homem seja pelo "assassínio da
coisa" ao advir o símbolo (Escritos, pag.184), seja pela alienação do
sujeito no Outro. Citações: "Assim o
símbolo se manifesta primeiro como assassínio da coisa, e essa morte constitui
no sujeito a eternização do seu desejo".(Escritos, pag. 184). "É preciso supor nele (no homem) uma
certa hiância biológica, aquela que tento definir quando lhes falo do estádio
do espelho. A captação total do desejo, da atenção, já pressupõe a falta. A
falta já está aí quando falo do desejo do sujeito humano no que se refere à sua
imagem, quando falo desta relação imaginária extremamente geral que se denomina
narcisismo."(Seminário 2, pag.402/3). Para Lacan, símbolo, falta e
desejo estão entranhadamente ligados e impelem o homem a produzir sempre e cada
vez mais. As infindas máscaras das identificações imaginárias deverão ser
desveladas até que o analisando defronte-se com a falta e a aceite como parte
inevitável do viver. A falta assim desmascarada deixará de ser tamponada pelo
sintoma, e será o motor de uma produção simbólica.
Para
a corrente não-lacaniana o motor da atividade humana está em um impulso
inerente ao viver e que Winnicott chamou de criatividade potencial,
criatividade primária, verdadeiro self
e Kohut de self nuclear. Segundo
esses autores o impulso para a atividade não depende de um vazio a ser rodeado,
mas de um desdobramento do ser. Neste sentido mais primitivo não existiria um
vazio, uma falta, um hiato, mas uma potencialidade de desenvolvimento que se
faz independentemente da existência ou não de uma falta. A semente de um
vegetal pode nos servir de exemplo para esta noção; ela busca o seu
desdobramento por uma premência interna; é de sua natureza desenrolar-se em caule,
folhas e flores, assim como é do homem expandir-se em seus processos de
criação. Enquanto em processo de criação o ser humano sente-se pleno e possuído
por uma alegria oceânica. Logo, porém surge o obstáculo, a alteridade, o outro,
o diferente que oferece resistência à expansão de seu ser. Passa a ter então
uma aguda consciência de sua limitação. A plenitude cede seu lugar à
incompletude. Correlativa à falta lacaniana que remete ao código simbólico e à
totalidade paranóica, a incompletude tem seu horizonte na relação afetiva. É
nessa perspectiva que se pode viver uma solidão sem abandono. Plenitude e
incompletude fazem parte de um devir permanente que nunca se coagula em uma
única posição.
Quando,
na função auto-nomeada de porta-voz da corrente não-lacaniana falo de falta,
não me refiro nem a uma falta filosófica, nem a uma falta biológica, nem ao
sentimento de incompletude que surge no processo de separação-individuação.
Enquanto Lacan nos fala de uma falta estrutural, biológica e/ou filosófica, eu distingo
falta de incompletude, reservando a palavra falta a um pensamento/sentimento
que decorre de uma relação afetivo-empático-identificatória excessivamente
problemática com os genitores e mais especialmente com a função-mãe. Em
decorrência surgem problemas na área de identificação provocando uma vivência
de falta que nos remete a um certo conceito de falta; à idéia de conflito,
apanágio das neuroses estruturadas, acrescenta-se a idéia de falta, própria dos
borderlines.
O paciente "difícil" fala ao analista
ou diretamente ou por aproximações, de sua vivência de falta: ausência de
finalidade da vida, futilidade da
existência, desorientação, vazio, falta.
Outros se distanciam desta vivência através de uma ansiedade estilhaçadora, de
uma dispersão, falando compulsivamente, pulando de um assunto para outro,
desinteressados de uma resposta verbal do analista; a função desta fala não é
comunicar pensamentos mas sim provocar sentimentos e estabelecer modos de
relação. Aqui, a vivência de falta, eclipsada pela fragmentação ansiosa é
sentida pelo analista. Este percebe a busca de algo que lhes falta, a procura
desesperada de um ancoradouro, de um continente, de um anteparo, de uma figura
benigna a ser internalizada para acalmar receios de fragmentação, dispersão e
aniquilamento.
O
aumento do contingente de analisandos "faltosos" pode ser
compreendido dentro de um contexto histórico.
Na
modalidade disciplinar a família apresentava-se sólida, estável e com papéis
bem definidos. A mãe cuidava do lar e tinha condições de fornecer à criança uma
atenção constante e cuidadosa; o pai era a autoridade inconteste do grupo
familiar, portador das regras e leis da
cultura, respeitado, reverenciado e a
quem se devia obediência. Esta situação foi se modificando. Em nossa civilização
pós-industrial a mulher ocupa um lugar no mercado de trabalho sendo forçada a
ele retornar o mais rapidamente possível, diminuindo assim seu período de
dedicação ao filho; mesmo o seu tempo de cuidado com o bebê está permeado de
preocupações que antes eram assumidas, especialmente neste período, pelo homem.
Creches e babás entram rapidamente em cena para liberar a mãe de parte das
injunções maternas. O pai perde sua posição não somente por uma diluição do
poder pela família como também pela invasão dos poderes técnicos e da moral
maciçamente divulgada pela mídia. Questionado pela companheira e pelos filhos o
pai deixa de ser o representante da sociedade no seio da família. A atitude
reverencial em relação ao pai desaparece. Perdem-se assim sólidas e
persistentes referências identificatórias, tanto na relação com o pai quanto na
relação com a mãe, daí resultando problemas na área das identificações e da
identidade.
Estamos
numa sociedade em mudança. As identificações dispersas e diluídas são parte de
nosso cotidiano. Um contingente destas pessoas busca o terapeuta em estado de
sofrimento, de inquietude; não sabe o que fazer com a "falta". Para o
terapeuta que acredita ser o sentimento de falta uma decorrência das
experiências históricas da pessoa torna-se importante distinguir quais as
identificações em jogo: se as maternas ou as paternas. Vários autores
distinguem duas áreas funcionais do psiquismo: uma área edípica ligada à
concepção estrutural do psiquismo, às neuroses clássicas, ao modelo social
veiculado pelo superego-ideal de ego, e uma outra área que recebe diversos
nomes: Winnicott a chama de espaço transicional ou potencial, Balint de falta
básica e "primary love", Kohut de zona do self habitada pelo self e
pelos objetos- do-self, Melanie Klein fala de mecanismos de defesa primitivos
em contraposição a mecanismos de defesa maduros. Eu mesmo, em um artigo
anterior distingui dinamismos básicos referidos à função-mãe de dinamismos
secundários ligados à função-pai. Todos estes autores priorizam a função-mãe no
processo de humanização e afirmam uma insistência, uma perseverança, uma
duração funcional através de toda existência
destes padrões mentais precocemente adquiridos. No artigo de Félix
Guattari "Linguagem, consciência e sociedade" encontro o seguinte
trecho: Nessa mesma via de uma
compreensão polifônica e heterogenética da subjetividade encontraremos a
vantagem de seus aspectos etológicos e ecológicos serem levado em consideração.
Daniel Stern em "The Impersonal World of the Infant", explorou de
modo notável as formações subjetivas pré-verbais da criança....ele valoriza o
caráter de conjunto transubjetivo das experiências precoces da criança que não
dissocia o sentimento de si do sentimento do outro. É uma dialética entre os
"afetos partilháveis" e os afetos "não-partilháveis" que
estruturam dessa forma a subjetividade
emergente. Subjetividade em estado nascente que não cessaremos de
reencontrar no sonho, no delírio, na exaltação criadora, no sentimento
amoroso..."(pag.6).
Uma
conseqüência importante desta concepção que reconhece duas funções, uma
maternal e outra paternal, pode ser assim expressa: ao se desmoronarem as
identificações referidas ao modelo social, ao superego, à personificação do
pai, os padrões mentais adquiridos na relação simbiótica com a função-mãe
ganham relevo. As conseqüências das falhas vivenciais da relação mãe-infans que
poderiam passar desapercebidas caso persistissem as identificações
superegóicas, tornam-se dolorosamente visíveis quando estas se desagregam. A
função-mãe ganha uma ainda maior proeminência.
As
sociedades matricentradas da aurora da humanidade foram substituídas pelas
sociedades patriarcais. A mulher oprimida criou o movimento feminista; este,
porém, capturado pelos sistemas de poder, nada mais fez senão reforçar o modo
masculino de pensamento. O aspecto do feminino que se tornou aceito pela
sociedade masculina é o feminino sexuado, o feminino misterioso, "la femme
fatale", um feminino explicitamente assustador; porém não tão terrível
quanto o implicitamente assustador feminino maternal. Deste pouco se fala
porquanto nos remete à criança fraca, vulnerável, inerme, que nos habita e que
eternamente deseja retornar ao colo da Grande Mãe. O feminino maternal é muito
mais perigoso que o feminino sexual pois enquanto o segundo tenta devorar uma
pessoa adulta que se pode defender, o primeiro evoca o infante que não teria
meios de defesa em relação aos desejos invasores, devoradores, devastadores,
colonizadores da Mãe. Mais fácil, pois, aceitar o feminino sexual que o
feminino maternal. Tornou-se porém necessário trabalhar com instrumentos
feminino-maternos de conhecimento, relação e comunicação sob pena de não
sairmos dos impasses de nossa civilização. Um feminino a ser desenvolvido tanto
no homem quanto na mulher. Reabilitar o feminino, e mais especialmente o
feminino-maternal representa a possibilidade de darmos mais um giro na voluta
da história, afastando-nos dos perigos resultantes dos desequilíbrios
ecológicos. Isto não significa que as aquisições do pensamento masculino e o
próprio pensamento masculino devam ser abandonados. Pensamento masculino e
feminino deverão conviver harmoniosamente possuindo cada um o seu espaço, o seu
momento. Haverá ocasiões próprias para uma separação sujeito/objeto,
homem/mundo e outras em que esta dicotomia será inoportuna. O comportamento
interpretativo, a postura enigmática de intenção interpretativa, a postura
simbionte/comportamento covivencial, todas têm, neste momento da história, o
seu lugar. Possivelmente estamos descobrindo uma outra postura terapêutica onde
masculino e feminino se interpenetram. Mas isto já seria matéria para um novo
trabalho.
Nahman
Armony
[1] Artigo
publicado em “A psicanálise e seus destinos” – “II Fórum Brasileiro de
Psicanálise. Organizadores: José D.C. Albuquerque e Edson Lannes, outubro de
1991.
PAIXÃO E PRAGMATISMO
Dra.
Alicia Florrick, uma mulher casada, personagem da excelente série televisiva
“The good wife - pelo direito de recomeçar”, ao receber um convite de amor via
telefônica de um antigo flerte recentemente renovado pergunta: “e o plano?”, e
diante da perplexidade muda do interlocutor, acrescenta: “a poesia está muito
bem, mas preciso de um plano. Sou casada, amo meus dois filhos, meu marido
precisa de mim para sua campanha de eleição... onde está o plano?”
Desconcertado o pretendente desliga o telefone. Esta circunstância extrema pode
nos ajudar a abordar situações menos claras levando-nos a reflexões sobre a
paixão e seus destinos.
Uma das interpretações possíveis da
fala da protagonista é a seguinte: ela tem uma vida estruturada e o que o
pretendente oferece é inconsistente em termos de segurança embora a paixão exerça
um grande apelo pela enorme mobilização das energias psíquicas e físicas que a
felicidade de um encontro arrebatado proporciona. Na maioria das vezes --- esta
é minha experiência ---- a racionalidade pragmática não funciona e as pessoas
se atiram cegamente nos redemoinhos da paixão sem pensar nas consequências,
tamanha é sua força.
A paixão é um acontecimento súbito, comparável
ao clarão de um raio que cai sobre duas pessoas e as eletrifica, unindo-as pelo desejo, pela esperança, pelas
fantasias de intensa felicidade e completude: “ele é o meu homem (ou minha
mulher) e é com ele que eu quero misturar minha carne e minha alma, pois é a
ele que eu pertenço desde o inicio dos tempos”. Parece ser um sentimento
imotivado, pois acontece antes que haja tempo dos dois se conhecerem em seus
gostos, em seus valores, em suas susceptibilidades, em seus dinamismos
interpessoais e intersubjetivos. Poder-se-ia argumentar que a expressão do
rosto e a atitude corporal já falam de quem é a pessoa. Isto pode ser parcialmente
verdade quanto à “poesia” do encontro, uma poesia que está ligada a uma
atividade psico-cerebral primitiva que regem os encontros amorosos dos animais
da natureza e que nada dizem da personalidade social e ética do parceiro. Só
quando a paixão arrefece é que estes aspectos mais evoluídos passam a ser
importantes. E aí certamente haverá diferenças maiores ou menores que serão
elaboradas ou não pelo casal mantendo-os unidos ou provocando uma separação.
Como diz Monteiro Lobato em seu livro infantil “Reforma da natureza” através da
voz da boneca falante Emília, o mundo foi mal feito por Deus. O ideal seria que
as pessoas pudessem escolher por quem se apaixonar depois de conhecê-las em
profundidade e extensão, descartando as muito dessemelhantes como risco
excessivo e optando por aquelas com diferenças menos radicais. Mas não é assim que
o mundo funciona e temos de nos conformar com o difícil caminho da paixão por
um quase desconhecido e batalhar para superar e acolher diferenças através da
compreensão e aceitação da personalidade do outro. Só assim o arrebatamento
poderá durar sob a forma de amor apaixonado. Mas, sem dúvida isto exige grande
esforço de ambas as partes. Antes de tudo é preciso tolerância com as
diferenças. Existe uma dificuldade inata de aceitação das diferenças. Quando
somos crianças amamos o semelhante; o diferente é um inimigo mortal, pois
ameaça invadir uma personalidade ainda imatura e muito influenciável. Essa
criança precisará evoluir para uma maneira de estar no mundo em que poderá se
abrir para as novidades trazidas pelo ambiente, porém preservando o seu modo de
ser, só permitindo modificações favoráveis ao aumento de potência de sua
personalidade. Há um longo caminho a ser percorrido para se chegar a este modo
de ser; é, porém uma capacidade que só se desenvolve no embate interpessoal
e intersubjetivo. E a situação de paixão é privilegiada para a sustentação
desse processo.
Nahman Armony
Primeira publicação na revista CARAS.
DESABAFO (do livro "O Anverso e o Verso)
Martela, martelo, o prego
Num contínuo ritmar
Bate forte, duro e cego
É preciso não parar.
Martela, martelo, a tela
Desta vida a desfilar
Martelando se consegue
Ver a vida não passar.
Martela, cabeça, a prece
Enche de som este ar
Que o vazio então parece
Que se esquece de se achar.
Martela, cabeça, o mundo
Pro mundo não martelar
Na cabeça a dor é funda
Deixa a alma empedrar
Martela o Universo todo
Cabeça, mundo e luar
Pois vêm do mesmo lodo
E lá irão se juntar.
Martela, martelando
Assim se vai ficando
Sem direito de parar
Sem poder se perscrutar
Sem a fome de amar
A vida é só martelar
Martelar sem parar.
Martela, martelo, a dor
Martela, martelo, a alma
Martela, martelo, o amor
Martela, martelo, a fome
Martela, martelo, a carne
Martela, martelo, o mundo
Martela, martela, martela,
Enche de som este ar
Martela com fome e dor
Não para de martelar
Até que a unha do Homem
Penetre em carne e sangue
No centro da alma do Mundo
No torvelinho do Tudo,
Quem sabe então descansar?
Nahman Armony
Num contínuo ritmar
Bate forte, duro e cego
É preciso não parar.
Martela, martelo, a tela
Desta vida a desfilar
Martelando se consegue
Ver a vida não passar.
Martela, cabeça, a prece
Enche de som este ar
Que o vazio então parece
Que se esquece de se achar.
Martela, cabeça, o mundo
Pro mundo não martelar
Na cabeça a dor é funda
Deixa a alma empedrar
Martela o Universo todo
Cabeça, mundo e luar
Pois vêm do mesmo lodo
E lá irão se juntar.
Martela, martelando
Assim se vai ficando
Sem direito de parar
Sem poder se perscrutar
Sem a fome de amar
A vida é só martelar
Martelar sem parar.
Martela, martelo, a dor
Martela, martelo, a alma
Martela, martelo, o amor
Martela, martelo, a fome
Martela, martelo, a carne
Martela, martelo, o mundo
Martela, martela, martela,
Enche de som este ar
Martela com fome e dor
Não para de martelar
Até que a unha do Homem
Penetre em carne e sangue
No centro da alma do Mundo
No torvelinho do Tudo,
Quem sabe então descansar?
Nahman Armony
ÉTICA E SUBJETIVIDADE NOS BORDERLINES PRÓXIMOS DA NORMALIDADE
ÉTICA E SUBJETIVIDADE NOS BORDERLINES
PRÓXIMOS DA NORMALIDADE[1]
Grinker[2],
já em 1968, em sua portentosa pesquisa apresentada no livro The borderline
syndrome encontra quatro tipos de borderline: 1º – O border
psicótico; 2º – O borderline nuclear; 3º – As pessoas “como se”; 4º – O border
neurótico.
Grinker propõe uma
gradação do borderline em uma linha que vai de um extremo onde ele
coloca o psicótico a outro extremo onde o neurótico é alojado. Winnicott (1982, p.121.[3])
trará uma mudança radical a essa concepção, separando psicose e neurose em duas
linhas. Citando: “Os psicanalistas experientes concordariam em que há uma
gradação da normalidade não somente no sentido da neurose, mas também da
psicose, e que a relação íntima entre depressão e normalidade já foi
ressaltada. Pode ser verdade que há um elo mais íntimo entre normalidade e
psicose do que entre normalidade e neurose, etc”. Winnicott, portanto
admite duas linhas de normalidade: a da psicose e a da neurose. O borderline
para ele pertence à linha da psicose.
Há, pois, uma gradação
que vai da neurose mais grave à neurose próxima da normalidade e outra que vai
da psicose mais grave ao borderline próximo da normalidade. Subentendido
está que a normalidade perfeita, absoluta, é figura de ficção.
André Martins[4]
(2002, p.212) facilita nossa comunicação ao batizar estas duas linhas de
psicóide e neuróide.
O modo neuróide pertence
a uma subjetividade moderna vitoriana, onde a repressão e o recalque
predominam. O recalque tanto é estruturante do psiquismo e mantenedor de seu
equilíbrio quanto o responsável pelas dificuldades neuróticas. Citando: “A
análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a
empreender uma revisão desses antigos recalques; alguns são demolidos, ao passo
que outros são identificados, mas construídos de novo, a partir de um material
mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é bastante diferente das
anteriores; podemos confiar em que não cederão facilmente ante uma maré
ascendente da força instintual”[5] (Freud, 1969: 259-60)
Outra citação:
Não podemos negar que
também as pessoas sadias possuem, em sua vida mental, aquilo que, por si só,
possibilita a formação tanto dos sonhos como dos sintomas; e devemos concluir
que também elas efetuaram recalques......se alguém submete a um exame mais
atento sua vida desperta, descobre ......que essa vida pretensamente sadia está
marcada aqui e ali por grande número de sintomas banais e destituídos de
importância prática”[6] (Freud,
1969 p.532-3).
Freud
fala-nos também que o superego masculino, uma vez formado quando da resolução
do complexo de Édipo, dificilmente deixa-se influenciar e modificar.
Na chamada
pós-modernidade, o modo psicóide de viver ganha proeminência. Estarei daqui
para frente falando do estado borderline próximo da normalidade.
Diferentemente do neuróide, que realizou fortes identificações com as figuras
poderosas de sua infância (especialmente pai), o psicóide apresenta uma
insuficiência de identificações, resultado de uma menor dedicação maternal e de
uma maior permissividade, transigência e brandura parental. A expressão
“insuficiência de identificações” é a usada por muitos dos psicanalistas que
estudam a condição borderline. É uma expressão que tem conotações
negativas, patológicas. Prefiro substituí-la por “valências identificatórias
não saturadas”, que tanto nos remetem para o negativo quanto para o positivo
desta situação. Será negativa quando o psicóide estiver tomado pelo desespero
de saturar por inteiro e definitivamente as valências famintas de identificação
mediante relações fusionais ou simbióticas. Será positiva quando as valências
forem mantidas abertas permitindo um conhecimento/relação/comunicação contínuo
com o mundo pessoal e cultural. Aqui, torna-se indispensável um adendo: a
capacidade de identificação dual-porosa também se forma no relacionamento
suficientemente bom com uma mãe que permite a mutualidade e as identificações
cruzadas. Se a capacidade de empatia e identificação da criança não vier a
sofrer uma repressão severa como sói acontecer pela ação de algo da ordem de
uma função Pai Patriarcal Vitoriana, ela poderá espraiar-se no social em
permanente movimento de identificação dual-porosa, portanto em permanente
criatividade.
Assinalarei apenas alguns
aspectos desta subjetividade, justamente aqueles que servirão como ponte para
as considerações sobre a ética que a condição borderline introduz.
As valências
identificatórias abertas fazem com que o borderline não se cristalize em
um Eu estável, precisando a todo o momento se recriar diante das aceleradas
transformações da atualidade. Não está preso a ideologias, não tendo, portanto,
uma moral a priori. Suas escolhas éticas são tomadas no calor dos
acontecimentos, de acordo com os contextos e circunstâncias. Sua tendência à
ação imediata fala de um descontrole; o aprendizado através da ação, da
inibição e da percepção do contexto (função secundária e juízo primário)
remete-nos a um controle que não depende de ações repressoras, mantendo-se
assim a espontaneidade. Featherstone[7]
(1995, p.142), um sociólogo, chama a esta situação de “controle descontrolado das emoções”, o que pode ser lido
psicanaliticamente como espontaneidade modificada pela experiência e
conhecimento.
Como já deve ter ficado
claro, a subjetividade borderline nos remete a uma ética interpessoal,
pontual, intersubjetiva. Um longo caminho na história da ética foi percorrido
até aí. Vou resumi-lo.
Começarei com
Sócrates/Platão. Sua ética é orientada por modelos transcendentes que existem
no mundo das idéias. É a idéia abstrata que legitima a ação. Por exemplo: é a
idéia de justiça que autentica a pessoa e a ação justa. A conduta ética
consiste em ascender às idéias verdadeiras absolutas (epistêmicas) e então agir
de acordo com elas. Universalidade, transcendência e conteúdo são as
características da ética platônica. Uma ética modelar.
A transcendência da idéia platônica transforma-se, na ética kantiana,
em imanência transcendental. A Razão Universal impõe um Imperativo Categórico
que advém de um mesmo e necessário raciocínio realizado isoladamente por cada
homem do conjunto dos homens, os quais, por sua própria natureza, necessitam
ser racionais. Diz Kant[8]
(1974, p.223) : “O imperativo categórico é, portanto, só um único, que é este: age
apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei
universal”. Todos os homens racionais, se livres, pensarão desta
mesma maneira. Apesar das aparências, continuamos com uma ética universal;
esta, porém, não tem conteúdo, mas um modus faciendi, um modelo de ação
calcado na racionalidade.
As transformações da
sociedade humana exigiram a desconstrução do imperativo categórico, trazendo-o
da impessoalidade à pessoalidade, do abstrato ao concreto. A relação
interpessoal torna-se o foco de pensamento de vários autores da atualidade.
Featherstone (1995: p.74)[9] fala de “autocontrole mutuamente esperado” e
“respeito para com o outro”.
Anthony Giddens (1991:
p.123)[10]
refere-se à necessidade da realização de um trabalho para ganhar a confiança do
outro.
Gilles Lipovetsky (1994:
p.23)[11]
fala de uma “ética dialogada da responsabilidade” e de “éticas inteligentes e
aplicadas”.
Estes três pensadores
confluem para uma ética que depende de uma atividade mental, pois há um espaço
separando os corposmentes
a ser ultrapassado pelos símbolos de segunda ordem (Armony[12],
1998, p.40-41)[13]. Para
eles os corpos não estão em continuidade, mas sim em contigüidade. A primazia
não é do corpo, mas sim da mente. Em última instância é a mente quem decide o
que é mais conveniente, mais útil, mais adequado para a boa convivência entre
os seres humanos. Ou diz quais os valores inatos do humano.
Para Levinas a ética
precede a ontologia. O encontro com o outro é inaugural e anterior a qualquer
fala. Este outro é radicalmente outro, pura diferença, um rosto infinito,
incognoscível, em relação ao qual o eu tem uma responsabilidade primária,
imediata, antes de qualquer conhecimento. Meu comentário: a idéia de que o
verdadeiro encontro se dá antes da simbolização aproxima a ética de Levinas da
ética do borderline. A radicalidade do outro, porém, afasta aquilo que a
primeira idéia aproximou. A identificação dual porosa amalgama as duas
subjetividades, criando um campo comum embora preservando a singularidade da
cada um. Difícil conciliar esta idéia com a radicalidade do outro.
Martin Buber (1982)[14] é
quem mais se aproxima da ética borderline. Sua ênfase em um encontro
onde o eu está aberto “com todos os poros
de meu corpo” a toda “recepção” e “percepção” que vem do tu assemelha-se à
noção de identificação dual-porosa. As citações seguintes reforçam esta
semelhança:
Nenhum daqueles dois
precisa renunciar à sua opinião; só que fazendo eles algo de improviso e
acontecendo-lhes de improviso este algo que se chama união, eles penetram num
reino onde não é mais válida a lei da opinião [...] O encontro já se tinha dado
anteriormente quando, cada um em sua alma, voltou-se para-o-outro, de maneira
que, daqui por diante, cada um, tornando o outro presente, falava-lhe e a ele
se dirigia verdadeiramente(Buber, 1982: p. 39).
Assim sendo, mesmo que
se possa prescindir da fala, da comunicação, há contudo um elemento que parece
pertencer indissoluvelmente à constituição mínima do dialógico, de acordo com
seu próprio sentido: a reciprocidade da ação interior. Dois homens que estão
dialogicamente ligados devem estar obviamente voltados um-para-o-outro (Buber, 1982:
p. 40-1).
Apesar
das diferenças, não há dúvida de que há uma forte afinidade entre as noções de
dialógico e dual-poroso.
Finalmente falarei do borderline,
do homem da atualidade. Suas valências identificatórias abertas permitem a
inclusão do mundo humano circundante na área narcísica. O outro humano ou o
outro cultural, embora seja reconhecido como diferente faz parte do si mesmo.
Isto nos remete a uma ética não-racional, uma ética espontânea, uma ética,
diria eu pensando em Winnicott, não intelectual/mental, mas psicossomática. Eu
quereria o melhor para mim e para o outro não porque isso é necessário à boa
convivência ou porque o altruísmo, a responsabilidade, etc são valores em si a
serem preservados, mas porque, por um movimento abarcante meu, o outro faz
parte de mim e é fundamental para a minha criatividade, vida e preservação.
Dizendo de outra
maneira: o corpomente, tornando-se sensível a outros corposmentes, conhece-os,
com eles se relaciona e se comunica, não apenas através de símbolos de segundo
grau, mas através da porosidade de suas fronteiras, o que o torna contínuo com
o outro, embora ao mesmo tempo separado. O outro é parte de mim sem deixar de
ser outro. Qualquer dano ao outro é um dano a uma parte de mim. Por isto mesmo,
diante de um sofrimento necessário a ser infligido, ele o será de maneira a
causar o mínimo estrago e o mínimo sofrimento à unidade múltipla criada pela
identificação dual-porosa. Quanto mais regiões ficarem ao alcance da
identificação dual-porosa, mais amplamente poderá se exercer a sua ética. Neste
tipo de ética, o entendimento não se dá pela racionalidade intelectual nem a
ação acontece por voluntarismo. Não é nem mesmo um entendimento entre dois seres,
pois o eu não está separado do outro. É mais um processo de equilibração
ecológica que inclui preservação, realização, expansão e assimilação do
diferente; um processo de equilibração que, mais que a dialética, utiliza uma
sutil interação co-vivencial entre dois ou mais corposmentes. Não há regras a
serem seguidas, mas devires atravessados pelo desejo de preservação e
realização. Uma preservação, realização e expansão que inclui o outro justo
porque o outro é, através da identificação dual-porosa, ao mesmo tempo, um
si-mesmo.
Esta
ética possível do borderline tem uma conseqüência clínica: não se trata
de transformar psicóide em neuróide (narcísico em edípico), mas sim de manter
em mente as potencialidades de desenvolvimento positivo do modo psicóide de existência.
Assim
como o psicóide não exclui o neuróide, a ética dual-porosa não elimina a ética
racionalista da responsabilidade.
A
primeira está referida a um estado vibracional, co-vivencial, intuitivo,
simbiótico, conjuntivo; a segunda refere-se a um estado de separação, de
individualidade, de aguçamento intelectual, de minuciosidade, de disjunção.
A complexidade do humano
e dos acontecimentos pede a multiplicação dos pontos de referência éticos.
Deslizar de um ponto de referência para outro será mais adequado ao movimento
líquido das relações humanas e culturais que permanecer aderido a uma única
referência. A ética dual-porosa unívoca e a ética da
responsabilidade/solidariedade se suplementam.
Nahman Armony
[1] Artigo
publicado em Psicanálise, uma prática teorizada (tributo a Horus Vital Brazil)
(2007) Rio de Janeiro: editor José Nazar: Cia. de Freud: SPID.
[2] GRYNKER,R.R., WERBLE,B., DRYE,R.C.
(1968) – “The borderline syndrome”.Basic Books, New York, London.
[3]
WINNICOTT, D.W. (1982) – “Classificação:
existe uma contribuição psicanalítica à classificação psiquiátrica?”(1959-1964) IN “O ambiente e os processos de maturação”.
Editora Artes Médicas, Porto Alegre.
[4] MARTINS,
A. (2002) – “Pulsão de morte? Natureza e cultura na metapsicologia freudiana”.
Tese de doutorado em Psicologia Psicanalítica. UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
[5] FREUD,
S. (1937). Análise terminável e interminável. Obras completas, vol. 23.
Rio de Janeiro: Imago, 1969
[6] FREUD, S.
(1917). Conferência 28 – “Terapia analítica” das “Conferências introdutórias
sobre psicanálise”. Obras
completas, vol. 16. Rio de
Janeiro: Imago, 1969.
[7]
FEATHERSTONE, M. (1995) – “Cultura de consumo e pós-modernismo”. São Paulo:
Studio Nobel, 1995.
[8] KANT,
I. – “Fundamentação da metafísica dos
costumes”. IN: Os Pensadores, vol.
XXV. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1974.
[9]
FEATHERSTONE, M. (1995) – Ibid.
[10]
GIDDENS, A. (1991) – As conseqüências da
modernidade. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista.
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