PRINCÍPIOS e PADRÕES NA TEORIA DA INTERSUBJETIVIDADE DE STOLOROW.


A leitura da entrevista de Robert D. Stolorow (principal nome de uma nova e influente corrente psicanalítica americana, a “Escola da Intersubjetividade”) para a revista PERCURSO n.24 encontrada no Google trouxeram-me esclarecimentos que já tinham me sido adiantados pela colega Letícia Neves, mas que não me deixaram inteiramente satisfeito. Mas, sem duvida, ajudaram a ouvir as palavras de Stolorow com maior familiaridade. Meu método será o de cotejar as citações de Stolorow, comentando as contradições, ou de outro ponto de vista, os paradoxos encontrados. Ou, quem sabe, descobrir que não há paradoxo nem contradição. Citação: “a criação de padrões de transações intersubjetivas entre a criança e quem toma conta dela faz surgir princípios invariantes que organizam, inconscientemente, as experiências subsequentes da criança. [ Meu comentário: considero que os princípios invariantes são os Princípios Organizadores. Se isto está correto então os “padrões de transações intersubjetivas” antecedem ou, pelo menos, coincidem com o surgimento dos Princípios Organizadores]. Esses princípios organizadores invariantes e inconscientes são o que entendemos por estruturas psicológicas.[ As palavras ‘invariantes’ e ‘estruturas’ dão a impressão de fixidez, de uma impossibilidade de mudança.] É através desses princípios que o indivíduo se apropria de padrões invariantes de sua experiência. Refiro-me à ocorrência de temas recorrentes, padrões, imagens e assim por diante, que se repetem em situações diferentes e variáveis”. [Consegui organizar na minha mente o seguinte: uma vez estabelecidos os princípios organizadores a partir dos aspectos repetitivos dos mais primitivos padrões de relacionamento, agora são esses princípios organizadores que passam a influir na configuração dos padrões subsequentes que seriam menos rígidos que os princípios organizadores]. Logo em seguida, Stolorow, de certa maneira, flexibiliza os Princípios Organizadores:       “Apesar dessa concepção dos princípios inconscientes organizadores invariantes, rejeitamos a ideia de um domínio intrapsíquico com autonomia relativa”. Sua primeira justificativa se dá através da fidelidade à sua filosofia: a ideia de princípios organizadores invariantes está “saturada da visão cartesiana de mente”. Sua segunda justificativa é mais sofisticada e merece uma reflexão aprofundada: “...a operação dos princípios organizadores inconscientes invariantes é profundamente sensível ao contexto, e dependente do mesmo.... Para que esses princípios atuem, é preciso um contexto intersubjetivo que se preste à interpretação de acordo com eles. Sem este contexto, não haverá evidências desses princípios”.
Portanto: 1º- os princípios só se tornam evidentes em contextos intersubjetivos propícios. Caso contrário se mantêm silentes. 2º os princípios, embora invariantes, dinamizam os campos intersubjetivos singularmente. Os princípios não variam, mas os campos intersubjetivos onde se formam os padrões variam.
Para mim fica mais fácil pensar em princípios invariantes que permitem uma flexibilidade quando são chamados para a vida através dos padrões de relacionamento singulares que se formam. Vou tentar um exemplo canoro: os passarinhos têm um Princípio Organizador Invariante, a pré-concepção de fazer um ninho para sua ninhada. Esse princípio fica adormecido (dormecente) até o momento em que os ovos começam a ser depositados. Nessa ocasião o Princípio se manifesta e ele transforma-se em um pequeno arquiteto. Mas ele só poderá construir o ninho com o material que ele tem a sua disposição ou imediatamente ou a alguma distância. Isso fará com que cada ninho dependa das circunstâncias ambientais e dos acasos ocorrentes. Cada ninho, então será diferente do outro. A planta padrão do ninho será alterada nos seus detalhes de acordo com as circunstâncias, singularizando-se. Mas o Principio Organizador Invariante permanecerá e será o dinamizador-orientador mor na construção de novos ninhos.
Meu hábito cartesiano que nunca me abandonou por completo (mesmo porque frequentemente necessito dele) não me permite ficar inteiramente satisfeito com minha argumentação. Embora as nuvens mais pesadas tenham se dissipado resta una névoa através da qual tento enxergar uma Verdade que sei não existir. Entre a variância e a invariância do Principio Organizador existe uma zona sombreada através da qual falho ao tentar definir precisamente o conceito de Princípio. Não posso definir mas posso conhecer (no sentido bíblico) experimentando-o sob todas as formas. Talvez se possa dizer que, de certa maneira a alcançamos no plano verbal, quando usamos o conceito de paradoxo no lugar do conceito de contradição.  
                                                                                                        Nahman Armony
                                                                               

CONQUISTA E ABANDONO

                                                                  

    






Há um elemento nas relações amorosas que merece análise, pois pode interferir no estabelecimento de uma parceria. Refiro-me à idéia de “conquista”. Nesse caso, a aproximação amorosa teria seu desfecho quando uma das partes se revelasse tão apaixonada que nada mais poderia negar ao amado. Estaria então realizada a conquista e o desvalorizado objeto de amor, agora à mercê do vitorioso, já pode ser abandonado.
É a isso que dou o nome de “conquista”. Usando uma imagem de guerra, trata-se de “mais um avião derrubado”. Tem mais a ver com potência, com auto-afirmação e até  com vingança do que com ternura, afeto e derivados. Mas a conquista se torna impossível na ausência absoluta de afeto. Então, o que em geral mais encontramos é a mistura de desejo pelo outro com o prazer do triunfo. Como ocorre freqüentemente, um olhar penetrante na infância poderá nos guiar no nó labiríntico de sentimentos que constituem o amor.
Destaco dois aspectos polares ---  a conquista e a aproximação mútua -- de uma mistura complexa que é a atração erótica. Numa primeira etapa de vida, o amor erótico vai surgindo e se consolidando no recebimento de ternura, leite, cuidados físicos e carinho. Mais adiante, tendo já a criança adquirido uma inicial capacidade de discernimento, sente a mãe como conquistada; é uma mãe que pode ser controlada e manipulada para fornecer bens que, apesar da resistência materna, a criança deseja. Refiro-me aos objetos preciosos aos quais a criança só tem acesso pela mãe, como brinquedos, roupas, guloseimas, diversões. Ela experimenta um poder sobre a mãe ao vencer sua relutância em fornecer tais objetos. Esse é o componente de conquista do amor infantil.
A mãe que sabe exercer uma intimidade carinhosa, sabe trocar afetos e distingue necessidade de demanda –podendo criteriosamente atender às demandas materiais/afetivas próximas da necessidade --- estará preparando um ser humano capaz de lidar com os múltiplos e contraditórios sentimentos de uma relação amorosa.
Mães pouco sensíveis, que não percebem as demandas de afeto do filho, mas, por outro lado, atendem aos seus pedidos materiais, poderão criar uma conjuntura na qual a rejeição de intimidade com a conseqüente incompreensão afetiva convive com o sentimento de capacidade da criança de provocar comportamentos objetivos e obter artefatos. Para não se sentir rejeitada, a criança evita pedir afeto, concentrando-se naquilo que consegue pelo controle e manipulação da mãe: comportamentos objetivos e objetos materiais. A criança desiste da mãe afetiva. Isso, transportado para a idade adulta, resulta em conquistar e repudiar, usufruindo o parceiro por um tempo e abandonando-o antes que se concretizem os temores de se sentir incompreendido. A relação de afeto fica ofuscada pelas demandas objetivas e materiais. É próprio das demandas materiais exigir a todo momento novos objetos. E o parceiro, transformado em objeto, é trocado por outro antes que manifeste seu presumido comportamento de insensibilidade. A relação então se alicerça na dominação e não na compreensão.
As dosagens de mutualidade e conquista erótica em uma relação dependem de como experiências passadas foram elaboradas e transformadas em modos de vinculação. O aspecto conquista poderá ter menos força que o aspecto compreensão. A relação poderá então se manter por tempo suficiente para que a experiência presente corrija as distorções do passado. O reconhecimento do uso da conquista como defesa contra a frustrante sensação de falta de intimidade facilitará a preservação e o desenvolvimento da relação.

               Nahman Armony
                     
             
Primeira publicação na revista CARAS.        

          


ESTRELLAS

O estoque de estrelas cadentes-calientes
Esgotou-se
Restaram estrelas fixas
Rainhas,
Não descrevem o gracioso traço para a terra.

Contemplo as inacessíveis estrelas
Até a secura dos olhos.

                                         Nahman Armony

RECALQUE MALIGNO E RECALQUE BENIGNO EM WINNICOTT


A idéia de recalque maligno e benigno surgiu da concepção winnicottiana de “trauma benigno”. No artigo “O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família” Winnicott escreve: “Dessa maneira existe um aspecto normal do trauma. A mãe está sempre ‘traumatizando’ dentro de um arcabouço de adaptação, e, desse modo, o bebê passa da dependência absoluta para a dependência relativa”. Para mim fica evidente que Winnicott está ampliando a noção de trauma até alcançar a desilusão suficientemente boa. Este seria um trauma benigno, idéia que ele apresenta logo a seguir: “Na sessão que estou escolhendo para relatar uma coisa nova acontecera: a paciente achou que minha interpretação principal devia estar certa, e, contudo ela não havia previsto. A interpretação fora portanto ‘traumática’ no sentido de ultrapassar as defesas. Este trauma benigno refletia o novo sentimento da paciente a respeito do trauma maligno”(p.105).

Com esses dois elementos teóricos, 1- desilusão como trauma e 2- concepções de trauma benigno e maligno,  posso propor as expressões “recalque benigno” correspondente à colocação carinhosa de limites que provocam desilusão no bebê e “recalque maligno” como conseqüência de uma ação repressora violenta e insensível de uma figura tirânica. Apresso-me em dizer que as expressões “recalque maligno” e “recalque benigno” são equivalentes a “recalque excessivamente traumático” e “recalque traumático adequado”. Considero estas ideias importantes pois cada tipo de recalque pertence a uma constelação subjetiva diferente. 

                                                                    Nahman Armony

A "PRINCEZINHA" E O "REIZINHO"








Meninas criadas como seres frágeis, carentes de proteção, e meninos que crescem se achando sempre fortes compreensivos e blindados podem, ainda que não o queiram, reproduzir tais comportamentos na vida adulta, envenenando seus relacionamentos com expectativas e cobranças. O único meio de fugir dessas armadilhas do inconsciente é procurar compreender a sua dinâmica.


Existem famílias em que pai e filha são muito apegados, o mesmo ocorrendo com o filho em relação à mãe. A filha é a “princesinha” do pai e o filho, o “reizinho” da mãe. Como princesinha, ela não herdará um trono, mas será resguardada pelo pai-rei, ou marido-rei. Seu papel é ser frágil, sempre poupada e protegida, e ao mesmo tempo forte, pois tal proteção é da ordem do sagrado e, portanto, inquestionável, devendo ser defendida com unhas e dentes. Como “reizinho”, o filho, tal qual o pai, tem direito ao melhor dos melhores, à melhor poltrona, ao melhor lado da cama, à melhor posição para ver televisão, à melhor parte do frango. Em compensação, deverá compreender a mãe mesmo em suas injustiças e desvarios, sendo o protetor incondicional dela.
Eis aí uma das configurações possíveis de um patriarcalismo em mudança: o homem agora não só é forte, protetor e provedor, mas também sensível à sensível alma feminina, tendo a função de não feri-la. A filha e a esposa têm o direito de exigir dele um comportamento delicado, que respeite as suas suscetibilidades, enquanto ele – macho duro -  deverá suportar as incompreensões e os mal-entendidos. Está armado o cenário para que, na próxima geração, os encontros amorosos/sexuais apresentem dificuldades e exibam excessivos e destruidores jogos de poder e dominação.
Imaginemos o seguinte contexto: a moça, educada como peça frágil, uma preciosidade que se quebrará ao menor sopro de contrariedade, acha que o namorado frequentemente age como um desastrado Mr. Bean numa casa de vidros, tendo ela sempre suportado tal comportamento. A despeito dos discursos da contemporaneidade -- igualdade dos sexos, força da mulher, feminismo --, tal situação faz emergirem antigos padrões de comportamento, remotas convicções de direitos inerentes e divinos, afinal, ela é grácil porcelana chinesa a ser manejada com delicadeza. Se isso não ocorre, fica magoada e desgostosa, estado de espírito perigoso, que poderá vir a destruir um amor que, de outro lado, é prazeroso, alegre, livre, solto, feliz. O que fazer?
O bom senso introduziria na equação um questionamento psicoterápico que pudesse levá-los a perceber a dinâmica existente. Se tal não acontece, corremos o risco de ela se colocar na posição de cobradora, exigindo que ele seja como o pai. Evidentemente não seria uma reivindicação consciente, mas uma exigência transparente em suas atitudes, como, por exemplo, a sugestão, com a mais doce das vocalizações, de que ele deveria estar sempre atento e sensível aos seus sentimentos para não contrariá-los, pois isso poderia levar à deterioração da relação. Seria uma espécie de cobrança antecipada, criando um débito perene, impossível de ser estinguido e que colocaria o namorado-pai na eterna posição de um devedor empenhado em saldar não só as dívidas presentes, como as passadas e as futuras. É claro que ao fim de algum tempo o homem que aceitasse tal exigência se transformaria em um trapo, e como tal seria jogado fora.
Toda essa dinâmica é capaz de tirar de um casal promissor a oportunidade de alcançar uma intimidade rica e produtiva – oportunidade essa que poderia ser preservada se ambos fossem capazes de perceber a dinâmica reinante e sua origem. Mas isso só é possível, muitas vezes, por meio de um trabalho profundo de autoconhecimento que poderá advir de um processo psicoterâpico.
                 
                        Nahman Armony
Primeira publicação na revista CARAS.