NUNCA MAIS

         Quando recebo o abraço insidioso da morte
      O meu Ser desfalece
      E eu viajo na escura neblina do nunca mais

      Nunca mais é de um poema de Edgar Allan Poe
      Quem me lê sabe disso 
      Mas Poe embora imortal 
      De nada sabe.

                                              Nahman Armony 

USOS BENIGNOS E MALIGNOS DA CAPACIDADE DE EMPATIA E DE IDENTIFICAÇÃO




        O borderline brando tem a capacidade de realizar identificações dual-porosas, as quais lhe permitem penetrar na subjetividade do outro, compreendendo-o e dando oportunidade ou para ajudá-lo ou para manipulá-lo em seu próprio benefício.
        Situo a origem do modo borderline de viver na fase de transição entre a dependência absoluta e a dependência relativa, portanto na fase do aparecimento do espaço potencial e do objeto transicional, que teria sido mal vivida por ele. Há defeitos na formação e utilização do objeto transicional, aquele objeto que facilita suportar a separação mãe-filho e que permite o acesso do bebê a um mundo fora da mãe. Este ser humano que viveu imperfeitamente essa fase de transição ficará intensamente apegado a figuras humanas significativas já que não pôde criar adequadamente o objeto transicional substituto. Não é que ele não tenha chegado à fase de dependência relativa com a diferenciação eu/não-eu mas ele o fez mantendo uma necessidade de proximidade com a mãe. Ela é vista como não-eu, sim, mas, além de preencher um espaço necessário ao desenvolvimento do bebê, ocupa também o lugar onde deveria estar o objeto e espaço transicional que daria acesso ao terreno da cultura, proporcionando uma satisfação para além das relações amorosas.  
        Este bebê, tendo vivido satisfatoriamente a fase de dependência absoluta, desenvolve a capacidade de identificação dual-porosa, que mais se exacerba pela presença exagerada da mãe, mal atenuada por relações com objetos transicionais.

        Se esta mãe, agora, no período de dependência relativa é sentida como abandonante o pequeno ser humano em crescimento poderá apresentar a tendência anti-social. Temos então a seguinte situação: capacidade de empatia e identificação dual-porosa plus tendência anti-social. A capacidade de identificação dual-porosa se mantém na evolução da tendência antissocial para a delinqüência e a psicopatia. Essa construção teórica daria conta da capacidade de envolvimento da sensibilidade e percepção do psicopata que sabe como conseguir tirar proveito das pessoas, insinuando-se simpaticamente, mostrando uma compreensão da subjetividade do outro, conquistando este outro e então se aproveitando dele para seu próprio benefício. Temos aí um borderline do MAL. Outros borderlines usam sua capacidade de empatia e de identificação porosa para estabelecer relações de intimidade altamente gratificantes para os participantes. 

COMPETIR X COMPREENDER


                                              

         Este texto está mais dirigido para jovens que justo por este privilégio provisório não tiveram tempo de consolidar sua autoestima e seu sentimento de identidade adulta o que eventualmente virá a acontecer quando, no futuro, realizarem-se profissionalmente obtendo o reconhecimento de seus pares, integrarem-se na comunidade, e ganharem um sentimento de competência ao aprender a lidar prática e psicologicamente com fracassos ocasionais.
Por enquanto, encontram-se vulneráveis, precisando defender uma autoestima e identidade adulta ainda em formação. Isto complica suas relações interpessoais em geral e especialmente as amorosas. Uma simples discordância poderá ser vivida como rejeição indo além da questão objetiva e atingindo profundos sentimentos inconscientes. “Se você não concorda comigo é porque não me ama, não me valoriza, não me reconhece”, diria o inconsciente da pessoa. Sem dúvida há aí um complicador que vale a pena ser mencionado. Casais jovens têm uma tendência inconsciente a fantasiar uma relação perfeita, sem nenhuma discrepância: um parceiro-espelho que pense e sinta exatamente igual. Aqui ultrapassamos a questão da autoestima e da identidade para ingressarmos na fantasia ancestral do ser completo.
         A autoestima e o sentimento de identidade frágeis exigem defesas que aparecem nas relações amorosas como competição e luta pelo poder. A pessoa tem medo de mostrar seu desejo, sua necessidade do outro, suas carências, pois acha que isto o colocará em posição inferior e a mercê do outro, sem poder se defender quando atacado.
         Um modo de eliminar o perigo representado pelo parceiro é controlá-lo por completo, obrigando-o a agir conforme o desejado e monitorando todos seus passos. Abole-se sua autonomia e neutraliza-se sua periculosidade tornando-o um escravo obediente e solícito. A ameaça aqui não está referida apenas à autoestima e identidade. Tem a ver também com o medo de abandono. Uma pessoa controlada jamais poderá deixar a relação. A idéia é a de que ela permanece na relação não por amor, mas por um controle onipotente.
         O jovem ainda inseguro de sua identidade adulta poderá afivelar uma máscara de perfeição esperando que o escolhido para cúmplice amoroso o auxilie a mantê-la no lugar; uma observação que aponte para uma falha, um erro ou uma diferença poderá ser sentida como uma traição da função asseguradora atribuída ao parceiro.
         Estas dinâmicas formam-se nas relações primitivas com figuras significativas (pai, mãe, família, etc.) e condicionam a entrada da pessoa no mundo adulto. Alguns felizardos chegarão à maturidade fácil e rapidamente enquanto que outros, atrapalhados por seus fantasmas infantis, terão mais ou menos dificuldades em fazê-lo. A aquisição de uma identidade adulta, referida à luta por um lugar no social é mais um fator de superação dos obstáculos psíquicos que inevitavelmente adquirimos ao longo de nosso desenvolvimento.
         Quanto mais próximos estivermos da maturidade mais transformaremos a relação de competição em relação de compreensão. Quanto mais deixarmos de nos preocupar com a preservação de nossa autoestima, mais livres estaremos para perceber a subjetividade do parceiro e mais prontos estaremos para compreendê-lo.
         O caminho que vai da competição à compreensão exige um esforço psíquico que se apoiará no amor pelo consorte e na importância deste amor para a vida de cada um.
É preciso apostar no futuro, na capacidade de autorrealização que trará uma maior consistência pessoal. Entrementes será preciso sentir que o esforço em abrir mão da susceptibilidade narcísica trocando-a por uma compreensão da subjetividade do outro é, a médio ou longo prazo, recompensador. “Agüentem o tranco que vale a pena” é o que tenho a dizer para jovens de todas as idades.  
          
            
                                               Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS
        
        

          

É POSSÍVEL CONSERVAR O DESEJO SEXUAL NUMA LONGA RELAÇÃO?


                               Passado o período de paixão segue-se, na melhor das hipóteses, o amor. O desejo tende a decrescer e os encontros amorosos-sexuais a rarear. O casal sente-se frustrado, amputado de uma parte essencial de sua vida.  A repressão, a vergonha, a disputa pelo poder (quem necessita de quem) tornam difícil a reaproximação e a retomada de uma vida mais plena e saudável. Diante desse quadro, o melhor é evitar que a situação chegue a este limite. Há vários caminhos para isto. O desejo sexual inicialmente movido pela paixão pode vir a, posteriormente, ser motivado pela ternura. Uma ternura que, se no início do relacionamento é um botão incipiente, poderá crescer através de uma história de companheirismo, cuidados, cumplicidade, compreensão mútua, capacidade de perdoar e de não guardar ressentimentos. Paradoxalmente, uma ternura ao mesmo tempo dessexualizada, mas também marcada por um potencial erótico que facilmente pode se realizar. Mas esse não é o único caminho. Ou é um caminho que pode ser complementado por uma espécie de jogo de sedução. E aqui também temos uma situação paradoxal. Winnicott fala da criança que se esconde, mas quer ser encontrada. Similarmente o parceiro sexual resiste, mas quer ter a resistência vencida. A resistência apimenta a relação elevando o grau de desejo. A certeza de que em algum momento a recusa ambígua chegará ao seu término permite uma tranqüilidade para prosseguir no jogo sem uma ansiedade disruptiva. Mas, de qualquer forma, a pimenta continua agindo, pois todos nós passamos, enquanto bebês, por vivências de rejeição marcando-nos indelevelmente com uma susceptibilidade -- maior ou menor -- à rejeição.  A aproximação sexual é uma das formas de exorcizar os profundos e inconscientes sentimentos de rejeição e é em grande parte por aí que o jogo de negaça exerce sua ação picante. Outra possibilidade é a manutenção de um clima erótico no dia-a-dia. Além das manifestações de carinho dessexualizado, aceitos e validados pela mentalidade social, o casal poderá, certamente vencendo resistências ancestrais, manter a sexualidade presente através de palavras, gestos, carícias fugazes; esse comportamento ajuda a manter o desejo sexual em fogo baixo sempre pronto a se tornar fogaréu, incêndio. Também conversas francas sobre as sensibilidades erógenas do casal ajudam para uma intensa e prazerosa atividade sexual.  É também preciso levar em consideração que muitas pessoas em nossa cultura, professam um sentimento inconsciente ou consciente -- que advém da subjetividade social circulante -- de que a sexualidade é algo sujo, indigno, depravado; por isto mesmo, necessitam de entrar num estado de espírito abjeto, o que fazem através de palavras e atos tornados debochados (os atos que seriam impudicos e as palavras de baixo calão não são em si pornográficos) com o intuito de sair de um plano de pureza para um plano pecaminoso, podendo então, dissociadamente, expressar livremente a sua  sexualidade. Esta é uma situação que pode, dependendo do casal, perdurar sem criar maiores problemas para a relação. Mas, se ela se torna perturbadora será preciso fazer desaparecer esta dissociação, integrando a sexualidade à vida de tal maneira que ela possa ser sentida como imaculada, feita da mesma substância que o carinho, por exemplo. Carinho terno e carícia sexual teriam a mesma legitimidade e gozariam do mesmo status.
Essas são algumas das aproximações possíveis á questão inicialmente proposta que eu relembro, para finalizar o texto: como conservar o desejo sexual após anos de convivência.    
                                                                                                                                                      Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS.

BRIGA-SE POR BOBAGENS PARA EVITAR O RISCO DE ROMPIMENTO


         O ser humano é ambivalente, ou mesmo, plurivalente, o que significa que ele deseja e sente ao mesmo tempo vários impulsos e sentimentos muitas vezes contraditórios. É uma situação pouco confortável, pois preferimos ter a sensação de saber o que queremos para poder direcionar nossa força e determinação em uma única direção. Desejar ao mesmo tempo duas ou mais coisas que se excluem mina a segurança colocando a pessoa em estado de dúvida, de incerteza que a impede de se comportar com firmeza, tornando-a hesitante e passando uma impressão de fraqueza. Por isso os casais se empenham em discussões sobre aspectos insignificantes do dia-a-dia encarniçando-se nas suas certezas. É uma maneira de afastarem a instabilidade da dúvida tornando-as firmes e seguras em bagatelas que não merecem tamanha importância e convicção. Acontece, porém que enquanto estas insignificâncias ocuparem o primeiro plano se escamoteará a principal fonte de conflito mantendo a relação num clima de intolerância em que frequentemente o mal-estar e a raiva se fazem presentes. Mas, e aí está o truque, a relação se mantém, pois o ponto de conflito que a poderia destruir fica sepultado debaixo das trivialidades.
         Darei um exemplo: digamos que duas pessoas de nacionalidades diferentes, ao se conhecerem tenham sido fisgadas por Cupido. Falo aqui de um amor visceral à primeira vista. Digamos ainda que o modo de ser de um se afine com o do outro o que permitiria que as diferenças fossem colocadas, discutidas e conciliadas. Há aqui uma auspiciosa promessa de crescimento da relação, algo raro e precioso que deveria ser conservada a qualquer preço. Mas há uma questão fundamental: cada um dos componentes do casal não abre mão de viver em seu país o que significa tirar o outro do país de origem. Há um primeiro confronto nesta área e o casal percebe que lá existe um impasse que poderá destruir a relação. Nenhum deles deseja esse desfecho. A questão fundamental é deixada de lado e eles tentam viver o seu amor sem interferências. Acontece que o ponto capital não desapareceu. Ele apenas foi enterrado continuando, contudo a exercer seus efeitos sobre o casal. Mas o engenho dos dinamismos psicológicos humanos desvia a discussão da questão fundamental para outros aspectos da relação que não são tão vitais e que, portanto podem ser suportados. Discute-se, por exemplo, como usar o tubo de pasta de dentes como se isso fosse uma questão vital; discutem-se as virtudes e vícios do povo; a bruxa da sogra e o demônio do sogro; as oportunidades de trabalho; as questões de clima. Estas discussões têm um componente de irritação proveniente do dilema inicial incontornável. Nenhuma destas questões, porém, é excludente, definitiva. O determinante é o desejo de permanecerem junto aos amigos, parentes, à cultura, às paisagens e paragens conhecidas. As outras não ameaçam a continuidade da relação; o amor à terra natal pode levar a um rompimento.
         Posso estar dando a impressão de que as discussões substitutas não deveriam existir e que seria conveniente imediatamente abordar o ponto decisivo. Não é bem o que penso. Enquanto as discussões de menor importância acontecem, trocas afetivas e fantasmáticas (conversações inconscientes) estão em curso provocando movimentos de assimilação que os prepara para uma atitude menos drástica em relação ao problema fundamental. Não se pode saber a priori para onde esta conversa inconsciente e estes movimentos afetivos levarão. Mas finalmente o casal poderá chegar a um acordo. Ou não. Mas pelo menos eles terão o consolo de ter batalhado pela continuação da relação amorosa.  
                                                               Nahman Armony

   Primeira publicação na revista CARAS.