2- POSTURAS TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA CLÍNICA

POSTURAS TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA CLÍNICA

 

Parte 2

O comportamento interpretativo - Postura espelho

 
 
          A nomeação postura-espelho deriva-se de uma frase de Freud (1912 que se tornou famosa: "O médico deve ser opaco aos seus clientes e como um espelho não mostrar-lhes nada exceto o que lhe é mostrado"(p.157). Esta posição, olhada de certo ponto de vista, levaria o terapeuta a adotar uma atitude onipotente, negando os seus sentimentos e fantasias e tornando-o um 'devolutor de material', pouco cuidadoso, sem maior compreensão ou sutileza. Poderíamos então, talvez inspirados em Birman (1984), tomar esta frase como um eco de um período em que "...o psicanalista funcionaria como alguém inteiramente analisado, que realizou um processo analítico do qual nada restou de insólito e de não representável. O psicanalista seria, portanto, a própria imagem da razão absoluta recuperada..."(p.16). "...o terapeuta era portador de um código absoluto, dotado de uma concepção racional do processo interpretativo, que lhe caberia aplicar para o desvendamento do sentido estruturado nos sintomas. Mesmo com a descoberta da atividade fantasmática, que relativizou a teoria traumática da neurose, não se transformou imediatamente este modelo da prática psicanalítica."(p.32). Se este modelo pertence ao passado por que falar dele? Birman dá-nos a resposta: "Por mais que possam nos espantar as linhas mestras sublinhadas no esboço de sua caricatura, sem dúvida, se observarmos o nosso campo psicanalítico poderemos assinalar como este modelo não é tão estranho quanto possa parecer à primeira vista. Este modelo é muito mais presente e difundido do que possa inicialmente aparecer"(ibid, p.17). Voltemos agora à frase de Freud sobre o espelho. Uma leitura onipotente deste trecho pode ter a ver com uma certa ambiguidade de Freud. É possível com nos textos sobre técnica tenham penetrado fragmentos de uma atitude pretérita. Ou que estivesse ainda em curso um processo de transformação. Sabemos quão difícil é superar o passado. De qualquer forma, o uso inadequado, onipotente, da postura-espelho pode ser compreendido, na atualidade, primeiro, pela tendência que têm os analistas de repetir resumidamente a história da psicanálise e segundo, pela necessidade que permanece em alguns. A frase acima presta-se admiravelmente bem para a racionalização de uma atitude defensiva em que o terapeuta se coloca em uma posição onipotente-intocável. As palavras do cliente batem na superfície espelhada do analista e voltam como se fossem "boomerangs". O terapeuta não permite que elas o penetrem, não se deixa tocar em sua intimidade. A devolução tende a ser imediata. Esta atitude defensiva encontra um reforço em um outro parágrafo de Freud (1912): "Não posso aconselhar insistentemente demais os meus colegas a tomarem como modelo, durante o tratamento psicanalítico, o cirurgião, que põe de lado todos os sentimentos, até mesmo a solidariedade humana, e concentra suas forças mentais no objetivo único de realizar a operação tão competentemente quanto possível...A justificativa para exigir esta frieza emocional no analista é que ela cria condições mais vantajosas para as ambas as partes: para o médico uma proteção desejável para sua própria vida emocional, e, para o paciente, o maior auxilio que podemos hoje dar."(p. 153). Aí estão todos os ingredientes para uma mistura defensiva: pedaço de pau ou pedra de gelo raciocinante, superfície lisa, polida, brilhante e impenetrável, máscara rígida, nua, sem expressão, que nada deixa perceber de si, insensibilidade, impenetrabilidade, incógnito. Resultado: um terapeuta que se considera possuidor de um código infalível, que não empatiza nem se identifica; um terapeuta com uma atitude intelectual que se defende das perturbações nele introduzidas pelo cliente devolvendo indiscriminadamente o material apresentado; um terapeuta que interpreta em excesso, ou, reativamente, pouco ou nada fala. Em contrapartida temos um cliente afogado em suas próprias produções por não ter encontrado um escoadouro na compreensão de outro ser humano; ele então se cala, guarda para si o potencialmente dizível para não ser esmagado e fragmentado pelo inaudível. Nesta pantomima, o passo seguinte é um terapeuta desgostoso, interpretando as 'resistências' do cliente, ou não as interpretando mas delas se lamentando. Reação terapêutica negativa? Entramos em um beco sem saída, em uma armadilha produzida pelo mal-uso da postura-espelho. A saída, nós a encontramos no próprio Freud. Não só no que ele próprio escreveu e que modula a citações anteriores, como também no conhecimento de quem foi o homem Freud, trazido pelo testemunho escrito de clientes seus. Vejamos o que Freud (1912) nos diz: "...o médico deve colocar-se em posição de fazer uso de tudo o que lhe é dito para fins de interpretação e identificar o material inconsciente oculto, sem substituir sua própria censura pela seleção de que o paciente abriu mão. Para melhor formulá-lo: ele deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente... Mas se o médico quiser estar em posição de utilizar seu inconsciente desse modo, como instrumento de análise, deve ele próprio preencher determinada posição psicológica em alto grau. Ele não pode tolerar quaisquer resistências em si próprio que ocultem de sua consciência o que foi percebido pelo inconsciente"(p. 154). Ora, temos aqui um terapeuta não mais impenetrável; ao contrario, deverá estar permeável às produções do cliente até o ponto de se deixar tocar no mais íntimo de si mesmo: seu inconsciente. Ainda mais: deverá ser suficientemente sensível para transformar as obscuras sensações inconscientes em um pensamento articulado e então separar o que a ele pertence e o que é território do analisando. Atingida esta meta poderá cuidar de apenas interpretar o inconsciente do analisando, sem revelar o seu próprio. O momento da interpretação é o momento privilegiado do funcionamento em espelho.
      Para que todo esse processo ocorra precisamos de um terapeuta sensível. Como então explicar a recomendação de frieza? Esta noção deve também ser modulada: o pleno desenvolvimento das fantasias e afetos do terapeuta perturbaria de tal forma a sua serenidade que ele não poderia mais exercer uma ação terapêutica. Porém uma inibição completa de tais fantasias e afetos o impediria de compreender o que se passa com o cliente. Deve-se, pois, permitir que eles ganhem suficiente corpo para que o analista tenha notícias do que está acontecendo consigo. A sensibilidade é, portanto, necessária, mas o desenvolvimento dos afeto e fantasias decorrentes deverão se limitados a uma sinalização. Este modelo é antigo em Freud. Aparece no Projeto (1895) em referência à dor e às relações entre processo primário e secundário; na Interpretação dos Sonhos (1900) quando coloca a necessidade de inibição do desprazer para que a ideia possa ser investida. Vejamos a frase correspondente: "Por conseguinte o pensamento tem de visar a libertar-se cada vez mais da regulação exclusiva pelo princípio do desprazer e a restringir o desenvolvimento do afeto na atividade do pensamento ao mínimo exigido para agir como sinal."(p.641). Reaparece em 'Inibições, Sintomas e Ansiedade' (1926) como ansiedade-sinal evocada pelo ego diante de uma perspectiva de perigo (p.187). Também sobre o incógnito há algo a ser dito: como Lipton (1977) nos mostrou, esta recomendação refere-se exclusivamente ao momento do trabalho analítico. Fora destas ocasiões, Freud se comportava simplesmente como o homem que era. Existem alguns fatos bastante divulgados tais como: a refeição oferecida ao 'Homem dos Ratos'; a ajuda pecuniária que Freud prestou ao 'Homem dos Lobos'; a interrupção de uma sessão para brindar um insight obtido; o presente de suas obras oferecidas a um analisando, etc. Mesmo no momento da terapia Freud fazia comentários a respeito de si próprio. "Freud me contou - diz-nos o homem dos lobos - que acabava de receber a noticia que seu filho menor havia machucada uma perna enquanto esquiava, mas que felizmente a lesão era leve e não havia perigo de dano permanente. Freud continuou dizendo que de seus três filhos o menor era o mais semelhante a ele por seu caráter e temperamento. Mais adiante Freud voltou a falar de seu filho menor. Ele teria querido ser pintor, mas que depois havia abandonado a ideia para dedicar-se à arquitetura." (Gardiner, 1971, p.169). Blanton (1975) traz-nos também o seu testemunho: "Falei de dinheiro e de meus problemas financeiros, dizendo que tenho vinte mil dólares. - Quando eu tinha a sua idade não tinha tanto."(p.7).
        "Eu solicitei um dia a Freud - conta-nos Kardiner (1978) - que falasse como se via como analista. 'Estou contente que você tenha-me proposto esta questão; para falar francamente os problemas terapêuticos não mais me interessam. Eu sou atualmente uma pessoa muito impaciente. Eu sofro uma série de handicaps que me impedem de ser um grande analista. Entre outras eu sou demasiadamente um pai. Em segundo lugar ocupo-me de questões teóricas; nas ocasiões que se me apresentam para trabalhar eu trato mais de desenvolver minha teoria que de questões de terapia. Em terceiro lugar eu não tenho paciência de ficar com uma pessoa por longo tempo. Eu me canso dela e prefiro expandir minha influência'." (p. 103). O incógnito fica assim confinado ao exato instante da interpretação, quando o inconsciente do terapeuta não se deve revelar, e não mais. Finalmente, mais duas situações: "O único que posso dizer é que em minha análise com Freud eu me sentia mais na situação de colaborador que de paciente; sentia-me como um companheiro mais jovem de um explorador experimentado que embarca no estudo de um território novo e recém-descoberto."(Gardiner, 1971, p.174). "Em todos os momentos parecia estar próximo do que eu estava dizendo. Eu sentia que ele estava interessado, que estava recebendo o que eu lhe dava. Não havia esse distanciamento frio que, segundo eu imaginava, era a atitude que o analista deveria ter."(Blanton, 1975, p.3). [Trata-se da primeira sessão de Blanton com Freud].
       Depois de tudo isto visto podemos fazer um pequeno resumo da postura-espelho assinalando os seus pontos essenciais: o terapeuta permite que o seu Ic. seja alcançado pelas produções do cliente evitando colocar barreiras defensivas, mediante a adoção da "atenção flutuante". Com isso deflagram-se no terapeuta sentimentos, afetos, emoções e fantasias, os quais deverão ficar no limite de indicadores; estes serão usados para a compreensão do cliente; esta compreensão se traduzirá em uma ação terapêutica referida à vida psíquica do paciente; é apenas neste momento e com esta intenção que o terapeuta procurará ser frio e espelhante. A postura especular é aquela que, dentro do comportamento interpretativo, possibilita o menor envolvimento emocional do terapeuta. Mesmo deixando-se tocar em seu inconsciente, mesmo permitindo o afloramento de afetos e fantasias, estas situações podem ser logo resolvidas, já que o cliente neurótico não necessita vitalmente de um continente para depositar suas produções psíquicas. Fica assim o terapeuta rapidamente liberado das alterações emocionais que a relação pode provocar, pois não lhe é necessário 'carregar' consigo com mais tempo aquilo que pertence ao cliente. Esta situação só é possível diante de um ego bem constituído do neurótico, que, por isso mesmo, é capaz de realizar um spliting: observar-se a si mesmo, fazendo uma crítica racional e objetiva de suas fantasias, de seus sentimentos, bem como das ações deles resultantes. Não necessita, pois, do analista como um ego auxiliar. Pode-se assim estabelecer uma 'relação de tarefa' diferentemente do borderline e do psicótico que necessitam de uma 'relação de depositação'. A aliança terapêutica pode ser mantida mesmo nos momentos mais conturbados da relação. O cliente tem permanentemente a possibilidade de enxergar o papel simbólico-social do analista por mais intensos que sejam os seus sentimentos transferenciais. A capacidade de suportar a frustração, a solidão, a ausência e as diferenças é suficiente para que os aspectos simbióticos da relação não ganhem proeminência permanecendo na obscuridade: o neurótico não necessita de uma principalidade e permanência maior na relação de depositaçao. Por isto tudo, o terapeuta não se vê solicitado a sair da postura-espelho.
       Doolittle (1978), uma analisanda de Freud, reproduz uma fala de seu analista: "É preciso que lhe diga (você foi franca comigo e eu serei com você), eu não gosto de ser a mãe na transferência. Isto sempre me surpreende e choca um pouco." (p.65). Esta fala, articulada com aquela anterior, reportada por Kardiner, onde Freud se declara 'demasiadamente um pai', são sugestivas de um elo entre a personalidade do criador da psicanalise e a postura-espelho. Confrontado com a postura-continente, evocadora de uma função materna, a postura-espelho se nos apresenta ligada à função paterna. A postura-continente não foi desenvolvida por Freud, mas por alguns de seus discípulos que valorizaram as situações pré-edípicas, aprofundando a sua compreensão.  
 
 

        

  
      
 
 
 
                  

   



1- POSTURAS TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA CLÍNICA

Esta postagem, excerto de meu livro "Psicanálise: de interpretação à vivência compartilhada" de 1989, capítulo 3.6,  é decorrência do interesse demonstrado pelo número de visitas feitas ao meu artigo "A análise possível" recentemente blogado, pois este último, com uma diferença de 30 anos, decorre do primeiro e os dois serão melhor compreendidos se igualmente conhecidos. Espero que isso faça uma diferença.
Pretendo, se meus leitores concordarem, publicar o artigo dividindo-o em várias partes, já que é um artigo muito longo. Peço que meus leitores se manifestem a respeito.

POSTURAS TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA CLÍNICA 
 "A compreensão dos documentos de Freud
                                              está ligada à nossa própria experiência ana-
                                              lítica."   
                                                                  Samuel D. Lipton
 
                                                                                                                               

                                                    I

                                                                INTRODUÇÃO                                    

                                       Ao percorrer a história da psicanálise eu o fiz abraçado à minha experiência vital. Portanto, aquilo que estiver escrito terá a ver com situações vividas e elaboradas por mim. As lacunas e falhas resultantes deste posicionamento se compensam por uma maior densidade, incerteza, sutileza e força expressiva na apresentação das noções e das situações. Os acontecimentos vistos de dentro e sentidos no seu próprio interior revelam qualidades impossíveis de serem captadas mediante uma simples observação externa. A identificação e a empatia são formas de conhecimento que nos colocam na intimidade nuclear do objeto, diferentemente da simples percepção e do raciocínio logico que nos mantêm no seu exterior. Da mesma forma que, em biologia, a ontogenia repete resumidamente a filogenia, na minha evolução repeti o desenvolvimento da psicanálise. Estou, pois, falando concomitantemente de duas evoluções: a minha e a da psicanálise. A pessoalidade desta formulação é proposital. O conhecimento psicanalítico deve passar pela personalidade do terapeuta, o que não o impedi de ser objetivo.

          Por que e para que a expressão 'postura terapêutica'? O que pretendo abranger e significar? Não se cogita de pensar a maneira particular que cada terapeuta tem de se relacionar com seus clientes. Isso pertence à ordem do idiossincrásico e será deixado nas sombras da subjetividade. Penso, sim em posturas que emanam de desenvolvimento e elaborações técnicas e teóricas e que, portanto, apresentam uma certa generalidade. Mas, então, por que falar de postura? Será que as recomendações encontradas nos artigos sobre técnica, de Freud, já não incluem a postura terapêutica a ser adotada? Quando se prescreve neutralidade, abstinência, incognição, reserva, atenção flutuante, etc. não decorre daí uma postura? Para uma mesma técnica caberia mais de uma postura? 

          Reportemo-nos a Kanzer e Blum (1967): "A atitude (dependente) analítica com que o paciente se apresenta para o tratamento encontra uma disposição complementar na função diatrófica (Spitz, 1956), isto é, nas intenções de curar que reproduzem 'as atitudes acalentadoras que emanam da verdadeira durante o desenvolvimento primitivo da criança'."(p.164). E mais adiante: "Gitelson acredita que a função diatrófica é suficientemente inerente à técnica clássica, usada com flexibilidade, para tornar desnecessárias modificações especificas."(p.165). Segundo Gitelson, portanto, a introdução e valorização de temas pré-edípicos na teoria e técnica psicanalítica não requer nenhuma modificação explícita desta última. Porém algo se introduz e algo tem de mudar. Esta mudança se nos apresenta não como uma mudança de comportamento, mas como uma modificação ou um acréscimo nos propósitos e intenções. Modifica-se então a postura. A postura-espelho, inicialmente indistinguível da técnica psicanalítica clássica evolui para uma outra postura: a postura-continente. Tenho a impressão de ter pinçado de modo aparentemente arbitrário um momento de um continuum que vai da postura-espelho, passa pela postura-continente e segue adiante. Temos aqui evidenciada a importância da experiência própria, a qual, enquanto não validada consensualmente, permanece subjetiva. É um risco que temos de correr. O ponto 'continente' foi selecionado por atender às necessidades terapêuticas de um certo tipo de cliente: o borderline. O paciente neurótico pode ser atendido dentro dos limites da postura-espelho. Esta tem a vantagem ou desvantagem de ser a mais limpa, a mais higiênica, a mais asséptica das atitudes, aquela que menos envolve e perturba o terapeuta. Porém as situações 'borderline' exigem uma participação afetiva maior do terapeuta, uma sensibilidade aumentada para as necessidades não-verbalizadas do cliente, o que pode ser conseguido mais facilmente quando nos colocamos em uma postura-continente. Como já foi dito, tanto a postura-espelho quanto a continente estão cobertas pela técnica analítica clássica. Esta técnica tem como seu principal instrumento a intepretação. Por isto mesmo podemos denominar a conduta do terapeuta, dentro das duas posturas já assinaladas , como um comportamento interpretativo. Não há, porém, como ignorar, desde o início da psicanálise, a existência de uma outra perspectiva: a vivencial. Esta permanece grande parte do tempo em segundo plano, atrelada ao comportamento interpretativo. Aos poucos, contudo, ganha um extraordinário desenvolvimento, especialmente no trato com psicóticos, adolescentes e crianças, a ponto de, em certas situações, sobrepujar e substituir o comportamento interpretativo, constituindo-se em uma unidade de direito próprio: o comportamento co-vivencial. Veremos no decorrer deste trabalho, mais apuradamente, as suas características. Por enquanto adiantarei que o comportamento co-vivencial compartilha com o comportamento interpretativo a postura-continente e admite mais duas: a postura-simbionte e a postura-dialogal. Como veremos, a primeira é particularmente adequada para o trato com as situações psicóticas enquanto a segunda tem o seu uso preferencial nas relações terapêuticas com adolescentes.

 

                                              II

                        O COMPORTAMENTO INTERPRETATIVO

                                                            Postura continente 

                                                                                                     (continua)

                    

    

 
         
 
   

MONUMENTO À CIVILIZAÇÃO CONSUMISTA - Parte 5 -FINAL

Úlcera, tu és um monumento
Aos Deuses em movimento
De rotação.

Grande monumento
Ao desenvolvimento
À velocidade
À tecnocracia

Ansiedade
Eu te saúdo
Como o Novo Deus Moloch
Exigente
Cruel
Vital
Mola propulsora do progresso
Comedor de pessoas e afetos
De poesia e paz
Insaciável Deus Moloch
Que tudo exige
Compromissos
Educação
Sorrisos falsos
Dedicação
Esquecimento e renuncia
       às fontes mais puras do Ser
       ao bálsamo que vem muito de dentro.

Ah Deus Moloch!
Exiges que eu engula o mundo a fatias
Agressivamente
Maldosamente
Ah terrível Deus Moloch!
Não sei como te aplacar

Nenhum sacrifício feito
À tua boca faminta
Te satisfaz;
Queres cada vez mais
E mais.

Aí tens:
Homens, mulheres, afetos, esperanças...
Tudo isto é teu.
Não basta?
Toma então:
Cigarros, álcool, librium, mandrix...
Ah, não resistes?
Morres, hem?
Mas tua vingança
É fazer-nos morrer contigo.

Tua vingança
É acordar cada vez mais forte
Mais exigente.
Onde iremos chegar?
A que túmulo?
A que cidade perdida no céu?
A que inferno?
A que paraíso?

Oh nuvens!
Eu quero que vocês me envolvam
E me deem paz.
Oh montanhas de verde e suave declive!
Eu quero que vocês me acolham
No seu seio nutridor.
Oh Natureza!
Estou à sua espera
Para ser invadido
Dissolvido
Transmutado em nuvem
Em pássaro
Em som claro e silencioso.

Oh, Natureza!
São as sua lutas que desejo
Suas puras lutas
Lavadas pelo fogo
Pelo pássaro que defende seu ninho
Pela agua que penetra meus pés descalços
Pelo aroma que penetra meu nariz
Pelos sons que penetram meu ouvido
Que me invadem
E me dissolvem
E me levam a repousar
No grande regaço da Natureza
Esquecido um instante do Deus Moloch
Que porém está pronto
A espreita
Disposto a fazer valer os seus direitos
Inalienáveis.

Ah, meu pequeno Deus-Rotor
Minha firula multicolorida
Meu impensado ressentimento e culpa
De braços suaves
E hipnotizadores!
Meu pequeno engano
Minha mão quente e macia
E sábia
Muito sábia
Minha outra face do Deus-Rotor
Minha íntima conexão
Entre o dentro e o fora
Ah, meu amor não amado
Nem amante
Desejado
Pilularmente
Tu does no meu estomago
Para sempre.

                           Nahman Armony  

 

MONUMENTO À CIVILIZAÇÃO CONSUMISTA - parte 4

MONUMENTO À CIVILIZAÇAO CONSUMISTA -  (parte 4)

 
As paredes de minhas vísceras
Choram lágrimas de sangue
Pelo afeto reprimido
Pelo afeto que não posso ter.
A restauração é impossível,
Perdeu-se,
Levou-a o rio da vida
Que não mais volta
Levou-a a corrente vital
Que escavou um novo leito
Para meu caminhar.
 
Eu,
Um ser livre
Alado
Sem corrente nos pés,
 
Acordo agora de meu sonho impossível
E me vejo miseravelmente humano
Prometeu amarrado à rocha
Pagando o atrevimento
De ter querido ser livre. 
 
Os bicos cortantes
Dos edifícios
Dos compromissos
Dos meus amigos
E inimigos
Num só impulso
Atingem minhas vísceras
Biquem meus filhos, biquem
Biquem clientes, biquem,
E tu, Bicadora-Mor
Dá logo o golpe de misericórdia.
Não me fica gastando assim devagarinho
Com este prazer inocente,
Inconsciente,
De Bicadora-Mor.

Revela-te:
Veja a teu bico,
A tua bicada.
Perceba Bicadora-Mor
És fonte de tormento
De lamento
Pilar da civilização
Defensora do lar
E do instalar.

Estás instalada
Dentro de mim
Ou mais exatamente
No meu estômago.
Pequeno peixe-rotor
Delicado e cruel
Sadio e exigente.

Mas estou sendo injusto.
Como exigente?
Se apenas quer um pedaço de meu estômago
Para ficar brincando
Para se agarrar
E fazer dele sua propriedade particular.
Tudo o mais é meu;
Como posso reclamar?
Ela quer apenas
Aquele pequeno trecho para si
Para percorrê-lo à vontade
Mordê-lo
Fincar estacas
Fazer e desfazer.
Não é demais
Posso carregar este pequeno peixe-rotor
Tão pouco exigente
Até o fim de meus dias.
Sobram-me os músculos dos braços
Para dar pancadas
Não no peixe-rotor
Mas na mesa
Que é insensível
Não reclama nem sente dor.

Tenho ainda meu coração
Que pode bater à vontade.
O peixe-rotor não o conhece
Mas desconfio de suas intenções

Tenho a impressão de que olha meu coração com gula;
Ele quer atingir meu centro cardioamoroso
E lá se instalar
Com toda a sua aparelhagem
De brinquedo e tortura.

Eu não sei o que fazer.
É com pavor que examino
As suas intenções
As suas manobras
O seu avanço lento e implacável
Em direção ao meu centro.
O estômago é um pedaço de minha alma
Mas não é minha alma toda.
Que farei quando o pequenino peixe-rotor chegar lá
E lá se instalar
Com seus dentes aguçados
Com sua habilidade
       De rodar, rodar
E criar crateras
Vazios
Buracos
Por onde a vida não passa?

Meu pequenino peixe-rotor
Pedaço de minha alma
Materializada em gente
Atormentador
Rotor
Moloch
Exigente
Espicaçador

Os dentes me espicaçam
E eu levanto da cama
Ando, realizo
Luto, ataco,
Rebento paredes
Com a cabeça
Com as mãos
Com os ossos.
Estás satisfeito
Meu pequeno peixe-rotor?
Olha como o mundo tem medo de mim
Olha como eu tenho medo de ti
Que magnifica combinação
Tu me devoras
E eu abro os caminhos
Traçados pela tua fome.
                                                 (continua)



 
 
 
 


CONTINUAÇÃO - MONUMENTO À CIVILIZAÇÃO CONSUMISTA - parte 3

MONUMENTO À CIVILIZAÇÃO CONSUMISTA - parte 3


Chegou a hora de Deus Moloch dormir.
Ele já teve a sua ração de almas, de comprimidos
Desvitalizantes;
O vulcão vai parar de funcionar
A dor vai cessar
E com ela
Irá o trêmulo no olvido
Que capta o rumor mais íntimo da terra
Seus desejos mais recônditos
E sofre,
Porque seus olhos não enxergam
Nada no horizonte
Nada na imensidão marinha
Nada na planície infinita
Nada, nada, nada
Nem em telescópio
Nem em radioescuta.
 
O desejo deverá consumir-se em si mesmo
Criando buracos cada vez maiores
Nos intestinos.
 
Deus Moloch está satisfeito;
Há muito sangue ainda
E ainda muita carne
Para ele se fartar.
Eu te adoro Deus Moloch,
Tu és o meu íntimo
O meu Ser
A mola propulsora de minha vida
Preciso de ti acordado
Exigente
Pedindo rações
De pessoas
De coisas
De sonhos
Preciso muito de ti
Mesmo que me destruas.     (continua) 
 
                                   Nahman Armony                   
 
 


PSICANÁLISE - UMA ALEGORIA MUSICAL

                  Tendemos hoje a dizer que  o homem está imerso na fala. Pois bem, perdendo as pernas do passo da história, mas ganhando as asas de vôo de um pensamento que não teme a poesia, diremos que tanto  fala quanto  homem estão mergulhados em música. Música do universo, música da natureza, música da vida, música da civilização, música harmoniosa dos rios, ventos, folhas, cachoeiras, música assustadora dos vulcões, incêndios, tufões, tempestades, música rascante, ferruginosa e dissonante do tráfego, construções, consumo, competição, música eletrônica da pós-modernidade, música primeva que compomos e ouvimos junto à mãe, no nascimento do primeiro choro e nos gemidos de dor e gorjeios de felicidade que irrompem no parto.

Aqui nos encontramos com uma música muito especial; a música da voz humana em seus timbres, inflexões, delicadezas, ritmos, vigor, expressividade. A mãe que emite um oceano de sons maviosos, onde palavras são minúsculas ondulações, pequenos navios perdidos numa imensidão inefável, realiza um predestinado dueto no retorno musical de seu pequeno ser dependente. Obedecendo sua fatal vocação, a música acrescenta novas embarcações ao mar sonoro; e então este mar, este oceano, coalha-se de pequenos pontos que servem à nossa comunicação. Palavras, frases, sentenças, discursos embalados por ventos musicais, pela música das ondas, adquirem mais e mais significações, sutilizam-se impregnando-se destes ventos, embalos, ondas, movimentos, incorporando a música universal, incorporando-se à música universal.

O dueto inicial que, em fluindo, transforma-se em afinada polifonia, poderá sofrer, nas vicissitudes do desenvolvimento humano, paradas, distorções, desvios, recuos, constrições. É tarefa do psicanalista recuperar a fluência musical da vida, revolvendo, se preciso for, os acordes inaugurais da existência, o choro, a dor, o deslumbramento primevos, onde as palavras - pequenos navios - são liliputianas ondulações criadas e tragadas pelo  mar do inefável. Se preciso for, diante do borderline, há que entoar os cantos primitivos, o ritmo originário do coração e respiração, o ruído do regato e das tempestades. O analista terá como musa - aquela que o transportará para uma região atemporal de origem - a mãe que fala musicalmente com o seu bebê, esculpindo sons de inexcedível doçura, de maviosidade extraterrena, produzindo um mundo de mágico encantamento, uma ilha, um ovo cercado e penetrado por música. É lá que as coisas se passam com os borderline. Lá encontramos a dor pungente do 1o movimento da Sonata ao Luar, as expansões de amor, ternura e êxtase do Concerto para Violino e do "Romeu e Julieta" de Tchaikovsky, a explosão de alegria da Ode da 9a. sinfonia de Beethoven; lá está a máxima beatitude e o desespero supremo. Lá desencadeiam-se ternuras e ódios, tempestades e calmarias. O mar paradisíaco encrespa-se,  as ondas alteiam-se e despencam formando um côncavo, um oco faminto, devorador, capaz de engolir as embarcações e seus seres - o oceano profundo, trágico e denso, brame; a díada primeva está em face de um poderoso buraco negro, que atrai e tritura. É com estas paixões, as mais primitivas, que o analista se defronta e só a mobilização de uma sensibilidade, um desejo, uma palavra e um amor primitivos - um primitivo que remonta aos primeiros tempos de vida - poderá servir de guia para o seu proceder.

Mas, no encontro com o borderline, não só situações psicóticas se expõem ao analista. Também as neuróticas se fazem presentes. Qual a sua música?

Pensemos em Mozart, um mestre do classicismo que sublima, com suas formas perfeitas e em suas formas perfeitas, as intensidades e as pulsões, permitindo que delas se evole apenas o aroma, extrato depurado em serena beleza; o apolíneo reina ainda nos mais fortes e intensos momentos das sinfonias. Somos delicadamente impregnados pelas forças que fluem através de sua amálgama com a forma. É também brandamente que os conflitos, fantasias e emoções de nossos analisandos em estado de neurose nos afetam. As tempestades d’alma que campeiam no inconsciente, passam pelo filtro das representações e das defesas e se nos apresentam mitigadas, estruturadas, um sopro do tufão caótico original. A palavra aqui torna-se mais diferenciada, ganha contornos mais nítidos, menos imprecisos. Esta é uma região mais confortável mas prenhe de perigos; aqui exerce-se a atração da palavra dura, distanciadora, dicotomizadora, científica, precisa, rígida, à qual Pannikar20 chamou de designativa. Portanto há que tomar cuidado com o classicismo. A preocupação com a forma e com a formalização pode gerar uma dicotomia radical, onde  palavra e experiência vivida se separam, criando um vazio afetivo, uma relação problemática com a criatividade e a vida.

Tenho um disco curioso. Dois concertos de violino, um em cada face do disco. Ambos de Haydn: um do genial Joseph Haydn e outro de seu irmão Michael Haydn. Ambos tocados por Robert Gerle. Mas, que diferença! Em Joseph Haydn a forma está repleta de um sentimento volátil que, por volteios e melindres, galga escarpas, percorre aléias, descobre cantos e recantos, mansos e remansos, inventa climas, sutiliza madeiras e metais, mantendo um equilíbrio múltiplo entre  variação e  constância. Desfilam diante de nossos ouvidos jóias de ourivesaria, talhadas em infinitos detalhes, jóias a serem viradas e reviradas em todos os seus quadros e ângulos para que sua sutil beleza possa ser descoberta e redescoberta até uma saciedade impossível. Estamos diante da Palavra Real de Pannikar.[1] Outra,  a música de Michael Haydn. Ela já nasce saciada; nela tudo é previsível, convencional, uma larga estrada percorrida em linha reta com paisagens de estúdio onde mesmo acelerações e curvas não desfazem a monotonia de formas vazias, de melodias sem volutas, harmonias sem inventividade, orquestração presa à materialidade dos instrumentos musicais - palavra designativa.

Teríamos aqui duas faces da linguagem. Uma, melodia inventiva, modulante, surpreendente, sonoridade que penetra na alma, coração e mente e outra convencional, burocrática, intelectualizada, formal. Numa face, palavras possuidoras de alma sonora mobilizam, emocionam, transmutam; na outra, termos despojados de alma permanecem vagando  no limbo da racionalidade estéril. 

Mozart, clássico dos clássicos, tal como Haydn, embebe suas formas musicais perfeitas em fluidos originários. Mas mesmo Mozart, Haydn e neuróticos perfeitos são  por vezes acossados por uma emoção desbordante; o sentimento ultrapassa a própria forma e a estética apolínea hesita diante de  uma intensidade desbordante. A Sonata em Mi menor para violino e piano, Köchel 304, em dois movimentos, de Mozart, escrita após a morte de sua mãe, deixa transparecer profunda tristeza e imensa nostalgia. Nos neuróticos as representações e defesas mal conseguem vincular sentimentos profundos de desvalimento, medo, amor, ódio, provocando um desequilíbrio no tranqüilo curso da análise.

Mas estamos aqui falando de um neurótico ideal, talvez um neurótico obsessivo sem sintomatologia florida; falando mais de sintomas primários de defesa que de sintomas de conciliação, mais de uma caracterologia que de formações sintomáticas. Um neurótico ideal, cujo ego absorveria e simbolizaria toda a atividade pulsional do inconsciente. Portanto um neurótico absurdamente normal, um ser ideal a pairar acima de nosso imperfeito mundo sublunar.                                  

Mozart, mestre do classicismo, impregna suas criações irretocáveis com os rios primordiais de suas experiências mais remotas. Habitante do mundo celestial platônico, gera formas perfeitas, produzindo uma excelsa música das esferas.

Beethoven, caminhando a passos largos para a modernidade, quebra a compostura dos salões nobiliárquicos, introduzindo a inquietude, a rebeldia, o sarcasmo, abalando a tranqüila continuidade das consciências e das seqüências sinfônicas. Beethoven brinca, agride, desconcerta, violenta, desafia a forma, criando a música do homem moderno:  heróico, ruminativo, idealista, preso pela má-consciência, algemado por modelos, atormentado por um ideal-de-ego exigente e por um superego cruel e implacável. Um superego que tem de dar conta de singularidades que pressionando as estruturas rígidas formais, pessoais, sociais, realizam,constantemente, aparições  intempestivas.

Em Beethoven a constância do imprevisível; uma pausa súbita, uma querela inopinada, uma dissonância sem preparação e sem resolução, uma galhofa, um jogo bravio, afável ou brincalhão de temas confluentes, uma repentina delicadeza, um fortíssimo, contrastes extremos e o que mais se possa pensar de vivo, mutável, inesperado. A emoção ultrapassa a forma clássica criando novas formas de expressão, construções singulares de grande plasticidade, mais acordes às mutações da modernidade. O analista discute o setting, o valor da interpretação e da palavra, desmistificando o enquadramento rígido do classicismo psicanalítico, deixando emergir, aparecer, surgir formas de comunicação sutis, aceitando a identificação e a empatia que irrompem na interação com o borderline como modos válidos de comunicação, relacionamento e conhecimento, afinando-se assim com as modificações do entorno social/pessoal. A psicanálise expande-se ao infantil, ao institucional, à família, ao corpo, ao casal, ao social, superando seu próprio formalismo e construindo novas formas, mais pertinentes à contemporaneidade. Aprende-se que a elasticidade das formas é fundamental para atender à variedade e multiplicidade de uma sociedade em processo de acelerada transformação. Beethoven realiza um  percurso que, do clássico ao moderno, passa por um  romantismo modulante, desemboca no cromatismo de Wagner, evolui para o dodecafonismo e o atonalismo para finalmente, perdendo seus parâmetros, ganhar uma liberdade pós-moderna onde, em princípio, tudo está de antemão validado: do modal ao atonal, dos mais primitivos instrumentos às realizações eletroacústicas, da forma sonata às formas livres.

É neste mundo complexo e vário que - penetrados pela trepidante música da vida hodierna, entoando-a com nossa própria voz, amalgamando-a às nossas palavras - produzimos uma subjetividade com seus modos próprios de comunicação e relacionamento.
 
                                        Nahman Armony




[1] PANNIKAR, R., 1979.

AMADURECIMENTO

Este texto dirige-se aos jovens, que, devido ao privilégio provisório da juventude, não tiveram tempo de consolidar a autoestima e seu sentimento de identidade adulta. Espera-se que tais condições ocorram no futuro, quando se realizarem na profissão que escolheram, obtendo o reconhecimento dos pares, integrando-se na comunidade e sentindo competência ao aprenderem a lidar com fracassos ocasionais. Por enquanto, estão vulneráveis e precisam defender a autoestima e a identidade adulta em formação. São circunstâncias que complicam relações interpessoais, em especial as amorosas. Por exemplo, uma simples discordância poderá ser vivida como rejeição se atingir profundos sentimentos inconscientes. “Se você não concorda comigo é porque não me ama, não me valoriza, não me reconhece”, diria o inconsciente da pessoa.

Existe aí um complicador. Casais jovens tendem a fantasiar uma relação perfeita, sem discrepâncias: um parceiro-espelho que pensa e sente exatamente igual. Aqui, ultrapassamos a questão da auto-estima e da identidade para entrarmos na fantasia do ser completo.

A auto-estima e o sentimento de identidade ainda não consolidados exigem defesas que aparecem nas relações amorosas como competição e luta pelo poder. A pessoa tem medo de mostrar seus desejos e carências, sua necessidade do outro, pois acha que isso a coloca em posição inferior, à mercê do parceiro, sem poder se defender se for atacada. Um modo de eliminar o perigo é controlar o companheiro, tentando obrigá-lo a agir conforme o desejado, monitorando seus passos. Abole-se a sua autonomia e neutraliza-se a periculosidade, tornando-o escravo obediente e solícito. A ameaça, aqui, não se refere só a autoestima e identidade. Tem a ver também com o medo de abandono. Uma pessoa controlada jamais poderá deixar a relação. A idéia é a de que ela permanece na relação não por amor, mas por um controle onipotente.

A pessoa ainda insegura de sua identidade adulta poderá afivelar uma máscara de perfeição, com a expectativa de que o escolhido para cúmplice amoroso a auxilie a mantê-la: uma observação que aponte uma falha, um erro ou diferença entre ambos corre o risco de ser sentida como traição do papel assegurador que lhe foi atribuído.

Tais dinâmicas se formam nas relações primitivas com figuras significativas (pai, mãe, família) e condicionam a entrada da pessoa no mundo adulto.

Alguns felizardos chegam à maturidade fácil e rapidamente, enquanto outros, atrapalhados por seus fantasmas, terão mais ou menos dificuldades em alcançá-la. A aquisição de uma identidade adulta, ligada à luta por um lugar no social, é mais um auxiliar para a superação de obstáculos psíquicos que adquirimos ao longo de nosso desenvolvimento.

Quanto mais próximos estivermos da maturidade, mais transformaremos a relação competitiva em relação de compreensão. Se não nos preocuparmos com a preservação de nossa auto-estima, mais livres estaremos para perceber e compreender a subjetividade do parceiro. O caminho que vai da competição à compreensão exige um esforço psíquico, que se apoiará no amor pelo outro e na importância do amor para a vida de cada um.

Carece apostar no futuro, na capacidade de auto-realização que trará maior consistência pessoal. Entrementes, será vantajoso sentir que o esforço em renunciar à suscetibilidade narcísica, trocando-a por uma compreensão da subjetividade do outro é, a médio ou longo prazo, recompensador. “Agüentem o tranco que vale a pena”, é o que tenho a dizer para jovens de todas as idades — o que inclui, pois, todos os que estão em processo de consolidação da identidade adulta. Vale a pena confiar no parceiro e no poder do amor. E amadurecer.

                                                                              Nahman Armony

    Primeira publicação na revista CARAS

 

 

 

 

MONUMENTO À CIVILIZAÇÃO CONSUMISTA - Parte 2

continuação

Os compromissos assumidos
Realizados pelo meu Ser externo
Revolvem minha intimidade
Que se rebela, se contorce,
Dá nó de angústia
Serpenteia de impotência.

Rebentar esta casca
E sair livre para as ilhas
Para a música
É impossível.

Estou marcado em meu íntimo
A ferro e fogo
Estou acorrentado
Estigmatizado
Pelos dentes finos do Pássaro-Rotor.

A carne comida por dentro
Pelo movimento
Do pássaro a bailar
A codificar
A exigir afeto
Atenção
Carinho
Proteção
Aderido ao meu corpo
E à minha alma
A me devorar
A engordar de meu ser
Definhante.

Quero minha liberdade
E não a tenho
Não consigo
Ou não quero.

Talvez eu queira ser prisioneiro,
Talvez seja minha maneira de ter
A vida
O impulso
E, incoerência,
A paz.

Uma paz feita de gritos
Gemidos
Sangue.
Uma paz feita de luta
Primeiro contra mim
Depois contra o mundo
Uma paz feita de falta
De sofrimento
Um sofrimento que dá
Dignidade
Altura
Dimensão
Para encarar de frente as feras.

Eu também tenho uma fera
Escondida em minhas vísceras;
Com ela me aprumo
Recolho seus dentes
E os transfiguro em dardos
Funcionais.                                           (continua na próxima edição do Blog)

                                         Nahman Armony