FRASE

Talvez a maior vantagem secundária em ser 'falso self' é tornar a morte uma 'morte de mentirinha'. Não sou eu quem morre mas sim o fetiche de mim mesmo.
A LÓGICA DA SEPARAÇÃO
Não é incomum encontrar pessoas que declaram imenso amor ao parceiro, mas que, ao perdê-lo, desejam sua máxima infelicidade. Outras vão além, almejando-lhe a morte. Tudo isso em meio a declarações de amor eterno. Ora, seria de esperar que ao amado se desejasse a maior felicidade, qualquer que fosse a situação: próximo ou afastado, vinculado, ou desvinculado. Como explicar um amor que não faz votos pelo maior bem a quem se ama? De que forma entender tal anseio de infelicidade e morte?
O impulso pode ser compreendido sob dois aspectos: 1- estratégia de reconquista; 2- castigo e vingança. No primeiro caso, funciona a fantasia de que a infelicidade do ser amado o trará de volta. Ele se convenceria de que a única felicidade possível é ao lado da pessoa que o ama. Nessa modalidade de amor cruel, observa-se um egoísmo sem limites em relação ao parceiro perdido. O fundamental é ter a posse do amado, não sua felicidade. Melhor serem infelizes juntos do que felizes separados. O amor aqui só consegue exercer-se num contexto de exclusividade, de limitação do horizonte do outro. Surgem a vigilância e o ciúme excessivos e o desejo de infelicidade do parceiro.
Quanto ao segundo contexto, de vingança e castigo, a vontade de que o ex se dê mal nos remete a uma época na qual o bebê sente ser dono da mãe e teme perdê-la ou perder a exclusividade de seu amor. O bebê necessita de uma relação de exclusividade. Se não houver um desenvolvimento elaborativo dessa necessidade, ela pode ressurgir tão crua e cruel no adulto quanto o era na infância. O anseio de exclusividade impõe-se como absoluto. O parceiro não pode sequer desviar os olhos, pois, se assim o fizer, o ciumento se sentirá negligenciado e abandonado — como se fosse um bebê. A atenção ao outro é sentida como um ataque a sua autoestima — o amor exclusivo de uma mãe idealizada torna a criança uma criatura especial neste mundo, valorizando-a e tornando-a única entre todos.
Certamente os leitores perceberam uma certa confusão entre mulher, mãe, criança, adulto. É uma confusão inevitável na medida em que o funcionamento do inconsciente é semelhante em todas as idades. É preciso aceitar esta confusão, limitando a lógica cartesiana em favor de uma lógica da complexidade.
                               Nahman Armony
       Primeira publicação na revista CARAS.

  

O SER HUMANO NO FINAL DO SÉCULO XX
UM PANORAMA GERAL

                        do livro “Borderline: uma outra normalidade”

   Século XX. Período de transição. Crise. Poluição, violência, impiedade. A humanidade colhida na armadilha do desenvolvimentismo, da onipotência, do sucesso, da eficiência, vive na atualidade mais uma de suas encruzilhadas. Às certezas do classicismo e às utopias e mitos da modernidade sucederam-se a dispersão e perplexidades do pós-modernismo. O mundo vibrante,  luminoso, pleno de esperanças, transformou-se em lugar movediço, pantanoso, difícil, sombrio; a outra face do espelho de límpido e imaculado cristal expandiu-se tornando aparente a destruição, sofrimento e infelicidade, sombras companheiras de uma subjetividade iluminista. O homem perde suas raízes, encontra-se só, diluído em um sistema de objetos, buscando referências para si mesmo, acossado por múltiplos parâmetros, desconjuntado, indeciso, inseguro. As relações humanas são perturbadas por uma excessiva competitividade, impiedade, implacabilidade, crueldade, indiferença. Acossado pelas máquinas e pelos acontecimentos socioeconômicos em frenesi crescente de velocidade e transformação, o homem acelera seu  ritmo vital,  forçando seu corpo/mente para além de seus limites. Em contrapartida multiplicam-se os cuidados com o corpo e com a mente obedecendo a uma lógica dos investimentos narcísicos e de capital: combate ao stress, controle da pressão arterial, check-ups periódicos, tratamentos ortomoleculares, ginástica, exercícios os mais diversos, tai-chi-chuan, massagem, meditação, terapias corporais, psicanálise. Busca-se o relaxamento, reduz-se o formalismo, transgridem-se as regras, desconsidera-se e se debocha da hierarquia, diminuem-se as exigências de conformidade a um modelo orientador. A  diversidade e enfraquecimento dos parâmetros permite uma maior liberdade na escolha de caminhos de vida;  O isolamento afetivo e a dessacralização desmoralização da autoridade e das ideologias provocam uma sensação de vazio e futilidade. O homem busca a religião e se congrega em pequenos grupos para escapar à solidão e ao vazio.
   Este quadro que estou traçando é certamente tendencioso; tenho a consciência de estar selecionando aspectos da modernidade e pós-modernidade em função de um discurso previamente direcionado. As características da modernidade e da pós podem ser olhados de um prisma positivo: maior liberdade de escolha, redução do formalismo e diminuição das exigências de correspondência a um modelo orientador. Sua liberdade, porém, recai em um vazio existencial, em uma falta de fé e de objetivos, em um sentimento de futilidade da vida. Expulso de suas certezas vê-se afetado em seu cotidiano nas várias frentes em que transita: vida profissional, social, familiar, amorosa. Ao mesmo tempo livra-se da camisa de força do formalismo.  Estas questões psicológicas são concomitantes a questões ambientais e sociais: poluição, violência, impiedade. No limite pensamos na sobrevivência do planeta e tememos pelo destino individual. O que acontecerá com a terra? O que acontecerá conosco e com nossos filhos? Como viver em meio à violência, à insegurança,  à impiedade,  à competição selvagem à fome, à miséria, acossados pelo medo? Sobreviver, viver, dever, gozar, viver na multiplicidade, viver na unidade, dispersar-se, recompor-se, desumanizar-se, congregar-se, separar-se, obter sucesso, desenvolver potencialidades. O que fazer com os ideais da modernidade que se esvaíram na concentração de bens, a disparidade riqueza/pobreza, a fome, a violência, a impessoalidade, a competitividade, a crueldade, a guerra, com relações humanas tensas, excessiva autoexigência, drogas,  autoindulgência, stress, perda de referências éticas, confusão, dúvidas, insegurança, multiplicidade de parâmetros? Potência, onipotência ou impotência? No ar do tempo ouvem-se gritos e gargalhadas, choros e ranger de dentes, agitações e misticismos, buscas desesperadas e apatias. O homem expulso de suas certezas e acossado pela perplexidade vê-se afetado em sua vida diária nas várias frentes em que transita: vida profissional, social, familiar, amorosa.

                                            Nahman Armony





      

PENSAMENTO 4

Não nascemos nem para o prazer nem para a dor. Nascemos para viver.

A DIFÍCIL INTIMIDADE


Ansiamos por reviver uma vivência ancestral, indelével: a profunda ligação do bebê com a sua mãe. Queremos amar, pertencer, confiar, compartilhar; sermos verdadeiros e nos entregar, de corpo e alma à pessoa amada. Mas em algum momento temos receio de perder a autonomia, a identidade e, com frequência, nos ressentimos das diferenças existentes entre os dois seres.
Para entender melhor os sentimentos humanos relativos à experiência de intimidade do casal adulto, vou me reportar aos primeiros tempos de vida. A mãe é nosso primeiro grande amor. Ela é tudo para o neném: doadora de vida, leite, carinho, sensações corporais, afeto e o que mais possamos imaginar. Entre a mãe e o bebê se estabelece uma intimidade de corpo e alma. Corpo e alma se olham, se tocam, se abraçam, se interpenetram. Essa união é fonte de prazer e felicidade. Uma experiência que permanece marcada no corpo e na alma e que tentamos reviver durante a vida. A confiança do bebê na mãe é infinita. Ele se encontra aberto aos sentimentos maternos e sua fé na mãe doadora irá, por um tempo, se tornar absoluta. Mesmo quando a mãe, por força das contingências da vida e do crescimento, desapontar o bebê, ele dará um jeito de preservar o sentimento de plenitude atribuindo os desapontamentos a outra entidade — digamos, a um duplo da mãe, uma gêmea frustradora. Haverá, contudo, um momento no desenvolvimento em que não mais será possível manter tal divisão. Mãe gratificante e mãe defraudadora serão uma só pessoa. O paraíso desaparece, então, da vida do ser humano; porém não se desvanece no horizonte. Um horizonte que os mais privilegiados poderão alcançar periodicamente e por períodos limitados de tempo. A vida ficará pontilhada de momentos de sublimes encontros. Mas para isto será necessário enfrentar obstáculos: alguns inerentes ao ser humano, outros eventuais. O bebê poderá deparar-se com uma mãe que, assaltada por preocupações, ou deprimida, ou ansiosa, ou rancorosa, não terá condições de abrir seus poros, seus olhos, sua sensibilidade para realizar trocas afetivas,  eróticas, e mentais com o bebê. Mas a criança sabe se defender. Assim como a mãe aprende a lidar com as idiossincrasias do filho, o mesmo acontece no sentido contrário. O bebê aprende a lidar com a personalidade, o temperamento e o caráter da mãe. Desenvolve-se um dinamismo que tende a um quase equilíbrio confortador, mesmo nas situações intersubjetivas mais exasperadas e ameaçadoras. O importante é manter o sentimento de que em hipótese alguma haverá abandono. Há um aprendizado mútuo em que as sensibilidades são percebidas e movidas de modo a manter o encantamento.
Em algum momento o filho olhará para um mundo além da genitora. Será um momento de choque. Mas a curiosidade, o desejo de expansão, o espírito de aventura empurram o bebê e a criança para fora do ovo diádico ainda que persistam o desejo de segurança, do colo quentinho, confortador e protetor. Se a sensibilidade da mãe não alcança a ambivalência destes dois impulsos, se ela não percebe estas duas direções conflitantes, não poderá transmitir ao filho a plena aceitação do paradoxo, o que lhe permitiria aguardar o (des)encontro com a objetividade e externalidade, em um estado de desequilíbrio equilibrante menos instável. 
 A relação amorosa adulta conserva elementos do amor infantil. Um ato sexual íntimo é aquele em que os corpos estão abertos um para o outro. Tal abertura implica confiança, desejo de receber o outro e seus líquidos dentro de si, pele galvanizada e porosa, pronta para a troca de energias e afetos mutuamente estimulantes, realizada em uma sequencia minitemporal de eventos que passam de um corpo ao outro, de uma sensibilidade à outra. A atração sexual, que na sua máxima expressão é desejo de fusão, torna contínuos e comunicativos os corpos amantes, numa comunicação incessante e sutil. Essa experiência de intimidade tende a continuar na vida exterior à da cama. Mas há diversos obstáculos: o medo de se perder no outro, de perder a autonomia, a identidade, o poder. Também as diferenças de personalidade, de comportamento, rotina ou ideologia, quando não toleradas, tornam-se pedrículas de ressentimento que dificultarão a intimidade. É fundamental, portanto, ter consciência dos obstáculos e, principalmente, desejar ultrapassá-los. Assim se nutre o desenvolvimento da intimidade adulta.

                                               Nahman Armony 

BORDERLINE MIX SINGULARIDADE EPISTEMOLÓGICA - INTRODUÇÃO

UMA INTRODUÇÃO EPISTEMOLÓGICA AO MEU LIVRO
“BORDERLINE: UMA OUTRA NORMALIDADE”
1ª edição – 1998
2ª edição – 2010
EDITORA REVINTER

“De familiares e conhecidos, se tornam estranhos e desconhecidos o caminho, o caminhar, os próprios caminhantes. Na caminhada do questionamento, vai surgindo a cada passo o caminho essencial. E, ao surgir, vai-nos revelando que, nas caminhadas diárias pelos atalhos, nenhum de nós havia realmente caminhado. Todos tínhamos ficado presos às malhas de um esquema pré-estabelecido”.[1]


        Este livro surgiu do entrelaçamento de dois cuidados, duas preocupações, duas aflições: um referido à minha profissão de psicanalista e outro ao meu ser enquanto inserido em uma cultura, em uma sociedade e em um meio ambiente.
        Esta é uma formulação narcisista mas que acredito pertinente. Por isto mesmo gostaria de apresentá-la, não como idiossincrásica, mas como fundo originário das produções do pensamento. Em palavras simples: pensa-se, constroem-se teorias, luta-se denodadamente por alguma coisa que está além da pessoa, mas que expressa, representa os anseios, temores, desejos mais recônditos de cada um.
        Gostaria mesmo de dar um nome a este modo de encarar as produções culturais. Seria um modo “presente-referente”. Algo muito fundamental, e que tem a ver com minha vida presente, me inquieta, me atormenta, me preocupa, me provoca cuidados levando-me a uma pesquisa e produção que aparentemente nada tem a ver comigo mas que, na verdade, tenta lidar com a inquietude pessoal. Inquietude pessoal que é também inquietude social, pois cada sujeito está atravessado pela subjetividade de sua época. Aquilo que se chama de subjetividade individual nada mais é que uma condensação pessoal de uma subjetividade que circula pelo social.
        Poderei portanto fazer história, filosofia, psicanálise, apelar para as várias disciplinas, poderei parecer inteiramente objetivo, voltado para fora, para o mundo, poderei parecer altruísta, preocupado com os outros, poderei ter ideais nobres. Tudo provém de uma fonte interna de inquietude e preocupação. São formas de lidar com os problemas, as perplexidades, as angústias de um sujeito pára-raios de seu entorno. Reconheço, pois, que minhas concepções são presente-referentes por mais altruístas que pareçam, por mais que falem do externo, e por mais bem elaboradas, coerentes e objetivas que possam ser. Mesmo que eu fale do passado ou do futuro, ainda assim será um passado e futuro referido ao agora, e se estou deles falando é porque eles se rebatem sobre o presente que está sendo vivido. Estou sempre tentando compreender e lidar com o aqui e agora e uso de todos os recursos para isso, inclusive o de negar o aqui e agora quando seu potencial ansiante ameaça desorganizar o pensamento. 
        Fui analisado dentro de uma técnica clássica, o que produziu seus efeitos mas deixou um fundo de insatisfação. Pude assim melhor compreender os pacientes borderline que se ressentiam da técnica clássica.
        Neste ponto começava minha saga. Ao me entregar à relação com o borderline, aceitando e deixando que se desenvolvessem novas formas de relação, comunicação e conhecimento, eu desafiava a comunidade psicanalítica que me rodeava e, o que era mais problemático, o fundamento sujeito/verdade que vigorava em minha subjetividade.
        Por algum tempo esta diferença entre pensamento/ação e fundamentos provocou em mim culpa e ansiedade. A este mal-estar agregavam-se as críticas e desconfianças de meus pares diante de minhas idéias e de minha atuação clínica.
        A existência de outros psicanalistas, especialmente estrangeiros, que se dirigiam aos analisandos de uma forma similar à minha, serviam-me de lenitivo mas não desfaziam o mal-estar de que eu me via possuído ao transgredir aquilo que era considerado pelo superego oficial psicanalítico local como o verdadeiro procedimento psicanalítico. Não só porque eles não estavam presentes para dar suporte quando dos ataques de meus pares, mas principalmente por  não se tratar apenas de uma questão de apoio, cumplicidade e identificação. O maior problema estava na relação entre aquilo que eram meus fundamentos inconscientes e minha ação e pensamento.
        Foi neste ponto que senti necessidade de um conhecimento extra-psicanalítico e me enfronhei no estudo da filosofia, da epistemologia, da sociologia, buscando alcançar o motor produtor de meu mal-estar na confluência e entrecruzamento destas disciplinas. Foi assim que acabei atracando na ECO, lugar da transdisciplinaridade, lugar onde o fundamento sujeito/verdade é sistematicamente questionado produzindo brechas para a penetração do devir no pensamento.
        O fundamento sujeito/verdade que era um de meus marcos orientadores, produzindo conflito, culpa e mal-estar sempre que era contrariado, pôde vir à tona, passando a ocupar um outro lugar na minha dinâmica psíquica. Acompanhando o processo de neutralização deste parâmetro, a culpa foi-se diluindo. Surgiu em seu lugar uma inquietude decorrente do vácuo deixado pela desmobilização do fundamento sujeito/verdade, uma inquietude que desconfiava de modelos e de fundamentos em geral. Mas, como viver sem fundamentos? O que colocar em seu lugar? No capítulo assumidamente poético desta tese, o capítulo 2, em seu item três, tento lidar com esta questão. E, posso dizer que o pensar/viver a inquietude a reduz de sombra indesejada para companheira estimulante e amena.
        Passei a entender meu comportamento terapêutico por paradigmas outros que não o secular fundamento sujeito/verdade. 
        Esta mudança de paradigma influiu e continua influindo em todas as áreas de minha atividade e também, como não poderia deixar de ser, no modo pelo qual estou conduzindo a feitura da tese.
        Alguns autores ajudam-me a me situar diante de meu trabalho clínico e de minha maneira de realizar a tese.
        A lebre do fundamento sujeito/verdade foi levantada por Márcio Távares d’Amaral em um de seus cursos. Mas a transformação paradigmática já vinha se operando e continuou a se operar. A maneira dos professores abordarem a realidade - trazendo o devir para a Academia -, o clima de abertura e multiplicidade da ECO propiciava, facilitava, robustecia esta transformação. As leituras também contribuíam para me deixar mais familiarizado, mais à vontade com este novo paradigma,  fazendo dele, cada vez mais, um ambiente em liquefação no qual eu passava a me mover com crescente desenvoltura.
        Emmanuel Carneiro Leão nos mostra como a divisão sujeito/objeto, a serviço de uma funcionalidade, de um objetivo que, em última análise, é a manutenção do status quo social, impede uma visão originária da realidade, fazendo com que o homem opere repetições estéreis. Diz ele:

“A funcionalidade da correlação sujeito-objeto se impõe, então, como o objetivo de todas as funções de crer, saber, fazer e sentir, vigentes no mundo moderno. Constitui mesmo o maior escolho na caminhada do pensamento para pensar radicalmente uma realidade”.[2]  

        É preciso, pois, pensar fora da dicotomia sujeito/objeto, e pensar radicalmente, para realizar transformações. A arte é uma das formas de ultrapassagem desta dicotomia:

“Já nem se sente provocação alguma para pensar nas frases de Nietzsche: ‘a arte tem mais valor de essência do que a verdade’; nós temos a arte para não vir a soçobrar na verdade’! E não sentimos a provocação destas frases porque obsecados pela funcionalidade de tudo e de todos, só temos olhos para o espaço físico-geométrico de sujeito e objeto. Pois este, podemos medi-lo com uma escala exatamente definida. Podemos operá-lo com resultados precisos. Mas, com uma arte, que não está nem dentro nem fora, ou, o que dá no mesmo, que está tão dentro quão fora da obra de arte e do artista, não podemos empreender nada”.[3]

A poesia será o meio que usarei para introduzir as questões pertinentes à tese. Penso que a poesia, com sua força de penetração, tem o poder de ultrapassar as defesas caracterológicas, produzindo um conhecimento não representacional, um conhecimento co-mocional, afetivo. Isto não significa que não usarei recursos da ordem da representação. Eu os usarei sim, não só por ser a forma socialmente mais difundida e mais aceita de comunicação, mas também como um recurso para, por acumulação, fazer surgir no espírito do outro a mesma intuição vivida por mim.
        Para Bergson[4] as idéias progridem por uma série de intuições fundamentais totalizadoras que exigem um esforço semântico e teórico para serem transmitidas. Mas, as idéias não são construídas racionalmente. Anteriores a qualquer raciocínio, são intuídas. Não se trata porém de uma intuição ingênua, um milagre caído do céu; ela exige um tempo de concentração, um tempo de pensamento, um tempo de contemplação, um tempo de recolhimento, um tempo de elaboração inconsciente. Aí sim, ela dará os seus sinais, pedindo para ser trazida à luz do dia, finalmente revelando-se ao próprio pensador e à sociedade que o rodeia.
        Acredito que uma intuição se forma pela apreensão de indícios vagos, mínimos, da coisa a ser intuída. Esta apreensão se passa a nível de sensorialidade, de cinestesia, de cenestesia, passando ao largo do crivo do pensamento racional/abstrato e chegando em estado puro à mente inconsciente. De lá, após um tempo de maturação propiciador de uma reunião globalizadora,  a intuição forçará - já como unidade - sua passagem ao mundo. Poderá receber então várias vestimentas: imagens, metáforas, alegorias, religião, história, ciência, antropologia, poesia, psicanálise, etc. O objetivo (ideal) destas vestes é proporcionar ao interlocutor o máximo de condições, o máximo de clima, o máximo de associações para que a intuição possa aparecer; é cercar e atravessar a intuição de tantas maneiras - criando um sem-número de conexões - que ela por fim venha a surgir, num repente, da mente do interlocutor.
        A intuição, ao surgir da/na mente do pensador, é apenas um pequeno glóbulo enroscado em si mesmo como uma flor em botão. Ela deverá florescer em imagens, teorias, proposições conceitos, noções, metáforas, para adquirir a plenitude de seu vigor. Seu florescimento será sempre uma promessa e uma surpresa. Embora saibamos que lá está uma flor, pouco sabemos das formas que adquirirá no decorrer de sua vida. Uma melhor metáfora para a intuição é a música. O compositor consegue um tema musical. Seu desenvolvimento é porém um mistério só revelado no correr da composição. Aí então saberemos algo da substância da música, mas será sempre uma substância a nos enviar ao mistério dos sons.
        A intuição está além da dicotomia sujeito/objeto, já que ela opera pelo processo de identificação. Ela escapa da funcionalidade e da objetividade. Ela se aproxima do olhar trans-lúcido de que fala Carneiro Leão, um olhar “tão livre, que, mesmo através da correlação de sujeito e objeto, veja sempre no real uma espetáculo de originalidade”.[5] A primordialidade da intuição advém de suas fontes: proto-sensações, cinestesias, sinestesias, cenestesias. São categorias pré-representacionais, pré-dicotomia sujeito-objeto. Só na seqüência de seu alumbramento é que poder-se-á falar de correlação sujeito-objeto. É no ponto de natividade que encontramos a maior translucidez do olhar apontando para a origem e originalidade das coisas. Diz Carneiro Leão:

“Ora, o dizer de um discurso se nutre de um contato pré-discursivo com uma verdade que, frente à reflexão temática, é tão originário que se torna uma fonte de inteligibilidade e compreensão”.[6]


        A intuição não está desligada de seu tempo. Pelo contrário, na medida em que ela habita um ser temporal, um ser atingido pelas questões, angústias, dificuldades, problemas de seu momento de vida, um ser que participa da subjetividade de sua época, ela, a intuição, porta, em sua inteireza, em sua unidade de apresentação, o conjunto de questões que atingem o ser humano. A compreensão e o apontamento de rumos encontram-se assim contextualizados. A remissão à origem, o perene renascer, filia-se à capacidade que tem a intuição de rearrumar os elementos existentes desde sempre em um novo arranjo que inclui novos elementos em surgimento.
        Para que o espírito possa se livrar das cadeias do já estabelecido, é preciso que ele esteja atento às suas intuições, que as respeite, que lhes dê crédito, que nelas busque uma fonte de conhecimento, pois a intuição é um modo de conhecimento em escape do representacional, do convencional, do instituído como saber.
        A escritura de uma tese exige uma pletora de leituras. Como evitar que as palavras acabem provocando uma doença congestiva? como ir para além das palavras do texto? como partilhar da intuição do autor? como transformar a teoria em experiência viva?
        Carneiro Leão fala-nos de um retraimento da linguagem que, ao se encontrar, no seu limite, com o silêncio, possibilita o surgimento da verdade do ser no tempo:


“É que a compreensão só se instala no instante em que começa a brilhar em nós o que o texto não diz, mas quer dizer em tudo quanto diz. Pois o problema central do sistema nos remete a uma experiência de retraimento que, de há muito, nos vinha atraindo em todos os empenhos de perguntar e desempenhos de responder. A partir daí tudo se transforma. Já não temos de carregar o peso de um sistema de signos e funções. Na gravidade do pensamento sentimos nosso próprio peso. Provocados a pensar por um pensamento, que também é nosso, que tem algo a dizer de nós mesmos, somos enviados à viagem de retraimento de um limite, que, longe de nos repelir, nos atrai e arrasta. De texto de uma língua, o pensamento se faz viagem da Linguagem de ser e não ser no tempo”.[7]  

        Ir para além da teoria procurando a experiência que a produziu, despir a intuição do autor de suas vestes vocabulares para dela poder compartilhar, obter discriminações finas através do confronto de práticas e teorias, conseguir estímulos para novas especulações, buscar os entrecruzamentos que se estabelecem a partir de diferentes ângulos de mirada, misturar mesmo os vários pontos de vista para deixar decantar uma resultante, tais são algumas das formas pelas quais digeri os textos lidos.
         Winnicott é um autor com o qual também me identifico. Ele escreve:

“Não começarei por fazer um levantamento histórico e por mostrar o desenvolvimento de minhas idéias a partir de teorias de outras pessoas porque minha mente não trabalha deste modo. O que faço é juntar isto e aquilo, aqui e acolá, concentrando-me na experiência clínica, formando minhas próprias teorias e, então, depois de tudo, me interesso em descobrir de onde roubei o quê. Talvez este seja um método tão bom quanto qualquer outro”.[8]

Este juntar isto e aquilo, aqui e acolá, significa que Winnicott não adota uma única teoria como modelo. Os variados eventos clínicos, nos quais ele se concentra, remetem-no a vários fragmentos teóricos. Ele não parte de uma teoria que, passando pela clínica, leva-o à modificação desta teoria ou à formação de outra. A clínica é seu ponto de partida e sua referência mais importante. O paciente está ali diante dele, e é a dinâmica que se estabelece entre ambos que evoca algum fragmento de teoria. A teoria fala diretamente dos eventos. O fragmento teórico amalgamado ao evento clínico é uma quase-experiência. A teoria tirada de sua morada celestial e trazida para a terra deixa de ser um pinóquio de pau para adquirir carne, artérias, sangue, sensibilidade.   
        Em qualquer momento de nossa vida corpomental possuímos um patrimônio experiencial e uma reserva de conhecimentos  através dos quais podemos olhar para o mundo ou diretamente ou passando pelo filtro das teorias que o representam. Na melhor das hipóteses olharemos o mundo sem sua terceirização pela teoria.
        Munidos de nosso acervo de experiência, conhecimento e teorias, mastigados e digeridos, olhamos para  os eventos e procuramos entendê-los, organizá-los, administrá-los. Parte de nossa experiência é expressa em linguagem, uma linguagem que já traz em suas palavras e sentenças um modo de aproximação ao mundo. Na medida em que usamos termos para falar e pensar a experiência, e estes termos já foram falados, escritos, significados, podemos dizer que o intertexto fará parte do conhecimento do mundo. Este intertexto sofrerá uma atenuação desde que, a cada vez, remetamos as palavras diretamente à experiência.
        Podemos assim manter a distinção entre olhar o mundo diretamente, ingenuamente, com o cabedal de conhecimentos-experiências que já temos, ou através de conceitos que deverão enquadrar o mundo para que ele possa ser conhecido. No primeiro caso estaremos mais livres para sermos atingidos pelo novo e mais livres para aceitá-lo, enquanto que no segundo nossa mente selecionará os aspectos da realidade que combinem com os conceitos prévios ou distorcerá aspectos da realidade para que possam caber na teoria.
        Voltando à relação linguagem/experiência. Foi dito acima que apreendemos o mundo através de um conhecimento prévio acumulado ontogeneticamente (e filogeneticamente?), conhecimento que inclui a linguagem recebida dos antecessores. Podemos pôr em questão esta relação linguagem/experiência que nos é dada para encontrar uma outra relação linguagem/experiência que exprima melhor e mais produtivamente o vigente. Mas esta relação linguagem/experiência só será colocada em questão, e ela o será inevitavelmente, se nos dirigirmos à vida de uma forma direta. Quando nos dirigimos à vida, dirigimo-nos ao fluido, ao mutável, e para acompanhar a vida em movimento é preciso fazer as palavras se movimentarem no seu mesmo compasso.[9]
        Também Edgar Morin faz parte daqueles autores sobre os quais repousa meu pensamento. Ele fala de um paradigma da simplificação, formulado por Descartes, que opera por disjunções, da qual a mais básica é a disjunção sujeito pensante-coisa extensa. Diz ele:

“Vivemos sob o império dos princípios de disjunção, de redução e de abstração, cujo conjunto constitui o que eu chamo o ‘paradigma da simplificação’. Descartes formulou este paradigma mestre do Ocidente, ao separar o sujeito pensante (ego cogitans) e a coisa extensa(res extensa), quer dizer, filosofia e ciência, e ao colocar como princípio de verdade as idéias ‘claras e distintas’, ou seja o próprio pensamento disjuntivo. Este paradigma, que controla a aventura do pensamento ocidental desde o século XVII, permitiu sem dúvida os grandes progressos do conhecimento científico e da reflexão filosófica; as suas conseqüências nocivas últimas só começam a revelar-se no séc.XX”.[10]

        Morin propõe um novo paradigma: o da complexidade. Nela o número de variáveis é inapreensível o que introduz um fator de indeterminação, de incerteza, de acaso. Mas trata-se de uma incerteza

no seio de sistemas ricamente organizados. Ela [a complexidade] relaciona sistemas semialeatórios cuja ordem é inseparável dos acasos que lhes dizem respeito. A complexidade está portanto ligada a uma mistura de ordem e de desordem, mistura íntima...”.[11]

Para pensar a complexidade é preciso substituir a operação de disjunção/redução/unidimensionalização por um procedimento que comporte a distinção e a conjunção (distinção/conjunção/conjunção) e que “permita distinguir sem separar, associar sem identificar ou reduzir”.[12] É preciso “também aceitar uma certa imprecisão e uma imprecisão certa, não apenas nos fenômenos, mas também nos conceitos...”.[13] Esta formulação é revolucionária em relação ao paradigma da simplicidade, que exige do universo uma ordem consubstanciada na unidade dos princípios e das leis, não admitindo nem a multiplicidade, nem a desordem, nem a contradição.[14] Aquilo que é contradição no paradigma da simplicidade transforma-se em paradoxo na ordem da complexidade. Os elementos que logicamente se excluem (na referência à lógica clássica) não remetem ao erro, e portanto não exigem ser corrigidos, mas aproximam-nos “de uma camada mais profunda da realidade que, justamente porque é profunda, não pode ser traduzida para a nossa lógica”.[15]
        André Green advoga a existência e o uso de uma outra lógica que não a clássica:

“O processo primário, mesmo em seus aspectos aparentemente mais primitivos, permanece governado pela lógica, não, naturalmente, a lógica do processo secundário ou da razão, mas, não obstante, uma forma de lógica simbólica. De fato, um analista não raciocina quando interpreta, as melhores interpretações são aquelas que aparecem espontaneamente. Porém isso apenas significa que um trabalho raciocinado e lógico (primariamente lógico) se realizou fora do campo da lógica secundária da razão. É notável, a este respeito, que - enquanto a lógica secundária se utiliza de processos de linguagem (apresentações de palavras na teoria freudiana) somente - a lógica primária emprega outros meios: primeiro apresentação de coisa e também afetos, sem mencionar os atos e estados corporais. A teoria freudiana do pensamento é conseqüentemente mais rica e mais abrangente do que as teorias não-freudianas, uma vez que nos oferece diversos tipos de pensamento que são conflitantes mas ocasionalmente auxiliares. Sugere-se que o fenômeno da associação entre processos primários e secundários seja chamado processo terciário”.[16]


        Minha escrita usa amplamente o paradoxo, assim como usa uma mistura de ordem e desordem. Na medida em que minhas intuições, trazidas à luz do dia, foram tomando forma, produziram um desenho que, visto a posteriori, apresentava características arborescentes e rizomáticas.[17] A seqüência ordenada, arborescente de um tema era muitas vezes interrompida por um curto-circuito que me levava a uma outra área de eventos, a uma outra região de pensamento, a um outro domínio de idéias; a ocorrência desta dinâmica associativa rizomática quase impositiva dava vida, iluminava experiências e relações mais ou menos distantes do tema tratado, promovendo insólitas e esclarecedoras aproximações.
        Dentro do processo disjunção/conjunção/distinção permito-me realizar várias combinações, ora dissolvendo unidades complexas em unidades mais simples, ora o contrário. Poderei, por exemplo, trabalhar com a unidade múltipla mãe-filho, ou com a unidade múltipla pai-mãe-filho. Se trabalho com a unidade mãe/filho, a disjunção/distinção ficará referida ao aspecto pai da totalidade perceptível. A escolha da extensão da unidade múltipla é estratégica; depende daquilo que estou querendo comunicar no momento.
        Uso de todos os recursos possíveis - história, antropologia, psicanálise, filosofia, etc. - para transmitir aquilo que é minha experiência e meu pensamento. Uso também os mais variados recursos estilísticos com a mesma finalidade. Meu escopo não é estabelecer alicerces indestrutíveis, nem justificar o que penso, mas sim, multiplicar os pontos de referência para facilitar o partilhamento das intuições e para enraizar meu pensamento na cultura à qual pertenço, tornando minhas idéias e experiências, o mais possível, acessíveis, aceitáveis e convincentes, sem lhes apor um caráter impositivo e dogmático que uma escrita tipo árvore-raíz poderia lhe emprestar.
        Outras referências ao método aparecem no decurso da texto, aproveitando o momento mesmo em que ela se vê perturbada por questões metodológicas que se impõem na medida em que o discurso se defronta com problemas não alcançados pela lógica habitual. Trata-se de um recurso metodológico que se apoia na valorização do devir e do tempo da oportunidade como poderosamente comunicativos.
        Espero ter conseguido transmitir o espírito do texto, o que não é coisa fácil.
       

                                       Nahman Armony



[1]CARNEIRO LEÃO, E., 1991, p. 184.
[2]Ibidem p. 169.
[3]Ibidem, p. 172.
[4] Cf. BERGSON, Henri, 1974a e 1974b.
[5] CARNEIRO LEÃO, E., 1991, p. 172.
[6]Ibidem, p. 189.
[7]Ibidem, p. 191.
[8]WINNICOTT, D.W.  1982,  p. 269.
[9]Cf. ARMONY, N. - “Psicanálise: Teoria ou Mito? Metáfora ou conceito?” 1989.
[10]MORIN, E. 1991, p. 15.
[11]Ibidem, p.43.
[12]Ibidem, p.19.
[13]Ibidem, p.44.
[14]Ibidem, p.71
[15]Ibidem, p.82.
[16]GREEN, André  1988, p.306/7.
[17]Cf. DELEUZE, G. E GUATTARI, F., 1995, capítulo 1 “Introdução: Rizoma” de Mil Platôs vol. 1. Seguindo as recomendações e ações do mestre Deleuze, violento sua concepção de rizoma, adequando-a ao meu pensamento. Assim o faço por considerar sua metáfora esclarecedora e por achar que a  curra conceitual  é amplamente compensada pela possibilidade de melhor exprimir meu pensamento.

POETANDO.


A música limitada pelos doze sons da escala cromática provoca emoções ilimitadas. A liberdade torna-se bela e infinita quando limitada pelo amor. O limite proporcionado pelos braços amorosos da mãe permite o exercício da liberdade criativa.
                 Nahman
                                   

FRASEADO 1

Quanto mais velho fico mais gambiarras uso para me manter criativo.

PAIXÃO CEGA E PAIXÃO LÚCIDA


A paixão é um sentimento avassalador: arrebata, revigora. Dois caminhos levam a ela: ou a pessoa se apaixona de pronto, possuída pelo desejo de logo se encontrar em um estado de eufórica união com a criatura perfeita e adorada, ou se forma gradativamente, até chegar ao ponto de ebulição. Duas vias: uma cega e outra lúcida com os mesmos resultados: sentimentos de plenitude, felicidade, enlevo, potência, onipotência. Pela via da paixão instantânea o apaixonado, de início, nada sabe da pessoa que é objeto de deslumbramento. Particularidades sutis propiciam a projeção do que já existia na imaginação do apaixonado: um ser perfeito, uma miragem que preenche todos os requisitos almejados para aquele (ou aquela) destinado a ser o amor de sua vida. O ser amado é tecido pela fantasia de quem ama. A verdade, porém, aos poucos se impõe, desfazendo a ilusão da perfeita concordância entre fantasia e realidade. Esse é um momento crucial para a relação. Ou as características não desejadas são aceitas e a paixão se torna relação amorosa, ou são repelidas, desfazendo-se o relacionamento e surgindo um rancor provocado pelo desencanto em relação ao objeto amado que não corresponde à fantasia acalentada.

Falemos agora da segunda via. Se tudo corre bem ela pode ser denominada, em sua trajetória ascendente, de enamoramento. A paixão cresce na sequencia de encontros e no dia-a-dia da relação, quando tanto os atributos desejados como os indesejados se revelam. Certas características provocam tal encantamento que conscientemente se ignora o indesejado, deixando-o na sombra. É a paixão lúcida. A paixão constituída por esse caminho tem mais chance de perdurar. Mas, passado o entusiasmo lúcido, o que era indesejado e estava em segundo plano pode vir ao proscênio e emaranhar-se negativamente com a fantasia, tornando a relação amorosa inaceitável. Coloca-se o mesmo dilema da paixão cega: ou se elaboram as dificuldades e as diferenças, conseguindo-se um emaranhamento positivo, ou se rompe a relação.

O estado de paixão, pela sua intensidade e capacidade de produzir bem-estar e potência, é desejado pela maioria de nós. Não podemos, porém, esquecer que é um bem-estar da ordem da exaltação, da sobreexcitação que põe acima de tudo o encontro apaixonado. É, pois, um estado que não pode ser contínuo sob pena de esgotamento psicofísico e prejuízo social, profissional e familiar. Poderíamos, abusivamente, fazer analogia com o cio animal, que também é um estado de sobreexcitação, mas com um período limitado de vigência. A paixão nos renova, nos potencializa, mas em vários sentidos pode nos esgotar. Uma maneira de lidar com o apaixonamento absoluto sem nos prejudicar, é ter períodos de amor mais tranquilo, invadidos por ciclos finitos de paixão. Ao esgotamento da paixão segue-se um amor mais tranqüilo. Às vezes, porém, para os que viveram a paixão, o amor não é suficiente. Querem sentir de novo e sempre a potência máxima da vida. E, em geral, sem deixar de amar o objeto da primeira paixão, partem em busca de nova união apaixonada. Tudo se repete, causando sofrimento para as pessoas envolvidas e suas famílias.

Se admitirmos que a paixão pode ser uma necessidade e que uma sucessão de paixões com pessoas diferentes traz problemas, poderíamos nos perguntar: por que não voltamos a nos apaixonar pelo primeiro objeto de amor? Teríamos a tranquilidade de um amor constante, pontuado por fases de paixão, sem maiores confusões. Pergunta-se, porém, se isso seria possível, ou se uma nova paixão só ocorre com uma nova pessoa. Em outras palavras: a questão é saber se podemos viver ao mesmo tempo fantasia e realidade em um emaranhado positivo. O assunto é complexo. Porém acho possível justapor a fantasia que acompanha a paixão à realidade que se apresenta com a convivência. Como mencionei antes, trata-se de aceitar as características não desejadas, algo que se torna possível quando os outros aspectos da pessoa as compensam. É uma paixão lúcida. Assim, o que une pesa mais do que os fatores que desunem. E a relação amorosa pode persistir, pontilhada por varreduras de paixão.

 

                                       Nahman Armony

IDENTIFICAÇÃO DUAL-POROSA


 

SEU BOM E MAU USO

         

        Tentarei colocar em circulação no campo das ideias e da subjetividade a noção de identificação dual-porosa.

        Tal identificação representa o extremo mais fluido das identificações em cuja outra ponta se encontram as identificações estáveis.

        A identificação dual-porosa passa-se entre dois seres que se relacionam de modo dual, isto é, sem interferência de um terceiro. Esses dois seres apresentam uma porosidade que deixa passar fantasias e afetos, possibilitando trocas subjetivas. Portanto a identificação dual porosa é um devir e como tal embarca nas ondulações da realidade, emaranhando-se nelas.

        Nesses tempos de rápidas transformações, a identificação dual-porosa pretende-se como o modo mais pertinente de relação/conhecimento/comunicação.

        O portador privilegiado da identificação dual-porosa é o borderline.

        O borderline, uma categoria clínica, é alçada ao status de modo de existência. Distingue-se o borderline ecológico do não-ecológico. O primeiro usa a sua capacidade de identificação dual-porosa a fim de encontrar o melhor equilíbrio para as unidades que constituem o todo. O segundo usa a sua capacidade de identificação dual-porosa em um sentido individualista, sem considerar o equilíbrio da totalidade.

        Falamos aqui, pois, do ser humano emergente do final do século XX. Trata-se de uma concepção de pessoa que difere daquela do século XIX e da primeira metade do século XX. O ideal de ser/fazer passou do homem “certinho” para o sujeito criativo. O homem certinho, separado de si mesmo, dos outros homens e da natureza por um terceiro termo, cujo melhor representante é a palavra intelectualizada, está cedendo lugar para um sujeito que se comunica diretamente consigo mesmo, com os outros e com a natureza, através de um processo de identificação contínua que permite que ele embarque nas incessantes ondulações transformatórias do mundo. Este sujeito poderá usar seu talento a serviço de si próprio, quando então sua sensibilidade será usada em seu exclusivo proveito, prejudicando os outros homens e a natureza; ou usará sua capacidade de identificação para incluir os outros homens, o mundo e a natureza no âmbito do seu eu, adquirindo uma consciência ecológica, deixando que surja uma esperança na evolução da humanidade.

 

                                               Nahman Armony

 

 

A LUTA DO ADOLESCENTE


INFLUÊNCIAS IDEOLÓGICAS NA VIDA AFETIVA DO ADOLESCENTE

 

Puberdade e adolescência são períodos de transição, quando a criança se desprende dos pais em favor de grupos de sua faixa etária. A opinião do grupo se torna cada vez mais significativa, empurrando para a periferia a importância da aprovação dos pais, embora estes, no inconsciente do adolescente, continuem a ser um esteio de segurança. Mas a ideologia do grupo exerce poderosa pressão sobre o jovem. Vou-me valer de um aspecto de ideologia jovem atualmente já não tão badalada mas que servirá para tentar entender a espécie de conflito que acomete os adolescentes e jovens adultos. Refiro-me ao “ficar”, que significa encontros sem compromisso e encontros fortuitos. O “ficar” é um valor positivo nos grupos adolescentes. Como ninguém quer estar out, este valor é exercido pelos jovens. Mas há os que não se sentem bem com tal prática. São vários os fatores que levam os jovens a gostar ou não do “ficar”. Darwinianamente falando, como as mulheres produzem relativamente poucos óvulos na vida fértil, têm de escolher o parceiro sexual mais perfeito possível. Então fazem uma seleção cuidadosa, não se deixando fecundar por qualquer um. Já o homem, cujos órgãos sexuais produzem milhares de espermatozóides, busca garantir a transmissão e a sobrevivência de seus genes fecundando o maior número de fêmeas possível. Nós, humanos, estamos longe desse nível biológico; mas, quando se faz um levantamento mais global, é mais um fator a levar em conta. O psicanalista húngaro Michael Balint diz que cedo se desenvolvem no ser humano tendências para o apego (mundo ocnofílico)  ou desapego (mundo filobático) ao objeto de amor. Poderíamos dizer que no “ficar” predomina o desapego e no namorar predomina o apego. Teríamos, portanto, dois tipos de pessoas: um com medo de intimidade, precisando passar de parceiro para parceiro, e outro com medo da novidade, da aventura, precisando se fixar em algo conhecido. Essas duas tendências existem conjuntamente em proporções diferentes nas pessoas. Mas em algumas a predominância de uma é tão poderosa que a outra renuncia à sua expressão. Outro fator é a ideologia dos pais. Embora, como disse, em certo período da vida o jovem a abandone para adotar a ideologia do grupo, o abandono total é uma impossibilidade, pois a influência dos pais penetra na psique dos filhos. Ela pode diluir-se quando outros fatores entram em jogo, mas sempre estará presente. Assim, se a mentalidade da família for conservadora, o jovem ou terá mais dificuldade com comportamentos libertários ou os realizará de forma exagerada, como reação à poderosa proibição interna que carrega. Faz parte também do equipamento pessoal a curiosidade pelo novo, pelo perigo e o gosto pela segurança, pelo conhecido. Portanto, muitos são os fatores envolvidos e sua resultante dependerá do jogo de forças entre eles. Poderá ocorrer de o jovem se ver impulsionado a adotar comportamento diferente do dos amigos, o que o fará sentir-se excluído, inferiorizado, incapaz de acompanhar seu grupo. Então os pais, valendo-se da vinculação paterno-filial, podem se apresentar para auxiliá-los. Mas deverão ser discretos, pois os filhos, mesmo precisando de validação e apoio dos pais para o seu comportamento, mantêm o desejo de serem independentes dos genitores. O apoio e a aceitação deverão ser oferecidos com cuidado para que o jovem não sinta que estão querendo lhe retirar a independência.      

                               Nahman Armony

                        Primeira publicação na revista CARAS

                                      

 

 

PULSÃO  DE  MORTE

       

Fico imaginando que o que vou dizer aqui será estranho para a maioria dos ouvintes, já que falarei de uma teoria que não se utiliza da pulsão de morte para a clínica, e mais, falarei daquilo que eu próprio penso da pulsão de morte, que, neste momento, não sei exatamente o que é, embora tenha uma intuição, uma pré-percepção do que seja. Acho, neste momento da vida do CEPCOP, a minha contribuição importante, não por ser minha, mas por introduzir um corpus alienum que não deveria ser eliminado por ser um corpo estranho, mas, pelo contrário, deveria  preferencialmente, utopicamente, vir a fazer parte do acervo de experiências do CEPCOP.

        Freud ao criar o conceito de pulsão de morte o fez de um modo aparentemente titubeante, deixando aos seguidores e a si mesmo a opção de fortalecer o conceito ou deixá-lo sem uso. Nos artigos seguintes Freud, cada vez mais, fez uso do conceito, incorporando-o à teoria psicanalítica. Porém, nem todos os teóricos da psicanálise usam o conceito de pulsão de morte. Alguns preferem trabalhar a agressividade, a destrutividade, a morte, o suicídio, a auto-agressão por outras vias. Dentre estes teóricos, talvez o mais conhecido na atualidade seja Winnicott.

        Devo logo dar aqui minha concepção de teoria na área das disciplinas humanas. A teoria não expressa uma verdade. A teoria é a expressão de uma intuição, de uma filosofia de vida, de uma atitude diante da existência, mas também fruto de acontecimentos. A teoria é também um acaso/necessidade. Nós, seres humanos deste fim de século, precisamos de justificativas/organizações para aquilo que é despertado/modelado em nós pela vida e estas organizações/justificativas são as nossas teorias. Por outro lado, a teoria poderá  ser usada como leito de Procusto, uma repetição não criativa. Na minha opinião é a concepção de fenômenos transicionais, de área intermediária e conceitos afins que dão maior chance de se obter uma teorização criativa em devir na psicanálise.

        Antes de falar de Winnicott apresentarei algumas interpretações e conseqüências do conceito de pulsão de morte.

1.Pulsão de morte como o inverso da vontade de potência de Nietzsche, como desejo de retorno ao inanimado, à indiferenciação. Aqui é preciso distinguir a volta ao inanimado - definitiva e sem retorno à individualidade - do nirvana, onde há possibilidade dessa volta.

2.A pulsão de morte é uma força que perpassa o homem mas que está além do humano. É uma força cósmica que leva à dissipação, uniformização. Segundo princípio da termodinânica. No homem, ela se manifesta por um desejo de paz, de nirvana, de imobilidade e de morte.

1- O conceito acima é freudiano e está em “Além do princípio do prazer”. Em “O princípio econômico do masoquismo”, quando Freud separa prazer de nirvana, ele nos abre um caminho que permite separar o nirvana do inanimado, o nirvana da morte. Assim, dentro de minha concepção, o nirvana, a paz absoluta, a fusão com o universo ou com o outro poderiam ser vistos em seus aspectos renovadores, o que aliás não está distante da concepção de Freud. Por isto é importante distinguir o irremediável da volta ao inanimado - da morte -, do nirvana que mantém latente a individualidade, permitindo uma volta a ela. Freud também nos falou de um masoquismo primário ligado à pulsão de morte, uma vertente auto-destrutiva que só não se realiza por ser direcionada para fora sob a forma de agressividade ou por realizar uma fusão com a pulsão de vida.

2-Neste ponto, para mim, é útil o conceito de pulsão de morte. Direi como: existem pacientes deprimidos que podem ser pensados como portadores de uma pulsão de morte pura ou quase pura, pacientes que precisam da pulsão de vida para neutralizar a pulsão de morte. Pode-se pensar no analista como aquele que, pela diferença, vai introduzir na relação com o analisando a pulsão de vida. Ele poderá em um primeiro movimento se identificar com o analisando e sua depressão, para em um segundo momento sair de tal identificação, trazendo para a relação a diferença mobilizadora da pulsão de vida.

3-A pulsão de morte tem sido pensada como aquela entidade que destrói, que desfaz, para reconstruir. Neste caso a pulsão de morte seria o prelúdio da construção, da complexificação, da pulsão de vida. É preciso desconstruir para re-construir.

 

        Vejamos agora Winnicott. Ele não usa o conceito de pulsão de morte. Por quê? Creio que a teoria e a nomenclatura usadas tenham a ver com intuições, atitudes, finalidades, posicionamentos. O posicionamento de Winnicott é positivo e esperançoso. Ele acredita no homem e no porvir da humanidade. Ele é um otimista. Ele não acha que a vida e o homem possam querer destruir a vida e o homem. Usar uma teoria da pulsão de morte seria admitir um pecado original, uma maldade primordial do homem, um desejo primordial de destruição no âmago da matéria, da natureza, do psiquismo, do ser humano. Isto está em desacordo com aquilo que Winnicott é como psicanalista e como pessoa. Para ele a desesperança não é originária, mas conseqüência de uma perda de esperança.

        Mas como, em termos winnicottianos, pensar a agressividade e a destrutividade do ser humano que já se encontram no bebê?

        Winnicott fala-nos de agressividade de várias maneiras:

1- Como movimento muscular, como um “ir de encontro a”. Assim o mamar é um ato agressivo, um ato muscular, um ato violento de retirar leite de um peito.

2- Conceito de implacabilidade. O bebê quer atingir os seus objetivos e para isto será implacável. Não importa o que aconteça com o outro, mesmo porque o outro ainda não tem uma existência clara para ele. O seio, por exemplo, não é parte de uma mãe completa, mas, inicialmente, existe em si mesmo, como criação sua que ele pode, onipotentemente, destruir e construir. Nesta implacabilidade agressiva o bebê não teme destruir, não tem uma consciência ética em relação ao que seja destruição. Mais tarde ele temerá destruir  a mãe-ambiente com o seu impulso instintivo.

3- O amor porta consigo um aspecto destrutivo, de devoramento.

4- Existe uma agressividade que é conseqüência de frustração.

5- Existe uma destrutividade que é conseqüência de uma deprivação que provoca uma interrupção na continuidade de ser, e cuja finalidade é recuperar tal continuidade. A criança mente, rouba, queima para, em testando os limites, voltar a tê-los, pois voltar a ter limites é voltar a ter os braços acolhedores da mãe, da sociedade e da lei, é voltar a ter uma continuidade de ser.

 

        O ser humano em geral tem impulsos agressivos e impulsos destrutivos. Freud explica estes impulsos pela pulsão de morte. Como? Existem duas forças metabiológicas, forças que pertencem à substância. Uma delas tende à diferenciação e à construção organizada de unidades maiores, à complexificação, e outra tende à indiferenciação à desconstrução do organizado. No ser humano estas forças aparecem como pulsões: duas pulsões. Pulsão de vida e pulsão de morte. A pulsão de morte conduz o ser humano para o inanimado, para a morte. O homem luta contra a morte defletindo a pulsão de vida para fora e também associando-a à pulsão de vida (o nirvana, a paz, seria uma associação da pulsão de morte com a pulsão de vida). A deflexão da pulsão de morte é agressividade e destrutividade. Então Freud explica a agressividade e destrutividade pela pulsão de morte.

 

        De que maneira Winnicott explica a agressividade e destrutividade do ser humano e mais especialmente do bebê?

        1- Como reação à frustração. Raiva. Destruição mágica do outro que, no entanto, se mantém vivo.

        2- Fonte de energia de um indivíduo. Movimento é agressividade. Movimentos bruscos das pernas do bebê. Prazer muscular no movimento e no dar de encontro com alguma coisa. Continuidade entre este tipo de ação e a ação que exprime o ódio e o controle do ódio. Motilidade como raiz da agressividade. Parte da motilidade está associada ao amor primitivo. O restante da motilidade para ser gasto, precisa de uma oposição. Algo contra o qual fazer força “caso contrário permanecerá não experimentado, constituindo-se em uma ameaça ao bem-estar” (p.366). A pessoa busca esta oposição. O princípio da realidade está na esfera deste tipo de oposição. Poderá acontecer que esta motilidade seja gasta como oposição à invasão e não como uma oposição que se buscou. O sadismo é visto como uma erotização dos elementos agressivo-reativos o que é diferente da normalidade onde a agressão já está fundida ao amor e a agressividade manifesta-se numa agressão a uma oposição buscada. É possível concluir que se - ao tentarmos adicionar a agressividade/motilidade que ultrapassa a ligada ao amor, aquela ligada à oposição buscada, mais àquela ligada à frustração - não conseguirmos cobrir todo o quantum de agressividade, isso significa que parte da agressividade permanecerá não-usada, podendo transformar-se em sofrimento propiciador de uma posição masoquista.

        3- A agressão como componente do impulso amoroso. Devorar o seio, Comer o parceiro. Morder o corpo materno. Alimento como símbolo do corpo materno. “A agressão faz parte da expressão primitiva do amor”.

        Importância da agressão

1- Distinção entre o eu e o não-eu.        

2- Diante da destruição mágica a agressão concreta é uma realização positiva, o ódio converte-se em um sinal de civilização.

3- A destruição como necessária para a criação de um objeto percebido objetivamente, portanto fora da área de onipotência.

 

        Desenvolvimento da agressão-destruição

1- Agressão-movimento sem intenção. O prazer do movimento em si. Fase da pré-integração.

2- Na tentativa de satisfazer a necessidade aparece a “implacabilidade”. Intenção de satisfazer as necessidades do id, ou quaisquer outras, levando eventualmente à agressão intencional e à destruição não intencional, subproduto da satisfação instintual.

3- Estádio do concern: a agressão-destruição torna-se uma responsabilidade do indivíduo já que ele pode trazer conseqüências danosas ao indivíduo. Matar a Mãe-objeto é agora, matar, ao mesmo tempo, a Mãe-ambiente, já que essas duas persoficações foram unidas e constituem agora uma só e única pessoa.

 

Caso  Clínico

        Vou agora reportar-me a um tratamento de uma paciente deprimida realizado já há vários anos e do qual eu guardei alguns delineamentos gerais. Não me preocuparei, por enquanto, em  estabelecer articulações entre a teoria e a prática. Como já disse,  embora eu goste da orientação geral da teoria winnicottiana, não me sinto constrangido a referir todos os acontecimentos clínicos a ela. A clínica é muito mais ampla do que qualquer teoria poderia abarcar. Trata-se de uma posição transteórica e transdisciplinar que nem todos aceitam, mas que é a que está mais de acordo com o meu pensamento e ação.

        A paciente tinha aproximadamente 40 anos quando me procurou. Havia tentado o suicídio com um tiro no peito; imediatamente operada, salvou-se. O que eu mais me recordo de nossa dinâmica: ela se atacava para me fazer sofrer, pois, na sua fantasia inconsciente, havia uma continuidade de nossos dois corpospsiquismos. Se eu introduzisse o terceiro, mostrando sua fantasia, ela se sentia sem uma parte de si mesma e a depressão se aprofundava. Ao se aprofundar a depressão, ressurgia com mais força a fantasia de uma continuidade entre o seu corpopsiquismo e outro corpopsiquismo, fantasia esta que ela esperava realizar na sua relação comigo. Eu era a Mãe-Onipotente que ao vê-la em sofrimento a salvaria por amá-la, por sofrer com ela, por estar em continuidade psíquica com ela.

        Por outro lado, o acolhimento de sua fantasia de continuidade corpomental reduzia a sua depressão trazendo-lhe esperanças onipotentes que, na medida em que não se cumpriam, lançavam-na novamente no poço desesperador da depressão.

        A estratégia que usei foi a seguinte: eu acolhia a sua necessidade de simbiose sofredora até um ponto em que eu próprio ficava próximo da exasperação (ela, de alguma maneira me culpava de seu sofrimento. Eu estava destinado a salvá-la de seu sofrimento. Esta obrigação não cumprida fazia-a culpar-me ainda mais). Neste momento eu suavemente, me retirava do dinamismo e ela então, diante da ameaça de solidão absoluta, e já em parte satisfeita com uma gratificação parcial de seu dinamismo - coisa que ela provavelmente nunca havia encontrado - recuava, interrompendo sua queda no poço da depressão, e mesmo, tentando galgar as saliências da parede que a levariam ao ar livre. Este era um momento em que eu podia falar alguma coisa destes acontecimentos intersubjetivos.

        Havia pois uma simbiose que chamei simbiose de sofrimento. Eu deveria sentir o seu sofrimento. Mas havia também um pedido de atendimento a suas necessidades afetivas primitivas que eram, na medida do possível, atendidas. Este atendimento foi fundamental para a melhora da analisanda.

        Devo dizer que em nenhum momento ela deixou de tomar uma medicação pesada, composta de anti-depressivos, anti-psicóticos e ansiolíticos, medicação que já não fazia efeito. Devo também dizer que, quando voltou à sua cidade de origem, ela tinha apenas saído do patamar depressivo que a impedia de viver. A necessidade de medicação e de psicoterapia era imperiosa e ela continuou seu tratamento lá. Creio que posso dizer ter ela vivido e assimilado um tipo de relação afetiva que lhe deu algum suporte básico para continuar a viver.

        Este tratamento se realizou há vários anos e até hoje, de vez em quando, ela me telefona para contar alguma coisa. Por vezes ela me relata melhoras e por vezes pioras. No geral, tenho a impressão que ela está em processo lento de melhora, com idas e vindas, mas isto pode ser mais um desejo meu que a realidade.

        Mesmo tendo tentado o suicídio, jamais pensei nela como tendo um desejo primário de morte. Não estando aderido a este pensamento, não foi difícil pensar na morte como um castigo para a Personificação Significativa, para a Mãe-Boa. Ela morreria sim, mas continuaria viva no corpo daquele que, por continuidade com ela, a portava, e que a faria viver em eterno sofrimento unário/dual. Sua morte seria sua garantia de imortalidade em sofrimento. Sofrimento e imortalidade como qualidades solidárias. Só haveria imortalidade no sofrimento. Por outro lado a morte era também a liberação de um sofrimento insuportável. Esta visão de morte não parece se coadunar com o conceito de pulsão de morte integralmente. A não ser que pensemos que a complexidade - o que significa dizer, a individualidade - é insuportável, e que quando ela se torna insuportável queremos mais é voltar ao inanimado, à indiferenciação, tal como Freud coloca quando fala do fragmento de substância que se torna viva mas que logo volta à não-vida. Em termos de psiquê, a complexidade, a organização, a individualidade pensa em sua própria dissolução nos extremos do sofrimento. Mas se nestes extremos a matéria assim se manifesta, como não pensar que esta é uma manifestação existente em todos os níveis?

        Depois de toda esta especulação prefiro deixar em aberto a questão da pulsão de morte para mim. Não como algo ainda não resolvido, mas como uma posição paradoxal que ao mesmo tempo aceita e não aceita a pulsão de morte como conceito teórico próximo à clínica - que é como entendo que os conceitos teóricos devam agir. Eu diria que, nesse momento de minha vida, a não pulsão de morte tem um peso maior que a pulsão de morte. Pesa mais em mim a concepção de que o homem é movido pela vida, pela vontade de potência nietzschiana e que a morte é uma força reativa, uma vontade negativa, que tem em Winnicott um correspondente: o falso self. O verdadeiro self é para Winnicott o correspondente à pulsão de vida pois o self tende à realização e à expansão.

 

Nahman  Armony