AGRESSIVIDADE EM WINNICOTT

                                              

O ser humano possui uma quota de energia que precisa ser atualizada. Essa cota de energia, dependendo da perspectiva, pode ser chamada de força vital, de agressividade. Sua manifestação mais conspícua é a motilidade. Dessa maneira, de certa forma, agressividade e motilidade se confundem. É esta agressividade que tem de ser gasta.
De que maneira isso acontece? Parte da energia/agressividade é gasta na motilidade e nos procedimentos de crescimento, de experimentação e na exploração do mundo. Parte dela está ligada ao amor primário – o amor primário tem obrigatoriamente um componente agressivo. Parte encontra ou cria um obstáculo para poder se manifestar. O obstáculo que é o mundo, sua realidade, pode ser suficiente para o gasto da agressividade. Mas pode não ser, e então é preciso achar ou mesmo criar um obstáculo para gastar a energia, a agressividade. Disso tudo resulta um gasto de agressividade que pode ou não ser completo, sendo que o excedente de energia fica preso no organismo.
Existe, pois, uma agressividade inata necessária ao desenvolvimento do ser humano. Os rumos que esta agressividade tomará, dependem da maternagem. Se esta for suficientemente boa, a agressividade se tornará integrada à personalidade, podendo ser criteriosamente usada. Se o ambiente não for suficientemente bom, a agressividade se transformará em destrutividade. 
         A agressividade não é perigosa. A repressão (recalque) da agressividade, sim.
         Na época do pré-concern a agressividade (falamos aqui de uma das possibilidades) é dirigida à mãe-objeto (amor voraz) como um amor implacável, já que não houve ainda a integração da mãe-objeto com a mãe-ambiente. O amor excitado inclui um ataque imaginário ao corpo da mãe. Se essa agressão é inibida, haverá dificuldade de amar, de se relacionar com o outro. “Se a agressão é perdida nesse estágio de desenvolvimento, haverá também algum grau de perda da capacidade de amor, isto é, de se relacionar com objetos” (p. 358 – Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional, in “Da pediatria à psicanálise”).
         É possível que mesmo no estágio de concern apareça esse tipo de agressividade implacável. Isso se deverá a uma dissociação entre o aspecto tranqüilo e o aspecto excitado da personalidade. (“Um certo grau deste tipo de comportamento aparece como uma dissociação entre o aspecto tranqüilo e o aspecto excitado da personalidade, de forma que crianças comumente boas e amáveis atuarão de forma inadequada e farão coisas agressivas a pessoas que ama, sem se sentir inteiramente responsáveis por suas ações”(idem, ibidem).
         No estágio do concern, quando há uma integração das duas mães, a criança sente-se culpada por ter danificado a pessoa amada durante a relação excitada. Se o ambiente (a mãe) sustenta a situação – e aqui estamos falando de um fator temporal – dá tempo à criança de realizar uma reparação que também deve ser aceita, isto é, sustentada no tempo pelo ambiente. Quando a reparação não pode ser aceita a transformação de agressão em realizações sociais se desfaz e reaparece a agressão. (agressividade é diferente de agressão: a realização só pode ser feita quando há agressividade, mas a realização não necessita de ser agressiva. Só o será quando falhar o mecanismo da reparação).
         Então um dos caminhos da culpa é a reparação, as realizações sociais benéficas ao grupo. Mas antes disso, ou depois disso ou mesmo durante, a culpa poderá ser nada mais nada menos do que agressividade voltada contra si mesmo, provocando sofrimento psíquico e equivalentes físicos. 
Em Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional há uma frase categórica de Winnicott: “A atividade social não será satisfatória, a não ser que se baseie em um sentimento de culpa pessoal em função da agressão”. Winnicott admite que todos os seres humanos possuem uma agressão reativa. “Podemos dizer que seremos sempre capazes de detectar a agressão reativa no impulso amoroso primitivo, já que, na prática, não existe algo como uma completa satisfação do id”. (p.363, ibid).   Isso foi escrito em 1950-55. Em 1958 Winnicott assume a existência de uma atividade social desvinculada da culpa nos artistas criativos, o que eu estendi para os borderlines próximos ao normal (homem pós-moderno) de uma maneira geral (ver o artigo “Psicanálise e o sentimento de culpa” 1958 p.28-29 no livro “O ambiente e os processos de maturação”).
 “Podemos dizer que seremos sempre capazes de detectar a agressão reativa no impulso amoroso primitivo, já que, na prática, não existe algo como uma completa satisfação do id”. (p.363, ibid).
  A motilidade (agressividade) inerente, que todos nós portamos, tem de se expressar. Ela não se gasta inteiramente na atividade do id. O restante dela, ou encontra um obstáculo para ser gasta, ou permanece no organismo causando incômodo, procurando meios de se expressar e eventualmente convertendo-se em masoquismo. 
         Na última década de sua vida, Winnicott atribuiu uma missão da maior importância à agressividade na sua forma de agressão destrutiva. A passagem da relação de objeto para uso de objeto se dá por um ataque e destruição do objeto subjetivo, que só então passa a ser visto sob a ótica de objeto objetivamente percebido. A palavra “uso”, da linguagem coloquial, é então transformada em conceito, pois coloquialmente falando, também na relação de objeto existe o uso (em sentido coloquial) do analista. Também devemos tomar cuidado com a conotação pejorativa que a palavra uso pode ter, significando mais um abuso que uma utilização. Para Winnicott, o “uso” do analista, como conceito, significa que o analisando pode finalmente ver o analista como um outro, e então realmente ouvir, sentir e aproveitar o que está sendo transmitido.
         A agressividade para Winnicott é, portanto, o motor que impele a pessoa a se relacionar, a criar, a viver, a amar, a realizar, a produzir. O perigoso, para Winnicott, reside na repressão e no recalque da agressividade pois, estando fora do alcance do Cs. não poderá ser administrada.

Nahman Armony



                                                                                  

NÍVEIS DE ENTREGA


Muitas vezes ouvi mulheres reclamando dos homens que não se deixavam amar: sempre davam um jeito de quebrar o clima de intimidade quando este ia além do que seus medos podiam suportar.
Dentro de uma mentalidade patriarcal é possível compreender tal comportamento. O homem entregar-se a seus sentimentos era, na sociedade patriarcal, um sinal de fraqueza inconcebível. Uma fraqueza que o impediria de vencer na vida. Valorizava-se então a objetividade absoluta sem laivos de sensibilidade e compaixão, o que lhe permitiria manter o controle integral da situação. Era uma questão de princípio (“homem não chora”), mas era também uma questão pragmática, pois o prazer obtido no encontro amoroso poderia vir acompanhado de gratidão com um amolecimento da armadura egóica o que o deixaria mais predisposto a atender aos desejos da companheira e mais sensível às suas necessidades. Para o machismo isto é muito perigoso, pois tira o homem da posição de dominador necessária à sua autoestima e à manutenção da hierarquia. A solução é entregar-se até certo ponto, não ultrapassando a linha além da qual a gratidão e o relaxamento o fariam sair de sua posição de poder absoluto.
Esta situação era prevalecente no século passado. De lá para cá muita água passou debaixo da ponte. O machismo está em processo de dissolução e embora haja uma certa indefinição a sensibilidade masculina está em alta.
A indefinição da qual falo refere-se a uma dubiedade quanto ao papel do homem. Ele deverá ser sensível sim, mas não deverá perder certas características como pagar a conta da companheira, abrir a porta do carro e outras gentilezas exclusivas do masculino estabelecendo ainda uma diferença de gêneros.
Pelo que posso perceber o assunto ainda é confuso e está em processo de elaboração social. E mais confuso se torna quando nos deparamos com um fenômeno perfeitamente compreensível. A mulher atualmente apresenta o mesmo medo de entrega. Vamos tentar compreender.
Por séculos a mulher foi oprimida até que as condições sociais e tecnológicas vieram a permitir uma revolta contra sua condição de inferioridade. As primeiras feministas diante da força esmagadora da tradição tiveram que vestir o uniforme de supermulher disputando poder com o gênero masculino e adquirindo suas características. Na medida em que elas foram conquistando espaços e se libertando do jugo masculino essa força passou a ser desnecessária e realmente a luta se amainou. Mas permanece ainda no inconsciente coletivo feminino a lembrança arcaica e inconsciente de uma outra época terrivelmente desfavorável à mulher. E o medo inconsciente do retorno da dominação masculina faz com que atualmente a Mulher evite uma entrega completa, repetindo, por outros motivos, o antigo comportamento do Homem. Por sua vez o Homem ainda parcialmente aprisionado pelo antigo padrão de comportamento Homem/Mulher também não consegue uma entrega completa. Ambos, Homem e Mulher se entregam até certo ponto e não vão além por medo de se sentirem dominados (e também por medo da perda de individualidade que é um dos grandes fantasmas de nossa época). A incompletude da relação amorosa deixa ambos insatisfeitos facilitando o rompimento ou a procura de outros parceiros.
Espero que estas considerações possam ajudar os casais a se encontrarem o mais próximo possível da plenitude de suas potencialidades amorosas que hoje vão muito além da relação sexual padrão.
                                                       Nahman Armony
Primeira publicação na revista CARAS.

     

POEMA DA FRATERNIDADE

                    Retirar essa pedra do coração
                              Libertar meu riso
                              Dar-lhe asas de pássaro
                              E voar em direção ao horizonte
                              Em busca do arco-iris.
                              Viver livre, solto, feliz
                    Acreditando no meu amor
                    Na minha mais profunda bondade
                    No meu desejo de entender-me com os homens.
                    E acreditar que eu me possa defender
                    Poder fechar meu coração
                    Sempre que necessário
                    Na medida justa
                    Na hora justa.
                    Poder maltratar libertando
                    A ave que em outros existe
                    E voarmos todos juntos
                    Asas com asas
                    Bicos versus bicos
                    Na busca
                    Na ascenção
                    No prazer do azul
                    Do sol
                    Das tempestades
                    Até que cada um
                    Se perca no infinito.
                                            
                                          Nahman Armony     

A ANÁLISE POSSÍVEL

 REFLEXÕES SOBRE O ALCANCE E LIMITES DA TÉCNICA ANALÍTICA.
Embora eu disponha de um tempo limitado não conseguirei ir adiante sem antes confessar que a palavra ‘técnica’, atualmente, gera-me um certo desconforto não obstante eu a use.  Para mim ela transmite a ideia de que se o aprendiz seguir as regras expostas pelo mestre se tornará um bom profissional. Creio que ninguém concorda com este tipo de aprendizado, pois o bom profissional é mais um artista que um técnico. Por isso a análise pessoal e as supervisões são indispensáveis numa formação psicanalítica. E o supervisor sempre deverá estar atento para evitar uma cópia (uma técnica) sem alma. Talvez fosse melhor substituir a expressão ‘técnica analítica’ por techné analítico. Esta antiga palavra grega não separa a arte da técnica. Elas formam uma unidade: uma amalgama-se à outra. 

        Desde que Freud contaminou a sociedade patriarcal com a peste da psicanálise, suas mutações não cessaram de inquietar a sociedade provocando em muitos profissionais um tumulto psíquico que se traduzia numa frase superegóica repetida até a exaustão: “isto não é psicanálise”. Uma frase que, sem agravos, poderia ser substituída por um esconjurativo ‘vade retro Satanás’. Pois é justamente esta capacidade viral de transformação que mantém a psicanálise viva. O Freud da ciência da observação minuciosa sabia disso e fez da psicanálise uma ciência em transformação. Mas aqui se faz necessária uma ressalva. Em relação a alguns conceitos ele era intransigente, acreditando proteger a psicanálise naquilo que acreditava ser constitutivo de sua singularidade. De qualquer maneira, com ou sem a aprovação dos grandes mestres a psicanálise não cessou de ampliar suas fronteiras e nem cessará, pois para permanecer viva terá de participar das aceleradas mudanças de mentalidade, de paradigma, de subjetividade.
Para expor a trajetória da clínica (techné) psicanalítica clássica à clínica da intersubjetividade certamente terei de começar por Freud. Ele viveu num regime vitoriano/patriarcal em que as pessoas em posição de poder colocavam-se em um patamar superior ao das pessoas que deles dependiam. Assim eram as relações pai/família, professor/aluno, médico/paciente, marido/mulher, etc. e naturalmente analista/paciente. Esta posição hierárquica fazia do analista um sujeito de um pretenso saber; uma tentação que tomava várias formas. Também criava um distanciamento impossível de ultrapassar.  
Nas “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” Freud adverte: “O médico deve ser opaco aos seus clientes e como um espelho não mostrar-lhes nada exceto o que lhe é mostrado”. No meu artigo “Posturas terapêuticas na prática clínica” chamei a esta atitude de postura-espelho (modo-espelho).  E mais adiante, neste mesmo artigo: “Não posso aconselhar insistentemente demais os meus colegas a tomarem como modelo, durante o tratamento analítico o cirurgião que põe de lado todos os sentimentos, até mesmo a solidariedade humana, e concentra suas forças mentais no objetivo único de realizar a operação tão competentemente quanto possível...” A clássica liturgia psicanalítica facilita e mantém estas recomendações. O analista, fora do alcance do olhar do analisando não se revela através das expressões faciais, das movimentações do corpo e das atitudes globais facilitando a manutenção de idealização. Ao mesmo tempo cria uma distância entre ele e o analisando. O modo-espelho seria pois acompanhado de uma configuração em que de um lado está o analista, do outro o analisando e entre eles um espaço neutro onde o analista coloca as suas interpretações e de onde o analisando as recolhe. Não há um contato direto, corpo/afetivo entre ambos; o procedimento do analista é verbal/interpretativo. Temos de um lado o sujeito do saber que interpreta e do outro o fulano do não saber cujo inconsciente é interpretado pelo psicanalista. Este era e eventualmente ainda é considerado o estado basilar da relação analítica. O analista revela ao Cs. do analisando o seu Ic. (do analisando) até então não desvendado e aguarda o encontro da representação de palavra consciente dita pelo analista e guardada na mente do analisando, com a representação de objeto inconsciente para que se dê o insight. Nesta configuração o instrumento mais importante (para não dizer o único) da terapia psicanalítica é a interpretação. Creio que aqui cabe uma nota: estou apresentando um esqueleto teórico da clínica de inspiração freudiana (que não é a clínica de Freud). O preenchimento deste esqueleto cabia (e cabe) aos analistas que usam esta teoria. E cada um a preencherá à sua maneira. O que não pode faltar nesse preenchimento é o procedimento interpretativo (comportamento interpretativo).
Para manter o procedimento interpretativo e o modo espelho, o analista necessitava colocar barreiras evitando uma porosidade psíquica generalizada, pois essa propiciaria uma perigosa mistura afetiva que destruiria a possibilidade de um tratamento analítico. Com o conceito de identificação projetiva de Melanie Klein a fobia dos analistas em relação a serem afetados pelos analisandos começa a se desfazer, pois falar de identificação projetiva é falar da afetação provocada pelo analisando no analista. Aparece uma zona de porosidade ampliando-se o escopo da psicanálise. Já é possível tratar de crianças através de brinquedos. Mas a interpretação continua a ser o eixo central da análise. Quanto à porosidade ela é ainda limitada.  Ilustrando através de minha alegoria: as produções dos analisandos pulam o espaço intermediário que separa analista de analisando e forçam sua direta entrada no mundo psíquico do analista ainda refratário a esta invasão. Estou-me referindo à identificação projetiva e introjetiva; elas caem diretamente no mundo psíquico do analista que então tem a tarefa de aproveitá-las para apontar uma dinâmica relacional. A ideia não era mantê-las por um tempo no psiquismo aguardando seu amadurecimento e sim esperar uma oportunidade para, logo que possível, livrar-se daquela carga transferencial perturbadora e transformadora. Há uma abertura porosa para receber o conteúdo, mas não há a preocupação de deixá-lo amadurecer. Ele será usado para uma interpretação transferencial quando as condições estiverem propícias. Melanie Klein não se deu conta de que a identificação projetiva era um cavalo de Troia, pois só pode existir identificação projetiva e introjetiva quando o analista está apto e disposto a receber dentro de sua psique afetiva as fantasias dos analisandos, criando-se um potencial de perturbação relacional. Uma citação preciosa de H.Segal traz um esclarecimento da concepção kleiniana: “A técnica kleiniana baseia-se rígida e psicanaliticamente nos conceitos psicanalíticos freudianos ---- O papel do analista limita-se à interpretação do material do paciente e toda crítica, conselho, encorajamento, tranquilização e coisas semelhantes são rigorosamente evitadas..Poder-se-ia dizer, em consequência disso que não há lugar para o termo ‘técnica’ kleiniana?” Hanna Segal responde que diante de um material até então desconhecido da psicanálise surgiram “novas interpretações, raramente ou nunca utilizadas na técnica clássica”. A novidade que Klein e sua escola não perceberam e que veio a dar uma reviravolta na psicanálise foi o conceito de ‘tempo de maturação’, implícito na sua teoria e que estou explicitando através de um batismo. Este foi o primeiro e imperceptível passo na direção da vivencia compartilhada (covivência) e, portanto, da intersubjetividade.
Bion, a partir dos conceitos de identificação projetiva acrescenta as palavras ‘continente’ e 'conteúdo'. Ao usá-las Bion amplia a área de porosidade. É este continente que receberá a identificação projetiva. Mas este autor parece temer reificar os conceitos e não diz claramente que o continente é aquele locus do analista que acolhe as identificações projetivas do analisando. Por esta mesma razão ele não fala de tempo de maturação embora seu exemplo princeps (bebê que projeta os elementos beta na mãe que após uma elaboração os devolve como elementos alfa) deixe perceber que lá está o conceito.
Bleger se aproxima ainda mais do conceito de tempo de maturação e de modo continente: “Temos de constituir-nos em depositários fiéis da parte psicótica e atuar como pais tolerantes; damos tempo para crescer e não sobrecarregamos com problemas demasiado prematuros para o ego do paciente.” Essa citação refere-se mais particularmente ao que Bleger chama de personalidade ambígua, que nada mais é que o nosso borderline.
A obra de Winnicott tem dado, e cada vez mais, uma fundamental contribuição à difusão do modo covivencial de tratamento, acrescentando ao eixo clínico centrado na interpretação, na transferência e na contratransferência, um outro eixo clínico: a covivência, o modo continente e o tempo de maturação. Tendo vivido, vivenciado e estudado profundamente a relação mãe-filho ele colocava-se poroso na relação, especialmente nas situações em que o analisando solicitava transferencialmente a presença da Personificação da Mãe. Evidentemente esta posição transferencial mantém uma hierarquização ontológica (obs.: que nem sempre está presente na atividade terapêutica de Winnicott.) E mesmo a hierarquização era suavizada por sua sensibilidade à vida emocional dos seus analisandos. Para que se entenda melhor meu pensamento recorrerei a um símile com uma mãe real: seria uma mãe que conseguiria ser amiga sem perder a autoridade hierárquica criativa/educativa. Como todo símile este é também imperfeito, mas útil para efeito de transmissão de uma ideia.
Uma das raízes da intersubjetividade é a psicologia do self de Kohut, especialmente com seus conceitos de introspecção empática, self/objeto, transferências selfobjetais; acrescente-se a ideia de narcisismo como qualidade humana com tendência a amadurecer independentemente da sexualidade e “a ideia de que os únicos dados adequados para a compreensão psicanalítica são aqueles acessíveis por introspecção e empatia”(Peter Lessen).
SEARLES E A SIMBIOSE TERAPÊUTICA
Searles ganhou prestígio como analista de psicóticos e borderlines. Dentre suas muitas contribuições interessa-nos o seu conceito de simbiose terapêutica onde se juntam o procedimento covivencial e o modo simbiótico. O modo espelho é a expressão máxima de afastamento afetivo. O modo simbiótico-fusional é o estado máximo de intimidade e de mutualidade afetiva. O analista está, da mesma maneira que o analisando, envolvido na simbiose; exagerando pode-se dizer que já não se sabe quem está em tratamento. Embora o tratamento seja de mão dupla, a maior experiência afetivo-cognitiva do analista no que diz respeito aos fenômenos intersubjetivos fará dele o principal terapeuta e o responsável pela análise. De qualquer forma os transtornos já não são privilégio do analisando; o analista deles participa. Esta inclusão do analista nas dificuldades do par amplia consideravelmente o alcance da psicanálise tanto em extensão quanto em profundidade.
Estas ideias se coadunam com uma corrente que vem se desenvolvendo nos Estados Unidos com o nome genérico de intersubjetividade. Há muitos pensadores nesta área que concordam no fundamental, mas discordam nos detalhes. A ideia fundamental é a de um encontro de duas pessoas com intenções terapêuticas, cada uma delas trazendo as suas complexidades subjetivas que ao entrarem em relação criam um campo intersubjetivo comum onde não há lugar para hierarquias. A pergunta que se coloca é: até que ponto as duas subjetividades poderão se ajudar? Os obstáculos não podem ser ignorados. Uma ideia que aflora quase instantaneamente é de que, como todos os seres humanos, os analistas têm um inconsciente dinâmico que se vela e desvela; pode ser que na terapia a relação funcione como um modificador de dinâmicas importunas beneficiando os dois participantes; mas pode ser que não; a análise então encontra um limite. Um outro encontro intersubjetivo, com outro analista, de mesma orientação ou não, poderá abrir novas sendas. O limite será, portanto um limite relativo (contingente) que poderá ser considerado intransponível até um eventual momento feliz, que poderá acontecer ou não, em que será ultrapassado. Um recurso que poderá transformar a impossibilidade em possibilidade de ajuda psicanalítica é o uso de medicamentos. Uma adequada diminuição de ansiedade ou de depressão poderá ser o suficiente para o prosseguimento do tratamento psicoterápico psicanalítico. (Aqui fica claro que considero a psicanálise uma forma de psicoterapia. Esta formulação é uma derivação de uma fala de Winnicott: “Faço psicanálise porque é do que o paciente necessita. Se o paciente não necessita análise faço alguma outra coisa”.)
Até aqui tenho falado de limites contingentes. E os limites inerentes às próprias teorias? Eu acredito que se a psicanálise continuar a participar das transformações da subjetividade/mentalidade/cultura certamente ela sobreviverá, certamente com novas diferenças teóricas aparecendo. Chamar a essas novas teorias de psicanálise ou não, é uma questão entre esquecer nossas raízes ou sentirmo-nos como galhos de uma árvore genealógica tão fértil que deu e continuará a dar muitos e muitos frutos.
                                                       Nahman Armony       
  

           

          

EM DEFESA DE UM ROMANTISMO CONSCIENTE



         A ânsia de juntar dois corpos para transformá-lo em um só existe desde tempos imemoriais e é algo que se mantém presente na alma humana. Vemos esse desejo aparecer em todas as idades. Mas, diferentemente do passado, é um desejo sujeito a críticas.  Antigamente acreditava-se nessa possibilidade o que ficava expresso no discurso religioso do casamento cristão, no “e viveram felizes para sempre” dos contos de fadas que deram vários filhotes em livros e filmes holywoodianos. Nas décadas e séculos que nos precederam éramos mais ingênuos e acreditávamos que nosso desejo de fusão com o parceiro ideal se realizaria. Perdemos a ingenuidade, mas o desejo não desapareceu. Ele continua firme e forte a nos guiar, direcionar, atormentar. A diferença é que já não acreditamos na possibilidade de sua realização. Mas, especialmente quando se é jovem e ainda não se passou por muitas decepções, desacreditamos acreditando. Tal milagre pode não ter acontecido com ninguém de nossas relações, com ninguém que conhecemos, mas somos diferentes e irá acontecer conosco. E aqui podemos evocar uma linda frase do poeta Vinicius de Moraes, frase que para os casais predispostos a acreditar em um relacionamento especial, único e eterno pode, na sua ambigüidade ser entendido como o ideal de amor romântico. Diz ele “que o amor seja infinito enquanto dure”. O infinito pode ter o sentido de eterno, pois o infinito justamente por não ter fim evoca o para sempre. Mas também pode significar um mergulho na alma infinita de cada um, sem que obrigatoriamente este infinito torne a relação eterna. Existe uma tendência de recitar o verso citado como “que seja eterno enquanto dure”. Isto fala da ambivalência das pessoas em relação  ao desejo primordial de um amor eterno, especial, insubstituível. No fundo da alma ainda mais que a esperança, existe a certeza de que encontramos ou encontraremos nossa alma gêmea que nos acompanhará para o resto da vida. Num primeiro momento poderemos achar absurda a permanência mesmo que latente desta crença. Mas se pensarmos melhor verificaremos que quando se tem esta utopia o casal apresenta um maior empenho em superar as dificuldades que surgem no caminho da realização amorosa. Quando o casal já começa a idéia de impermanência muito mais facilmente a relação se desfaz. O que também não é de se desprezar. Freqüentemente encontramos situações de três casamentos sucessivos em que finalmente o terceiro tornou-se estável: isto tanto pode ser explicado pelo desaparecimento do ímpeto juvenil, por um certo cansaço, como também por um amadurecimento que permite ao mesmo tempo manter no inconsciente a idéia de  união eterna enquanto o consciente aprende a lidar com as diferenças de personalidade e com as crise. Também podemos pensar que a ilusão de completude se desfez nos casamentos anteriores mas permaneceu o desejo de ter uma companhia amorosa o que faz com que o casal suporte melhor as vicissitudes de uma relação. Isso sem deixar de levar em consideração de que a experiência pode levar a melhores escolhas. Portanto, amigos, não desistamos. Vamos manter a ilusão de completude sim, mesmo sabendo que ela é falsa, pois ela nos ajudará a manter uma relação estável, o que, segundo as pesquisas de saúde, aumenta a longevidade e a qualidade de vida.

                                                        Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS     

EPISTEMOLOGIA E CLÍNICA

Pensamento cartesiano ou pensamento paradoxal? (a partir do relato de um colega).
O pensamento cartesiano é mais simples, uma linha reta ligando dois pontos sobre uma superfície plana. O paradoxal é mais complexo, pois cobre o emaranhado de acontecimentos exigindo um trabalho psíquico maior: temos de entrar em labirintos, fazer curvas fechadas, passar por cruzamentos, atravessar encruzilhadas, confundir estradas e ruas, etc. Há ocasiões em que o cartesianismo é mais conveniente embora menos amplo; em outras ocasiões o pensamento paradoxal se presta melhor para entender os acontecimentos e lidar com eles. Darei exemplos: uma pessoa tem uma infecção, faz um exame laboratorial e descobre a bactéria responsável e o antibiótico adequado. O médico prescreve a medicação apropriada sem ver o paciente, avisando à família para que busque a receita. Essa pessoa toma a medicação e a infecção desaparece. Cartesianamente pode-se dizer que tal pessoa estava doente, tomou a medicação apropriada e ficou saudável. Causa e efeito. Digamos que o paciente foi ao consultório onde pegou a receita sem ser examinado. É quase como ser avisado da medicação por telefone. Continua em vigor o pensamento dicotômico: saúde-doença. Pensemos na alternativa: o paciente toma o remédio adequado e não melhora de seu quadro infeccioso necessitando de mais cuidados. Por que teria falhado a epistemologia cartesiana? Porque no caso cabia uma epistemologia paradoxal que fosse além da dicotomia doença e saúde. Melhor raciocinar paradoxalmente dizendo que o paciente é ao mesmo tempo saudável e não saudável. Poderíamos ir pelo seguinte caminho: desde que nascemos somos atacados por inumeráveis seres vivos: bactérias, parasitas, germes de toda natureza, ofensas, sapos, etc. Nós nos defendemos mobilizando nossas defesas. Há uma luta entre o germe e as defesas imunológicas, entre a raiva e as defesas psíquicas. Mas estes sintomas só existem porque o corpopsiquemente  tem recursos para se defender. Podemos dizer que tal pessoa é doente ou que, ao contrário, está saudável já que esta podendo combater as invasões? (não esqueçamos que durante toda a sua existência o ser humano terá de diuturnamente lutar para permanecer suficientemente bem, isto é, vivo.) Ele está doente ou sadio? As duas coisas é a resposta óbvia. Temos que raciocinar dentro de uma epistemologia paradoxal para dar conta da complexidade do ser humano. O antibiótico é sim necessário. Mas há pessoas que vitalmente necessitam algo que vá além da medicação. Precisam de acolhimento, pois se este não existir o sistema imunológico falhará, reverberando nx mente/cérebro sob a forma de medo de não se recuperar, exacerbando fantasias de não-cuidado, herança de uma infância mal concernida, etc., etc. Para alguns pacientes bastará dar o antibiótico permanecendo na lógica cartesiana. Outros precisarão que o cuidador cuide do paciente dentro da lógica paradoxal, pois terá de levar em consideração a complexidade humana. Estes o obrigarão a pensar dentro da lógica paradoxal que acompanha a complexidade.
                                                                                                              Nahman Armony