NA BORDA

NA BORDA
(em quatro movimentos)

I
Cosmopolita
                                   Nos ventos lúdicos do Aterro do Flamengo
                                   Afino a mente, respiro o mundo
                                   Banho-me no horizonte, esplendor fecundo
                                  
II
Ao longe
                                   Ao longe
                                               Um barco a vela
                                               Um latido de cachorro
                                               Uma casinha de favela
                                   Ao longe
                                               O Paraíso

III
Marginando
                                   Traçamos as bordas do Paraíso
                                                           Não as ultrapasso
                                               Para não perdê-lo
IV
Césio 87
                                   Amplos espaços do Aterro do Flamengo
                                   Coração aberto desdobrado tapete
                                   Verde                                                 Verde
                                                                       Vêde
                                   A paisagem cambiante das folhas
                                   O comentário alado dos pássaros
                                   O mar em brilhos de sinfonia
                                   O ousado arrepio de uma lufada mais fria
                                   E a tristeza da Terra empurrada pelos homens
                                                                       Para o esplendhorror do césio


                                                                                                          Nahman Armony

A POTÊNCIA DA EXPRESSÃO "TENDÊNCIA ANTISSOCIAL

        Winnicott é um extraordinário humanista que busca o melhor do ser humano, sem negar suas tendências e ações destrutivas. Sempre procura o que há de positivo e, portanto, de potencialmente redentor no Homem. A reviravolta que sua concepção de ato antissocial provoca no arraigado pensamento tradicional sobre o mal radical (Kant) e sobre a pulsão de morte (Freud) é bem um testemunho desta afirmação. Não posso deixar de colocar aqui minha admiração sobre sua inventividade, capacidade de percepção, descolamento do instituído, e coragem de expor uma proposição que desafia um pensamento axiomático milenar.
        Na sua filosofia humanista ele procura, mesmo no mais sombrio do ser humano, o seu melhor, a sua possibilidade de redenção. Isto o torna mais sensível aos aspectos positivos do ser humano possibilitando-lhe criar formulações que surpreendem e desafiam o status quo. Por vezes a sua intuição se afasta tanto do convencional, é tão estranha, tão E.T que sequer é levada em consideração, passando despercebida. É verdade que tempos depois, com as transformações históricas da subjetividade, a comunidade psicanalítica se dá conta do imenso valor psicanalítico, social e filosófico de seus achados. Hoje já se fala deles com uma facilidade que denotaria uma ultrapassagem da ideia de mal inato. O verbo denotar está no condicional pois uma parte expressiva da comunidade psicanalítica, significativa pelo número e pela importância teórica, mantém o conceito de pulsão de morte. E é bom que assim seja para se poder contar com mais uma perspectiva que nos ajude a compreender a enorme complexidade do psiquismo humano. Acredito que muitos colegas psicanalistas se depararam com situações em que o conceito de pulsão de morte surgiu espontaneamente como organizador daquelas situações. Não acho que duas teorias aparentemente opostas tenham de se anular: para sair do que seria um impasse da lógica cartesiana a filosofia usa o conceito de paradoxo. E aqui cabe a ideia de paradoxo. O conceito de pulsão de morte tanto organiza o pensamento quanto o atropela. Depende de como se apresenta o campo intersubjetivo. 
        Quando falei do valor psicanalítico das concepções winnicottianas estava pensando nos  benefícios que uma nova e amorosa atitude pessoal proporciona. A má conduta, seja o roubo, a agressão a destrutividade, é geralmente vista como uma maldade inata sem origem e sem motivação; uma situação irremediável que provoca medo e retira o transgressor das trocas humanas, isolando-o afetivamente. É como se sua “maldade” pudesse se manifestar a qualquer momento sendo preciso então evitá-lo, isolá-lo. Não haveria nada de humano na sua “maldade” o que o tornaria diferente das demais pessoas. Pois bem, Winnicott, com sua acuidade desfaz esta fábula. O ato antissocial é consequência de desilusões excessivas (x+y+z) de um bebê ou de uma criança que na fase de dependência absoluta foram bem cuidados e que sofrem um excesso de frustração na fase de dependência relativa. Com o ato antissocial procura chamar a atenção dos pais tentando recuperar o status anterior. (Respondendo a uma mãe que já não sabia mais o que fazer com um filho que roubava compulsivamente aconselha: “Por que você não lhe diz que sabe que, quando ele rouba, não são realmente aquelas coisas que ele quer, e sim alguma outra coisa à qual ele acha que tem direito? Que é como se ele estivesse fazendo uma reclamação a seu pai e sua mãe, por sentir a falta de seu amor?”-p.407 – “Da Pediatria à Psicanálise”).
Ao mesmo tempo o ato antissocial pode ser uma vingança da criança ao que ele sente como uma perda injusta. Este comportamento só difere em espetaculosidade daquilo que acontece com praticamente todos os seres humanos de todas as idades que em resposta a um comportamento insensível retaliam com atos de pouco relevância, em nada espetaculosos, mas que pretendem atingir a sensibilidade do parceiro sem chegar a um nível que possa ser chamado de agressão: algum esquecimento, alguma frase ambígua, alguma interferência nos hábitos do companheiro produzem um efeito de desagravo. São atos antissociais que, embora irritantes, não causam maiores transtornos fazendo mesmo parte da rotina das relações humanas. Não há portanto uma diferença essencial entre o homem comum e aquele que vindo de uma linhagem que começa no ato antissocial doméstico, continua-se no ato antissocial ostentoso e repetitivo tanto no lar como fora dele, quando então a criança recebe o epíteto de desajustada. O passo seguinte é a delinquência e finalmente chega-se à psicopatia. É possível que atos criminosos tenham também outras origens; isto porém não tira o valor da intuição de Winnicott que se atém à linhagem que começa nos atos antissociais.
Resta falar de uma questão que, se não esclarecida, pode causar confusão. Refiro-me ao seu conceito de destrutividade inata que aparentemente é o equivalente  winnicottiano da pulsão de morte. Mas não é. A destrutividade winnicottiana não existe independente do amor, pois “é parte do amor primitivo, que devora (e assim destrói). Tem como consequência (se não há retaliação) destruir o objeto subjetivo e perceber, no objeto do mundo externo, algo dotado de vida própria que, afinal, pode ser utilizado” (“Natureza Humana”, p. 81, nota de rodapé). Trata-se, pois, de uma destrutividade necessária à percepção da existência de um mundo externo e portanto necessária à vida. Já para Freud a pulsão de morte é definida como uma tendência a voltar para o inanimado e é oposta à pulsão de vida que é a tendência à complexificação. A pulsão de morte não está acoplada à pulsão de vida o que a diferencia da destrutividade winnicottiana amalgamada ao amor e com a função de preservar a vida. Não é preciso lembrar que Freud considera a agressividade e a destrutividade como uma deflexão do instinto de morte, que se volta para fora a fim de preservar o organismo. Ana Lila Lejarraga, no final de seu esclarecedor artigo “Agressividade em Freud e Winnicott” escreve: “Em Winnicott a noção que não teria como alvo desfazer unidades ou desligar laços. Além do mais, na sua visão, a destrutividade não constitui uma tendência o principio que se oponha ao potencial erótico. Em Freud, Eros e Tanatos opõem-se entre si, lutando como dois poderosos ‘inimigos imortais’ (FREUD, 1930/1988, p.140), e fortalecendo-se um a expensas do outro. Em Winnicott, a destrutividade e o potencial erótico são, de alguma forma complementares, já que é pela via da destrutividade que se chega ao reconhecimento da externalidade do objeto, condição para amá-lo. Por outro lado, como foi explicitado, a destrutividade originaria winnicottiana soadquire sentido e pode ser concebida em relação ao ambiente”. Lejarraga escreve mais um parágrafo em que ela aproxima Freud de Winnicott considerando que em ambos a destrutividade decorrem de falha humana. Mas a minha questão não é cotejar as teorias de Winnicott e Freud mas sim, chamar a atenção para a força conceitual da expressão “tendência antissocial” e as qualidades humanas que permitiram a Winnicott inventar tal expressão. Refiro-me ao seu humanismo, sua coragem, sua inventividade, sua aguda penetração psicológica, sua independência. E, finalmente, não quero deixar de mencionar (out of the paper) uma sua outra importante qualidade: seu espírito conciliador.

                                                       Nahman Armony            



CONQUISTA E MUTUALIDADE

                                                                  


        
Existe um elemento nas relações amorosas que merece uma mirada mais arguta pois sua presença pode ser perturbadora para o estabelecimento de uma parceria. Refiro-me à idéia de “conquista”. Neste caso a aproximação amorosa teria o seu desfecho quando uma das partes se revelasse tão apaixonada que nada mais poderia negar ao amado. Estaria então realizada a CONQUISTA e o desvalorizado objeto de amor, agora à mercê do vitorioso, já pode ser abandonado.
         É a isto que estou dando o nome de “conquista”. Usando uma imagem de guerra trata-se de mais um avião derrubado. Tem mais a ver com potência, com autoafirmação, e, eventualmente, com vingança, do que com ternura, afeto e derivados. Mas a conquista torna-se impossível na ausência absoluta de afeto. Então o que mais geralmente encontramos é uma mistura de autêntico desejo pelo outro misturado ao prazer do triunfo.
         Como acontece freqüentemente um olhar penetrante à infância poderá nos guiar no nó labiríntico de sentimentos que constituem o amor.
Estou destacando dois aspectos polares ---  a CONQUISTA e a APROXIMAÇÃO MÚTUA ---  de uma mistura extremamente complexa que é a atração erótica.
         Numa primeira etapa de vida o amor erótico vai surgindo e se consolidando no recebimento de ternura, leite, cuidados físicos e carinho. Mais adiante, tendo já a criança adquirido uma inicial capacidade de discernimento, ela sente a mãe como conquistada; é uma mãe que pode ser controlada e manipulada no sentido de fornecer bens que apesar da resistência materna a criança deseja. Refiro-me aos objetos preciosos espalhados pelo mundo aos quais a criança só tem acesso pela mão da mãe: brinquedos, roupas, enfeites, guloseimas, diversões, etc. Ela experimenta um poder sobre a mãe ao vencer sua relutância em fornecer tais objetos. Este é o componente de conquista do amor infantil.
         Uma mãe que sabe exercer uma intimidade carinhosa, que sabe trocar afetos e que sabe criteriosamente atender a parte das demandas materiais do filho, estará preparando um ser humano capaz de lidar com os múltiplos e contraditórios sentimentos de uma relação amorosa.
         Uma mãe pouco sensível que não percebe as demandas de afeto do filho, mas, por outro lado exagera no atendimento aos seus pedidos materiais poderá criar uma conjuntura onde a rejeição de intimidade com a conseqüente incompreensão afetiva convive com o sentimento de capacidade da criança de provocar comportamentos objetivos e conseguir artefatos. Para não se sentir rejeitada a criança evita pedir afeto concentrando-se naquilo que consegue através do controle e manipulação da mãe: comportamentos objetivos e objetos materiais. A mãe que não consegue enxergar os sentimentos da criança é por esta despida de subjetividade e transformada em objeto de fruição, fornecedora de objetos de prazer. Isto transportado para a idade adulta resulta em conquistar e abandonar, usufruindo o material e abandonando-o antes que se revele sua incapacidade de compreender o íntimo da pessoa, o que a faria se sentir extremamente rejeitada. É próprio das demandas materiais exigir incessantemente novos objetos. E a mulher, transformada em objeto é trocada por outro antes que manifeste seu comportamento de rejeição. A relação então se exerce no confronto e não na compreensão.
         As dosagens de mutualidade e conquista erótica em uma relação dependem de como experiências passadas foram elaboradas e transformadas em modos de vinculação. O aspecto CONQUISTA poderá ter menos força que o aspecto COMPREENSÃO. A relação poderá então se manter por tempo suficiente para que a experiência do presente corrija as distorções do passado. O reconhecimento do uso da CONQUISTA como defesa contra a frustrante sensação de falta de intimidade facilitará a preservação e desenvolvimento da relação.

          
                                                                        Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS

              
        


          

DEDO MINDINHO

          O mundo em aberto
       Mas já tão fechado em tantas coisas
       Que não podem ser feitas
       Que não podem ser ditas

       Acabou papai?
       É só isto?

       Como responder
       Se estou cego em Caza?

       A lingua que antipatiza

       Com os 'tes' e os 'des'...
       Onde aquela menina
       Toda esperança?
       Aquela flor sábia
       Que conhecia o botão das coisas?

       Último desabrochar de meu devaneio
       Eu quis fazer um poema para você
       Cheio de brilho
       Um poema alegre, luminoso
       Absoluto
       Como o clarão de uma explosão universal

       Mas eu me demorei muito
       Demorei-me tanto
       Que não tive tempo de imobilizá-la
       Na perfeição desejada.

       Oh criança
       Meu coração está magoado
       Magoado comigo
       Que sou absolutamente exigente
       Que não corri mais que o tempo
       Para fixar na minha memória
       A criança de meus sonhos.

       Magoado com você
       Que não é o dedo mindinho de Deus.

       Eu te amo, minha pequena
       Com seus caprichos e temores
       Com suas teimas e ternuras

       Eu te amo
       E sinto que és não só
       A criança que és
       Mas também o meu sonho
       Ao mesmo tempo
       Intacto e Transfigurado. 

                                        Nahman Armony      






  

MENTE E CÉREBRO


Os animais, ou melhor, os mamíferos, têm uma inteligência instintiva modificada pelo ambiente. É uma inteligência inconsciente. Nós humanos também temos uma inteligência inconsciente, certamente herdada de nossos antepassados de quatro patas. Esta inteligência inconsciente circula por redes neurônicas próprias, que se ativam quando esta inteligência inconsciente funciona. É uma inteligência que raciocina tendo como motor os afetos instintivos modificados pela competição, pela necessidade de sobrevivência, pela necessidade de conquista sexual, modificados, enfim, pelo que acontece no ambiente que o rodeia. É um raciocínio emocional e não um raciocínio lógico. Se lógica existe é uma lógica afetiva diferente de uma lógica da não contradição, pois a lógica afetiva admite o paradoxo.
Então, temos circuitos cerebrais por onde circula a inteligência emocional. Não somos conscientes destes processos. Nada, ou quase nada dele aparece para a nossa consciência. Um grande passo evolutivo foi a conquista de circuitos cerebrais que permitiram ao homem ver o resultado de seu funcionamento psíquico inconsciente. Ele se tornou consciente do resultado dos processos inconscientes, e também consciente dos próprios processos na medida em que estes novos circuitos permitiram a visão do que estava acontecendo. É como se o homem adquirisse um novo olho que podia olhar para o seu funcionamento cerebral e percebê-lo através do que chamamos de mente, de consciência. É possível então que pensamentos inconscientes provoquem o funcionamento de circuitos neuronais que permitem ver através de imagens e de abstrações o que está acontecendo no nível do pensamento inconsciente. Posso talvez afirmar que o que conseguimos, sem dúvida, é perceber de uma maneira consciente o resultado do trabalho inconsciente pois certamente um circuito ativa o outro: o circuito consciente ativa o circuito inconsciente assim como o circuito inconsciente ativa o consciente. Temos então dois circuitos: um consciente e outro inconsciente que se ativam mutuamente. Importante dizer que o resultado do pensamento inconsciente leva um certo tempo (questão de milissegundos, acho) até chegar ao circuito consciente quando então torna-se possível a percepção do interior: posso perceber algumas e minhas emoções, ações, e pensamentos até então inconscientes.

                                                   Nahman Armony