DIFICULDADES DO CASAL MADURO






A geração que hoje enfrenta o esvaziamento do ninho é a mesma que lutou contra a repressão sexual e, nessa luta, se impôs a obrigação de transar intensamente. Os filhos eram a desculpa dos que fugiram a esse “ideal”. Agora, sozinhos, os casais tentam retomá-lo. Impossível. Para ter bom sexo na maturidade é preciso ter consciência da passagem do tempo.


Muito se tem falado sobre a síndrome do ninho vazio, um dos desafios que o casal maduro enfrenta. Até o cinema já abordou o assunto, em filmes como Ninho Vazio (2008), dirigido pelo argentino Daniel Burman. O roteiro é conhecido: os filhos se vão, a casa se esvazia, o ponto maior de convergência do par se dilui e subitamente marido e mulher estão nus, um diante do outro, num olhar mútuo em cujas pupilas não mais aparece a prole, mas as próprias almas, com suas verdades e mentiras, convenientes e inconvenientes. É preciso um período de adaptação não só para elaborar a perda dos rebentos, mas também para enfrentar a emergência do que até então ficara em banho-maria: as lutas burlescas pela posse de pequenos poderes e evanescentes verdades, as diferenças de concepções e comportamentos, as transferências de culpas, as projeções das frustrações... uma miríade de armadilhas de tocaia.
Mas isso não é tudo. Há um desafio adicional para os casais que vivem esse momento hoje. Ele está relacionado à condição histórica de mudança de mentalidades. O grupo etário em questão viveu a transição entre uma geração que dogmatizou a repressão dos instintos e outra, que já nasceu numa mentalidade permissiva.
As proibições paternas e sociais marcaram profundamente essas pessoas, pois elas tiveram de lutar não só contra a rígida ideologia dos pais, mas também contra os preconceitos incutidos nos seus inconscientes, que teimosamente lhes enviavam mensagens reprovativas, provocando culpa quando se atreviam a desafiar a moral sexual da geração que a precedeu. 
Uma das formas encontradas para  combater o tabu da repressão foi criar um tabu contrário: sexo livre obrigatório. Transar intensamente passou a ser um imperativo categórico. Para o casal jovem esse imperativo passava despercebido por coincidir com seus desejos apaixonados. Com a vinda dos filhos, a vida profissional e a intimidade do dia a dia, porém, a vida sexual é afetada. Ao mesmo tempo, o envelhecimento do casal provoca uma redução fisiológica da libido. Mas o imperativo categórico “transar” nunca saiu da mente do casal, que só não o realizava – justificativa-se – devido ao tempo dedicado aos filhos e à profissão, e pelo cansaço e tensão que estes acarretavam. Mas eis que chega a meia-idade, os filhos se vão, a situação financeira não mais preocupa, o tempo de lazer aumenta e os dois se vêem sozinhos, envergonhada e desconfortavelmente, indo com desespero atrás do desejo sexual da mocidade. É o imperativo categórico se manifestando: eles precisam transar, pois precisam provar aos fantasmas do porão do inconsciente que são livres.
Vejam o paradoxo: eles são obrigados a ser livres e se obrigam a transar para provar que são livres. No entanto, o ímpeto da juventude já vai longe, o corpo envelheceu e a libido amornou, manifestando-se de maneira cada vez mais espaçada, mas também mais suave, carinhosa e serena. Quando o casal conscientiza e incorpora estes aspectos como pertencentes a uma evolução humana inevitável, própria do passar do tempo, desaparece o constrangimento da obrigação sexual. Os parceiros poderão então esperar com tranquilidade a visita da libido para então usufruir um sexo deleitoso que não tem a obrigação do orgasmo, embora possa lá chegar com sua carga de paixão.

                        Nahman Armony


Primeira publicação na revista CARAS. 

METAMORFOSE

          Nas crisálidas intuitivas do ser morto
                                                   do céu vivo
          Eu me pesco em trevas derradeiras
          Sem querer, a ágata de ouro de meus passos
          Leva-me a percorrer inumeráveis traços.
          Sem cessar, sem cessar se hipnotizam dentro da tenda
          Imensas primaveras refloridas ao som descrente.
          Triste eu me ponho meditabundo
          Sem saber o que é beleza
                              O que tristeza é.

                                                                     Nahman Armony

CULTURA, SUBJETIVIDADE E VIOLÊNCIA: REFLEXÕES PSICANALÍTICAS E UM POUCO MAIS


       Vou usar a palavra cultura como um conjunto de subjetividades, dúvidas e convicções ideológicas que modelam o pensamento e a ação de um grupo humano. Vou completar a minha definição com a do Dicionário Aurélio: “... complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade”.   
        Sabemos que um de nossos instintos básicos é o de conservação da vida individual. Pois bem, a força da cultura é tão poderosa que se sobrepõe a este instinto como no caso dos homens-bomba ou dos monges orientais que se imolam como forma de protesto e combate. Temos aqui uma complicação na qual não entrarei por questão de foco e de tempo. Só farei uma referência: não podemos deixar de considerar que existe um instinto derivado do instinto de conservação da espécie: o da imortalização da cultura de um grupo.
        Nos mamíferos a sobrevivência da espécie depende também de instintos: um deles é o instinto maternal. Se não houvesse este instinto dificilmente os filhotes sobreviveriam. (Estou usando instinto na 2ª  acepção dada pelo Dicionário Aurélio: “Forças de origem biológica inerentes aos homens e animais superiores, e que atuam, em geral, de modo inconsciente, mas com finalidade precisa, e independentemente de qualquer aprendizado: instinto gregário, instinto sexual, instinto maternal”. Sem dúvida poderíamos também usar as expressões instinto de conservação individual e de conservação da espécie. Não vou entrar aqui na questão da pulsão x instinto, pois esta é uma longa e difícil querela que não cabe neste trabalho).
Eu dizia que se não houvesse o instinto maternal, dificilmente os filhotes sobreviveriam em número suficiente para que a espécie continuasse a existir. No entanto, houve épocas na história da humanidade em que os bebês e as crianças eram negligenciados. Isto mostra o poder da cultura que interfere até numa herança genética básica que é o cuidado pessoal dado aos rebentos pela genitora.
        Há um fator que diferencia o bicho-homem dos outros bichos. O desenvolvimento do lobo pré-frontal provoca um rearranjo dos circuitos cerebrais, permitindo o uso da palavra dentro de uma estrutura linguística, possibilitando o pensamento racional, a fixação mnêmica dos pensamentos e acontecimentos, a possibilidade de escolhas conscientes que levem em conta o contexto estrutural e temporal.
        Por isso o homem, muito mais que outros mamíferos, é um ser de cultura. A maneira de criar os filhos é parte da cultura. Erich Fromm em seu livro “Infância e Sociedade” nos mostra que a criança é criada e educada para se tornar um adulto adaptado à cultura do grupo. É o que nos diz também Margaret Mead em seu livro “Sexo e Temperamento”. Ela estuda três culturas tribais de Nova Guiné. Destas interessa-nos duas: a Arapesh e a Mundugumor pelo extremo contraste que apresentam. Na sociedade arapesh encontramos uma cultura maternal de paz, de confiança, de solidariedade, de mansidão. Eles são “cooperativos, não agressivos, suscetíveis às necessidades e exigências alheias” (p.267 – “Sexo e Temperamento” de Margaret Mead). É uma sociedade que tenta excluir de seu meio a agressividade. Já os mundugumor cultivam a agressividade, a violência, a desconfiança, a rivalidade, a hostilidade com os membros do mesmo sexo, o extremo egoísmo e desumanidade, “com um mínimo de aspectos carinhosos e maternais em sua personalidade”(ibid, p.268) É uma sociedade que tenta excluir a brandura de seu meio. Estes protótipos de personalidade implicam, nos Arapesh, uma criação em que os bebês e as crianças são cercados de atenção e carinho. Nas palavras de Margaret Mead homens e mulheres “unem-se numa façanha comum, que é primordialmente maternal, nutritiva e orientada para fora do eu, em direção às necessidades da geração seguinte”(IBID, p.41). Já “o menino Mundugumor nasce em um mundo hostil, mundo onde a maioria dos membros de seu próprio sexo serão seus inimigos, onde seu melhor instrumento para o êxito deve ser a capacidade para a violência...”. Eles tratam seus bebês e crianças de uma forma não carinhosa, com certo descaso, apenas atendendo as suas necessidades físicas, e às vezes nem isto.
Eu me estendi na apresentação destas duas sociedades porque elas nos facilitam falar de violência e ambiente.
        Na tribo Mundugumor a violência é culturalmente cultivada. Chamarei a esta violência de culturalmente estruturante e destina-se a incluir o ser humano na cultura de seu grupo. O homem não violento não tem lugar na sociedade mundugomor. Ou ele abandona a aldeia, ou mantém-se revoltado por toda a vida, ou se deprime. Algumas pessoas muito capazes podem conseguir um ajuste que lhes permita uma adaptação precária. Poderíamos dizer que aqueles que têm um forte componente genético resistem à violência primária da criação/educação.
Os Mundugumor são um exemplo exagerado do que acontece nas culturas que conhecemos. Todas elas apresentam uma violência culturalmente estruturante, uma violência primária, para a qual cabe bem o termo “educação”. Ela é socialmente aceita como necessária. É o caso da educação no século 19 em que as crianças em crescimento eram moldadas por castigos violentos, tornando-se elas próprias violentas.
A violência secundária seria aquela não prescrita pela cultura e exercida por uma pessoa necessitada de descarregar a sua agressividade. Por vezes a violência primária e a secundária coincidem. Pensemos em um homem do século 19. Ele podia castigar os filhos por um senso de dever, sem tirar nenhum prazer disto a não ser o de estar bem educando seus filhos. Mas também podia ser um veículo conveniente para sua necessidade de descarregar raivas acumuladas. Provavelmente este segundo seria mais agressivo do que o primeiro, mas não se poderia acusá-lo de maus tratos. É o caso dos exorcismos na Idade Média que por vezes matava o exorcizado, ou o do escritor Oscar Wilde preso por homossexualismo, ou os homens do século passado que castigavam cruelmente seus filhos.
Para continuar o artigo necessito esclarecer de que violência pretendo estar falando. Encontrei no Dicionário Mirador duas definições, uma delas jurídica, que me convêm. Começarei pela jurídica: “Constrangimento, físico ou moral, exercido sobre alguma pessoa, para obrigá-la a submeter-se à vontade de outrem: coação”. A outra definição: “Qualquer força empregada contra a vontade, liberdade ou resistência de pessoa ou coisa”. Ora, esta definição jurídica faz-nos enxergar um cruzamento entre antropologia e psicanálise através do conceito de violência primária de Piera Aulagnier. Uma citação retirada de uma resenha do livro “A violência da interpretação” de Piera Aulagnier escrita por Bruno Cancio nos orientará:
[“Dos conceptos de importancia establecidos en la obra son los de violencia primaria y secundaria.] Por violencia primaria se entiende "...lo que en un campo psíquico se impone desde el exterior a expensas de una primera violación de un espacio y de una actividad que obedece a leyes heterogéneas al yo..."(3). Se trata de una acción necesaria y que contribuirá a la futura constitución del yo. A través de ésta se le impone a la psique ajena un pensamiento, acción o elección producidos por el deseo de quien lo impone, pero que da respuesta a una necesidad a quien le es impuesto. De esta forma, se consigue entrelazar deseo de uno y necesidad del otro, dando lugar a la demanda. El deseo de quien ejerce la violencia pasará, a partir de allí, a ser demandado por quien la padece.
Por otro lado, violencia secundaria hace referencia a "un exceso por lo general perjudicial y nunca necesario para el funcionamiento del Yo"(4) y que se apoya en su precedente, la violencia primaria. En este caso se trata de una violencia ejercida contra el yo, ya sea por un conflicto con otro "yo" o con un discurso social que intenta oponerse a toda suerte de cambios que pudieran producirse en los modelos por él previamente instituídos”.
Winnicott não concorda com uma criação/educação impositiva como Aulagnier propõe. Um exemplo esclarecedor nós o encontramos no artigo “Moral e Educação”. Tentando sintetizar um artigo longo e complexo, consigo dizer o seguinte: Winnicott está respondendo a uma palestra anterior à sua onde foi citada a seguinte fala de um reitor para uma criança: “Você acreditará no Espirito Santo às 5 horas desta tarde ou a espancarei até que o faça”. Os exemplos extremos servem para deixar claro uma orientação paradigmática que neste caso é um paradigma autoritário não aceito por Winnicott. Para ele o autoritarismo é uma invasão/intrusão no self do outro, tornando-o submisso e dependente. Neste artigo ele, confronta o autoritarismo adoecedor que tenta impor conceitos exteriores à experiência do outro, com uma experiência interior, uma “crença em” que resulta de uma convivência suficientemente boa com os pais.  Quando o horizonte se abre para além dos pais, a criança que está crescendo e que precisa algo maior em que acreditar, é hora dos pais, da escola, da sociedade apresentarem as diversas possibilidades de crenças existentes, respeitando sua eventual busca por outra crença que não aquelas que lhe foram mostradas. A imposição é uma invasão do psiquismo do outro, uma tentativa de dominá-lo, colonizá-lo,  tornando-o revoltado, conformado e violento em vários graus. Mesmo os conformados --- que engolem os traumas advindos das invasões e os acumulam não sabendo de onde veem, pois a relação dominador-dominado é frequentemente inconsciente e aceita como algo natural --- podem ter uma explosão espontânea de ódio indiscriminado geralmente despertada por um fato insignificante.
Ao invés de tentar impingir uma crença dever-se-ia, segundo Winnicott, aceitar a criatividade natural do ser humano. Criatividade tem dois sentidos: um primeiro que todos nós conhecemos e um winnicottiano que é um paradoxo: criamos o que já existe. Não é preciso forçar a realidade para dentro da cabeça das pessoas, mas sim cuidar para que a criatividade de cada um encontre a sua realidade que é um arranjo pessoal do subjetivamente concebido e objetivamente percebido.   
Desenvolverei um pouco mais a ideia de criatividade winnicottiana. O ser humano cria o que já existe. Seu exemplo mor é o bebê que ainda não teve a primeira mamada e que ao sentir fome procura algo que termine com o seu anseio. Este algo é um esboço de seio que ele virá a conhecer melhor quanto mais com ele se relacionar. A vivência do bebê é de que foi ele quem criou o seio desde que o seio apareça na hora da fome. Da mesma maneira a função da sociedade é apresentar diversas alternativas para escolha aceitando a contribuição de novas opções e não impor, seja por que meio for, suas crenças. Mesmo porque o ser humano tem um impulso inerente de pertencimento e precisará escolher um gancho na cultura para exercer sua criatividade. A imposição, o conformismo e a revolta são combustíveis para a violência. Precisamos deixar para trás tanto o paradigma autoritário quanto o paradigma permissivo e aperfeiçoar um paradigma ecológico/poroso/humanitário/holístico.
Ao que parece já nos adentramos firmemente na psicanálise de inspiração predominantemente winnicottiana. Sendo eu, antes de tudo, um psicanalista, esta é a melhor contribuição que posso dar. É claro que os fatores que levam à violência são inúmeros e é preciso a colaboração de muitas disciplinas para um maior entendimento deste fenômeno que parece estar se intensificando tanto no nível macro (guerra, terrorismo, tráfico, repressão violenta, etc.), no micro (assaltos, furtos, roubos, mortes, balas perdidas, violência doméstica, violências discriminatórias, etc.) e no nano (dinâmicas bi e plurisubjetivas). Não podemos esquecer os fatores psicossociais como, por exemplo, as consequências psíquicas de um sentimento de exclusão das benesses dos mais afortunados que pode levar a ações violentas, a glamorização dos traficantes e especialmente dos chefes do tráfico que se tornam figuras fortes de identificação para uma parcela das crianças e adolescentes das comunidades que eram chamadas de favelas. O que também vemos são  jovens das classes médias altas exercendo violência através de roubos, ataques a populações marginalizadas (incendiar índios, atacar mendigos, atacar homossexuais, etc.). Podemos compreender o comportamento violento dos que se sentem inferiorizados, excluídos, injustiçados e que necessitam de figuras fortes de identificação e de uma cultura e ética própria. Mas, e os jovens da classe média alta que têm acesso ao conforto, diversão e que estão up-to-date com as tecnologias emergentes? Aqui é onde melhor a psicanálise pode dar a sua colaboração.
O ritmo atual de vida faz com que tanto o pai quanto a mãe fiquem, por muito tempo, ausentes do lar. Com isto a assistência afetiva aos filhos sofre danos. Isto é especialmente grave para os infantes, pois eles necessitam de cuidados maiores. Segundo Winnicott para que a criatura humana crie uma base psicossomática sólida necessita de um tempo de fusão com a mãe à qual ele deu o nome de dependência absoluta, seguida de um outro período que denominou de dependência relativa. A primeira se caracteriza pelo imediato atendimento pela mãe ou figura substituta das necessidades físicas e psicológicas do bebê. Para isso a mãe deverá estar em um estado de “preocupação materna primária” na qual ela se encontra hiperatenta e hipersensível em relação ao bebê de tal maneira que possa atendê-lo imediatamente ou até mesmo prever o desconforto do filho. Na dependência relativa não é mais necessário que a mãe esteja em estado de preocupação materna primária, pois é uma fase em que o bebê, para se diferenciar da mãe, sofrerá frustrações (desilusões). De qualquer maneira, embora em nível diferente, a mãe deverá continuar sensível e afinada com seu rebento, especialmente para certos comportamentos. Um dos mais relevantes é a conduta de aproximação e afastamento da mãe. A mãe sensível e sem grandes problemas em relação à oscilação do bebê entre dependência e independência, aceitará de bom grado tanto o seu afastamento quanto o seu retorno à segurança do colo materno. Para que essa dinâmica funcione bem é necessário não só que a mãe esteja presente, mas que não seja solicitada pelo trabalho profissional do qual se afastou, nem esteja preocupada  com a contabilidade da família. Este é um item problemático. Não só a vida atual envolve a mãe, deixando-a preocupada e, portanto, afetivamente menos disponível para o bebê do ponto de vista da sensibilidade porosa, mas também o hedonismo característico de nossa cultura faz com que a mãe se separe do bebê quando ele ainda não está preparado para isto. Sem falar das ausências que acontecem por conta do trabalho executivo ou de outro tipo.
Na área da criminalidade Winnicott também dá a sua contribuição. Mais que uma contribuição é uma revolução, pois ele ao procurar, nas crianças, as origens dos atos antissociais percebe que estes estão além da agressão: são pedidos de socorro e, no caso de roubos, uma apropriação simbólica de uma mãe que o está abandonando. Para entender melhor esta dinâmica vou recorrer a dois conceitos winnicottianos relacionados entre si: privação e deprivação (anglicismo derivado da palavra deprivation). O atendimento insuficiente às necessidades do bebê na fase de dependência absoluta ---- quando o ambiente ainda não se distingue do si-mesmo, só existindo um bebê que é o próprio mundo ---- facilita o ingresso no delírio e na psicose. Ele foi privado de um ambiente suficientemente bom, mas não sabe disso por não possuir ainda um eu distinto do não-eu. Porém, se ele teve a experiência de ser bem cuidado na fase de fusão, sentir-se-á lesado se na fase de dependência relativa os pais não forem suficientemente presentes e sensíveis. Ele se perceberá deprivado, pois diferentemente do privado, perdeu o que já havia tido. Sentindo-se negligenciado pelos pais passa a aborrecê-los através de birras, desafios, e também de pequenos atos delituosos como roubar, maltratar pequenos animais, etc. Estes atos são gestos de esperança de recuperação dos pais, sua maneira de chamar a atenção, o seu pedido de socorro. Exp.: (p.407 – Da pediatria à psicanálise – Tendência antissocial)   Winnicott foi procurado por uma mãe cujo filho mais velho tinha a compulsão de roubar que “estava se transformando em algo bastante sério. Ele estava roubando muito, tanto em lojas quanto em casa”. Winnicott sugeriu: “Por que você não lhe diz que sabe que quando ele rouba, não são realmente aquelas coisas que ele quer, e sim alguma outra coisa à qual ele acha que tem direito? Que é como se ele estivesse fazendo uma reclamação a seu pai e sua mãe, por sentir a falta do seu amor?.....Algum tempo depois recebi uma carta contando-me que ela havia feito o que sugeri. Dizia ela: ‘Eu lhe disse que o que ele realmente queria, quando roubava dinheiro e comida e outras coisas, era sua mãe. E devo dizer que na verdade eu não esperava que ele compreendesse, mas ele pareceu compreender. Eu lhe perguntei se ele achava que nós não o amávamos por ele ser às vezes tão difícil, e ele disse imediatamente que na sua opinião nós não o amávamos muito..... Então eu lhe disse que ele nunca, nunca deveria duvidar disso de novo, e se em algum momento ele tivesse alguma dúvida era só me lembrar que eu lhe diria de novo..... De modo que tenho feito muito mais demonstrações, a fim de evitar que ele venha a duvidar outra vez. E até este momento não houve um único roubo’. Agora oito meses depois, é possível relatar que não houve mais roubos e que o relacionamento entre o menino e a sua família melhorou muito”. (Ibid, p.407/8). Se a tendência antissocial não for tratada na fase de crescimento, tenderá, com o passar dos anos, a se tornar uma psicopatia.       
Uma criança com o eu inflado e sem limites por ação/omissão dos pais não sairá da situação de “Sua Majestade, o Bebê”. O mundo lhe deverá obediência e reverência. Nada poderá se interpor no seu caminho. Todos seus desejos terão de ser atendidos. Uma cabeça dessas acaba tomando o caminho da agressividade e violência. Isso se torna ainda mais problemático quando a mãe necessitada de simbiose não consegue colocar limites para o filho adolescente ou adulto.
Há outras condições psicológicas que facilitam o aparecimento da violência. A intolerância à frustração, as fantasias persecutórias inconscientes, a excessiva competitividade, a autoestima baixa, dificuldades na transição da dependência absoluta à dependência relativa.
HANNA ARENDT E A BANALIDADE DO MAL
Quando foi designada para a cobertura do julgamento de Adolf Eichman --- um criminoso de guerra nazista, encarregado da organização e envio de prisioneiros a campos de extermínio --- esperava encontrar um monstro e se surpreendeu ao encontrar um homem comum como muitos outros. “O problema de Eichman era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais” (Arendt, 1999, p.299 do livro “Eichmann em Jerusalém). Adolf Eichmann era um eficiente e dedicado burocrata, cumpridor fiel dos seus deveres e leal aos seus superiores hierárquicos, obedecendo diligentemente às suas ordens. Era um bom pai de família, um filho exemplar e um irmão dedicado. Quanto ao assassinato eficiente de milhões de pessoas ele apenas, burocraticamente, cumpria ordens superiores como todo bom cidadão, em sua opinião, deveria fazer. Mas não teria Eichmann consciência da monstruosidade de sua ação? Hanna Arendt estava convencida de que sim, pois Eichmann declarou várias vezes que estava com a consciência tranquila, já que cumprira seu dever e sabia que sua ação era moralmente correta. Palavras de Arendt: “Sua consciência [de Eichman] ficou efetivamente tranquila quando ele viu o zelo e o empenho com que a ‘boa sociedade’ de todas as partes reagia ao que ele fazia.  Ele não precisava ‘cerrar os ouvidos para a voz da consciência’, como diz o preceito, não porque ele não tivesse nenhuma consciência, mas porque sua consciência falava com a ‘voz respeitável’, com a voz da sociedade respeitável à sua volta” (Ibid, p.143). O conceito banalidade do mal expressa o fato do mal ser exercido não só por psicopatas e degenerados, mas também por homens comuns como qualquer um de nós. Todas as formas sociais de totalitarismo impõem uma obediência cega e servil a seus cidadãos. Difícil escapar de tal mandato pois a punição que se segue é terrível.
Hanna Arendt fala de alguns fatores que se encontram na gênese da banalidade do mal. Entre eles estão: a superficialidade das pessoas, o utilitarismo nas relações humanas ---- que torna as pessoas supérfluas e descartáveis (p. 115) ----, o servilismo como fator supostamente moral da obediência.
Pois é o servilismo e a obediência que quero examinar, sob o ponto de vista da psicologia social e da psicologia psicanalítica.
De alguns anos para cá, experimentos sobre obediência cega a uma figura de autoridade sancionada pelo social têm sido feitos. O esquema geral destes experimentações é a seguinte: um grupo de pessoas é dividido em dois. A um deles cabe fazer uma tarefa. Ao outro cabe punir as pessoas do primeiro grupo se a tarefa não é bem realizada. Ao condutor da experiência cabe estabelecer a intensidade do castigo que é passar uma corrente elétrica pelo corpo dos que erraram. Na verdade o castigo é uma simulação mas o grupo castigador não sabe disto. Para este existe realmente uma corrente elétrica passando pelo corpo das pessoas do outro grupo. Pois bem, se o mentor da experiência ordena que uma corrente máxima seja acionada, ela o será. A obediência é automática não sendo levado em consideração o sofrimento que possa causar ou mesmo o perigo que representa.
Existe pois em nossa sociedade ocidental a forte tendência em obedecer a autoridade socialmente constituída mesmo que resulte em um ato desumano. Sugiro que isto se deva a uma educação autoritária onde a criança é ensinada a obedecer sem refletir. Na psicanálise esta situação se replica, como vimos anteriormente, no conceito de violência primária de Piera Aulagnier assim como vimos que a concepção de desenvolvimento psíquico e mental de Winnicott privilegia a criatividade: os objetos da cultura são apresentados e a criatividade os inclui no espaço transicional onde o subjetivo improvisa um dueto com o objetivo. Não sei se é correto dizer que essa concepção é nova e revolucionária e que vai ao âmago da questão colonização versus independência. Acredito que por vários séculos a criação/educação do ser humano em crescimento foi dominada pela imposição, dificultando o pensamento livre, situação que ainda perdura. O ser humano ao ser criado/educado tendo como insinuância principal a criatividade, podendo então construir o mundo mediante sua própria ação está mais apto a resistir às convenções e mandatos da cultura e de suas figuras representativas, julgando por si próprio o que mais se coaduna com seus pensamentos e sentimentos. Já o ser humano criado através de atos predominantemente impositivos tenderá a aceitar a orientação da cultura e de seus representantes de uma forma submissa, obedecendo automaticamente às ordens, por mais desumanas que sejam.
Tenho a esperança de que usando a criatividade como guia, teremos uma integração ética do homem com a natureza e com seu semelhante/diferente que, narcisicamente (conforme meu artigo “Narcisismo secundário inclusivo”), passarão a fazer parte dele, diminuindo a violência no mundo.
                                                               Outubro/2014
                                                               Nahman Armony
     


               






DIFERENÇAS DE MENTALIDADE DIFICULTAM ENTENDIMENTO



Assisti recentemente ao filme “Quando um homem ama uma mulher” em exibição nos canais por assinatura. Uma película reveladora de sutilezas de comportamento relacionadas a diferentes mentalidades. Enquanto cada membro do casal está fechado em seu mundo, sem poder perceber o mundo do outro, as tenuidades da fala e da expressão corporal podem ser interpretadas como desrespeito.
O filme fala de um amor sólido, substantivo e perseverante; tão perseverante que resistiu a profundas diferenças de mentalidade que quase inviabilizaram o casamento. A união só pôde retomar sua vitalidade quando brechas no psiquismo permitiram uma compreensão mútua.
Se ficarmos atentos não só às linhas, mas também às entrelinhas do filme dele tiraremos bom proveito. Desde o início, um férreo liame uniu Alice e Michael.  Havia muito amor circulando entre os dois e, mais tarde, entre os quatro, quando um par de filhos veio se acrescentar à família. Uma tragédia porém estava à espreita. Alice retorna ao alcoolismo, afasta-se do lar e a ele mais tarde retorna tentando se readaptar à vida familiar ao mesmo tempo em que freqüenta os “alcoólatras anônimos”. Aqui já se coloca uma interrogação. Se a família era tão feliz como pôde o alcoolismo se insinuar nessa liga amorosa? Neste ponto o filme nos fornece pistas para começarmos a entender como um casal que se ama, que ama os filhos e que quer preservar o casamento pode ser corroído a partir de diferenças de mentalidade. Uma dica da dinâmica do casal nos é dada quando Alice aponta a satisfação que o marido tira de se sentir superior a uma mulher fraca e problemática. Está aí colocada uma situação de inferioridade, que também aparece no trato com os filhos: o pai aparece interferindo na relação da mãe com as crianças, tirando sua autoridade e deixando-a em segundo plano. Para Michael esta é uma situação natural. Ele é o chefe e orientador da vida da família, o dono do saber; a esposa deve aceitar sua superioridade e seguir seus preceitos. Um outro aspecto menos evidente que aparece é a excessiva objetividade do marido revelada na frase “eu só posso consertar se souber o defeito” quando tenta ajudá-la. O alcoolismo da esposa é um problema a ser resolvido, e como problema terá certamente uma solução desde que se siga a direção certa. Essa direção certa e única que desconsidera as complexidades do psiquismo é ele quem conhece. O fato dela não seguir seus preceitos, ou pior, ao segui-los fracassar, faz com que ele se sinta desprestigiado, diminuído na sua condição de um mentor de família que deve resolver todos os problemas.
         Poderia parecer que o amor do casal terminara. Pois não é esse o caso. Ao contrário, havia um amor tão sólido que ao final eles conseguem se reaproximar reavivando o afeto que surdamente habitava seus corações. Isto exigiu um grande esforço dos dois. Dele, no sentido de engolir seu orgulho de macho e passar a freqüentar um grupo de parentes de alcoólatras. O impacto de uma outra mentalidade masculina fez com que ele abandonasse de supetão a primeira reunião. Não é fácil promover modificações em um modo de ser que desde muito cedo se foi formando e terminou por consolidar-se. Há uma espécie de abalo, de terremoto na personalidade. Porém, o desejo de poder viver e amar a escolhida fê-lo persistir. Uma outra mentalidade foi-se formando, mentalidade na qual cabia não ser ele o dono do saber, a obrigação de tudo resolver, e, principalmente, a percepção que não bastava ter um plano objetivo e querer seguir este plano para conseguir resultados. Começou a perceber que a mente humana é extremamente complexa e que seus caminhos são tortuosos, inesperados e oscilantes. E ela pôde entender que a incompreensão do marido não vinha da falta de amor, mas de uma educação machista. Um recomeço tornou-se possível.

                                                                        Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS.