VIDA E MORTE

                                    "Oh Deus, permita que eu esteja vivo no momento de minha morte"                                                                                                              D.W.Winnicott

                                                                                                                                                 Que seja a morte um hino à vida
O derradeiro estertor, um grito de alegria
Encantado o último olhar sobre a terra                   


Que os seres vibrem nos olhos do moribundo
E que toda natureza estremeça
No supremo clarão do herói que se retira
Rumo a um desconhecido
A um nada
A um Sol Negro
Que brilha no infinito da Grande Noite.


                                                                                  Nahman  Armony

                                                                                  

CANTILENA


                 
             Nahman Armony
                                                       
                          Oh sereia de canto constante
                          O que queres de um pobre mortal?
                          Oh sereia de voz cariciante
                          De que é feito teu canto fatal? 

                          Oh sereia de oceanos distantes
                          Que um dia se pôs a cismar
                          E na cisma chorou delirante
                          O delírio de um sonho de mar

                          Oh sereia de voz penetrante
                          O que queres no mundo encontrar
                          Por que matas tu quedas amante
                          Que tesouros pretendes achar?

                          O que veem teus olhos brilhantes
                          Por que tiras com jeito de dar?
                          Oh sereia me deixa feirante
                          Oh sereia me deixa ficar

                          Oh sereia de canto constante
                          Que seduz com o som de ninar
                          De onde vens, o que queres da terra
                          Se tu és criatura do mar?

                          Oh sereia de embalo dolente
                          Por favor, eu preciso ficar
                          Leve a luz de seus olhos poentes
                          E procure outro mundo encantar

                         Oh serei miragem atenta
                         Que intenta no mundo existir
                         O que és, um reflexo vazio
                         Desvario a querer persistir?

                        Se tu crês no teu mundo encantado
                        Não pretendas pra lá me arrastar
                        Já conheço a dor do exilado
                        Já não posso esse sonho sonhar

                        Oh sereia de mundos distantes
                        Eu bem sei que tu queres doar
                        Teu delírio, ilusão obsedante
                        Oh sereia, adeus, nunca mais.

                                                       ,

                                                                  

SONHO E CRIATIVIDADE – ASSOCIAÇÕES

                                                                                                        Nahman Armony

Luiz Ricardo ao me convidar para dar esta palestra, explicou que um dos motivos da escolha devia-se às minhas condições de artista e psicanalista. Não sei se é o que ele pretendia, mas essa argumentação levou-me a pensar em uma abordagem do tema a partir de minhas experiências nas quais minha pessoa estaria implicada. Como foi que inventei meus versos, compus minhas músicas e escrevi meus artigos? Em outras palavras: como foi e é o meu processo criativo? E como o sonho entra nesta seara?

Mas antes de entrar neste terreno mais pessoal, quando darei à palavra criatividade o significado habitual de invenção de objetos e ideias originais e inéditas, falarei do novo e singular conceito de criatividade de Winnicott e de suas relações com o sonho. Pensemos em primeiro lugar em um bebê em estado de dependência absoluta. Ou melhor, em um bebê que ainda não tenha tido sua primeira mamada. Este bebê anseia por se alimentar e desesperadamente vive o aparecimento de algo que faça desaparecer seu sofrimento. Este algo é um rudimento indistinto daquilo que chamamos de seio que com a repetida experiência de amamentação ganhará uma forma concreta com detalhes singulares. Mas o importante é o conceito criado por Winnicott. O bebê cria o que já existe. Em outras palavras: o seio pulsional ganha existência material quando a mãe o acode com o seu seio concreto produzindo-se no bebê a vivência de que o seio foi por ele criado. Estou aqui falando do momento de ilusão, uma fundamental vivência que torna o mundo parte do corpopsiquismo do bebê. Estamos ainda no âmbito da criatividade primária, antes da criação do objeto transicional que nos remeterá à criatividade propriamente dita. O bebê, já agora em regime de dependência relativa, inventa com ou sem o auxílio da mãe, um objeto que é ao mesmo tempo um sonho da presença da mãe (objeto subjetivamente concebido) e uma peça material objetivamente percebida. O bebê cria com o seu sonho e com o seu discernimento um objeto paradoxal: ele é ao mesmo tempo onírico/ abstrato e concreto/material. Mas tudo isto já é sabido por todos nós. Eu simplesmente não quis deixar passar em branco um passo tão importante na história do pensamento psicanalítico até porque meus aspectos persecutórios entrariam em ação achando que o auditório poderia pensar que ignoro o novo sentido dado por Winnicott à palavra criatividade.
Mas agora vou falar de criatividade no sentido comum de criação de objetos e ideias previamente inexistentes.

Voltemos às perguntas acima: Como foi que inventei meus versos, compus minhas músicas e escrevi meus artigos? Em outras palavras: como foi e é o meu processo criativo? E como o sonho entra nesta seara?

Vou enfrentar estas perguntas por intermédio de alguns marcantes episódios pessoais. O mais próximo do par criatividade/sonho encontra-se em um período em que eu acordava de madrugada e furiosamente despejava uma poesia que brotava por si só. Era uma maneira de “por para fora” emoções muito fortes.  Isto aconteceu muitas vezes. Algumas das poesias eu não conseguia entender, como se fosse um sonho indecifrável. Só vim a entendê-las anos após. Outras eu compreendia de imediato, ou depois de um certo tempo e muitas vezes as modificava com a intenção de torná-las mais apolíneas. É irrefreável o pensamento de uma equivalência da poesia madrugueira a um sonho. Ao invés de uma sucessão de quadros oníricos próprias do sonhar espocava uma poesia repleta de imagens verbais que certamente tinha a mesma urdidura do sonho. O que me leva a pensar que uma das formas de elaboração da poesia é feita na região do sonho, mesmo que estejamos acordados. Em termos freudianos seria uma junção do processo primário com o secundário. Em termos winnicottianos seria uma criação do espaço transicional, um feliz encontro do subjetivamente concebido com a linguagem consensual (objetivamente manifestada).

Outra lembrança: eu tinha aproximadamente quatro anos e voltava para o Brasil, vindo de Israel, em um navio. Naquela noite um conjunto musical estava se apresentando. Subitamente, senti-me invadido pelo som de um violino que despertou em mim estranhas sensações das quais consigo hoje me lembrar como uma mescla de maravilhamento e incômodo, um incômodo que se aproximava da sensação de dilaceramento. Naquele momento decidi, sem me dar conta, ser violinista. Ao chegar ao Brasil martelei insistentemente nos ouvidos de meus pais (além de outros recursos) o meu desejo de estudar violino até finalmente vencer suas resistências. Eles acharam um professor de violino a quem faltava o dedo indicador da mão esquerda. Eu me atirei com entusiasmo ao estudo e realizei grandes progressos que espantaram meu professor e meus pais. Bem, de todo esse blá-blá-blá nostálgico e autoelogioso o que nos interessa aqui foi o sentimento que se apossou de mim ao ouvir o som do violino. Ou melhor dizendo, a invasão que sofri quando fui atingido pela música.  Desconfio que estamos diante daquilo que Kant chama de sublime: um espanto, um arrebatamento, um deslumbramento, um estranhamento, um temor diante de um fenômeno portentoso que nos transfigura, arrancando-nos do cotidiano banal e nos lançando para um além, em um confrangedor destino forasteiro. Posso dizer que somos transportados para uma “outra cena”, expressão freudiana para o sonho.

3º episódio – Quando meus filhos eram pequenos costumávamos passar as férias na Fazenda Ramon da cidade de São Lourenço. Havia um aeroporto desativado em frente à fazenda. Certa noite, estando eu muito inquieto, saí para caminhar pelo gramado deserto do aeroporto. Eu estava agitado e deparei-me com pássaros que se tornaram agressivos, grasnando e efetuando voos rasantes quando eu me aproximava de seus ninhos feitos na grama, onde estavam depositados seus ovos. Neste ambiente insólito, atemorizante, onírico, em que eu caminhava me aproximando e afastando dos ninhos com a correspondente reação dos pássaros, foi surgindo em minha mente uma poesia que falava de um SER massacrado, adoecido, aprisionado pelo mundo social e familiar, e defendendo-se com todos os recursos de uma devastação.  Na medida em que a poesia ia se fazendo minha aflição ia diminuindo até que me senti em condições de voltar ao meu alojamento onde imediatamente me pus a escrever o poema que não deve ter ficado muito diferente do que eu inventara no meu agitado caminhar.
Considero esta poesia um desabafo, uma espécie de grito primal transformado em imagens poéticas. 

Esta poesia que poderia ter sido um sonho --- pois vinda diretamente de minhas entranhas, encontrara sua expressão em palavras/imagens --- é um retrato da civilização na qual eu estava vivendo, um retrato de um Ser atormentado por essa civilização, usando de vários recursos para a sua sobrevivência psíquica. Onde fica nesta poesia/sonho o desejo freudiano? Certamente o poema exprime mais que desejo; expõe uma subjetividade social circulante, uma subjetividade pessoal e manifesta um quase desespero. Mas não é difícil daí deduzir um desejo de uma sociedade diferente. E ainda exprime o desejo de relações humanas mais compreensivas e amorosas.
Um último episódio: eu frequentava uma oficina de poesia sob a direção de uma excelente guia que nos dava a tarefa de compor em casa poesias de diversas modalidades. Frequentemente eu as produzia em longos passeios pelo Aterro do Flamengo. Lá eu encontrava um ambiente propício para juntar o intelecto com a imaginação e criar assim uma poesia. E lá me dei conta de que, se não tomasse cuidado, acabaria por escrever uma falsa poesia.  Deixarei que um poema então surgido transmita este caminhar na corda bamba do falso e do autêntico.

NO ATERRO DO FLAMENGO

I
Cosmopolita
Nos ventos lúdicos do Aterro do Flamengo
Afino a mente, respiro o mundo
Banho-me no horizonte, esplendor fecundo.


II
Ao longe
            Ao longe
                        Um barco a vela
                        Um latido de cachorro
                        Uma casinha de favela
            Ao longe
                        O Paraíso
III
Marginando
            Traçamos as bordas do Paraíso
                                   Não as ultrapasso
                        Para não perdê-lo

IV
Césio 87
            Amplos espaços do Aterro do Flamengo
            Coração aberto, desdobrado tapete
            Verde                                       Verde                     
                                  Vêde
            A paisagem cambiante das folhas
            O comentário alado dos pássaros
            O mar em brilhos de sinfonia
            O ousado arrepio de uma lufada mais fria
            E a tristeza da terra empurrada pelos homens 
                                                Para o esplendhorror do césio

Parêntesis – Por que césio 87? Li em alguns jornais do ano de 1987 que um garoto ou um grupo de pessoas, não me lembro bem, viram um objeto brilhante, de uma luminosidade inexcedível, e que provavelmente foi sentido como eu senti o som do violino: algo imaterial, impossível de ser agarrado. E aí aparece o desejo de segurar, de materializar o abstrato. Os meninos invadiram a propriedade em que estava o césio, apalparam e apertaram aquele pedaço de metal, sentiram a sua consistência material. Foram além da beleza imaterial e ficaram com câncer.

A metáfora aqui é o perigo que se corre ao ultrapassar o limite do inefável, tentando objetificar a formosura espiritual.  – Fecha parêntesis.
  
Quando cheguei ao Aterro predominava no meu espaço transicional o objetivamente percebido. O subjetivamente concebido quase não se manifestava. Por ação do acolhimento e aconchego da Natureza pude afrouxar a vigilância exercida pela Mente libertando em mim o subjetivamente concebido. Pude então sentir os sutis movimentos sensíveis de meu psiquismo.  Fui invadido por um clima interior onírico que transformou em beleza e sublimidade a banalidade dos objetos. A nota dissonante do poema, o césio, simboliza o desejo de controlar a feitura do poema através de uma Mente dissociada do psiquessoma, perdendo-se assim a subjetividade sensível; ao irromper o desejo-fantasia de Perfeição a ser patrocinada por uma Mente dissociada estava sendo estendida uma corda bamba no caminhar criativo. De um lado teríamos uma produção puramente mental a recusar a penetração dos “ventos lúdicos do Flamengo” com o receio de que o não controle racional produzisse uma obra imperfeita; de outro lado haveria o mergulho irrestrito na ambiência onírica com uma produção espontânea vinda da integração psique-soma-mente. Ultrapassado o perigo da intelectualização pude transformar meus sentimentos inefáveis em palavras, versos e estrofes.

Poesia existe em todos nós. Quanto mais não seja, ela aparece em forma de sonhos que com seus deslocamentos, condensações e figurações são formações poéticas. Mas o sonhar do sono está aprisionado na gaiola do adormecimento, mantendo-se à margem daquilo que chamamos de “luta pela vida”. Vivemos numa sociedade em que a ideia de “vencer na vida” prescreve objetividade, desconfiança, atenção, implacabilidade, impiedade. Inibe-se o subjetivamente concebido ficando o espaço transicional dominado pelo objetivamente percebido. A pessoa se endurece e não permite o exercício da porosidade, da empatia, da compreensão, de sentimentos amorosos. Não há clima para a arte. Este clima acontece quando a alma se abre para a beleza, para o sublime. Desaparece então a banalidade dos objetos. As árvores, o céu, o mar, os pássaros com seus gorjeios ganham um sentido onírico transcendental. Cada detalhe do ambiente ganha uma vida própria e o mundo se enriquece de subjetividade. É neste clima que a arte pode aparecer. A ideia de embate competitivo e de sobrevivência qualificada fica arquivada até segunda ordem.  O poeta entrega-se sem medo ao mais desvairado devaneio para daí produzir um feixe de energia que penetra nos meandros obscuros do psiquismo fazendo reviver a sensação da maravilhamento que o menino de 4 anos sentiu ao ouvir o som do violino. Estaremos diante de uma vivência onírica a partir da qual se pode realizar arte. O contacto com a natureza (as árvores, as aves, o céu e o mar do Aterro do Flamengo) nos ajuda a chegar a este estado acalmando o sentimento de competitividade e facilitando a emergência do subjetivamente concebido.

            Então o passo fundamental para a criatividade artística é a atenuação da objetificação, permitindo que o subjetivamente concebido crie uma atmosfera de sonho, envolvendo o artista em uma bruma onírica de onde a arte emergirá.


            Se eu me mirasse no exemplo de Winnicott, terminaria o artigo aqui. O que eu tinha a dizer já ficou dito nos exemplos e comentários. Deveria agora dar um maior espaço para a criatividade dos que me ouvem, permitindo que o subjetivamente concebido de cada um viesse em direção ao objetivamente exposto nesta pequena palestra, possibilitando o exercício da criação e recriação. Porém ainda é muito forte em mim o item cartesiano de ideias claras e distintas e vejo-me compelido a colocar um acréscimo esclarecedor. Sonhamos não só quando dormimos; mesmo acordados, quando nossa atenção se dirige para o objetivo, continuamos a sonhar, num incessante deslizar e cruzar de associações paratáxicas. Só que não nos damos conta desta atividade onírica. De seu cantinho escondido o onírico continua circulando; seu contínuo movimento tanto pode contribuir para os ajustes como para os desajustes na vida. E é no campo da criatividade onírica que se faz o principal trabalho analítico.