Nahman
Armony
Luiz Ricardo ao me convidar para dar esta palestra, explicou que
um dos motivos da escolha devia-se às minhas condições de artista e
psicanalista. Não sei se é o que ele pretendia, mas essa argumentação levou-me
a pensar em uma abordagem do tema a partir de minhas experiências nas quais
minha pessoa estaria implicada. Como foi que inventei meus versos, compus
minhas músicas e escrevi meus artigos? Em outras palavras: como foi e é o meu
processo criativo? E como o sonho entra nesta seara?
Mas antes de entrar neste terreno mais pessoal, quando darei
à palavra criatividade o significado habitual de invenção de objetos e ideias
originais e inéditas, falarei do novo e singular conceito de criatividade de
Winnicott e de suas relações com o sonho. Pensemos em primeiro lugar em um bebê
em estado de dependência absoluta. Ou melhor, em um bebê que ainda não tenha
tido sua primeira mamada. Este bebê anseia por se alimentar e desesperadamente vive
o aparecimento de algo que faça desaparecer seu sofrimento. Este algo é um rudimento
indistinto daquilo que chamamos de seio que com a repetida experiência de
amamentação ganhará uma forma concreta com detalhes singulares. Mas o
importante é o conceito criado por Winnicott. O bebê cria o que já existe. Em
outras palavras: o seio pulsional ganha existência material quando a mãe o
acode com o seu seio concreto produzindo-se no bebê a vivência de que o seio foi
por ele criado. Estou aqui falando do momento de ilusão, uma fundamental
vivência que torna o mundo parte do corpopsiquismo do bebê. Estamos ainda no
âmbito da criatividade primária, antes da criação do objeto transicional que
nos remeterá à criatividade propriamente dita. O bebê, já agora em regime de
dependência relativa, inventa com ou sem o auxílio da mãe, um objeto que é ao
mesmo tempo um sonho da presença da mãe (objeto subjetivamente concebido) e uma
peça material objetivamente percebida. O bebê cria com o seu sonho e com o seu
discernimento um objeto paradoxal: ele é ao mesmo tempo onírico/ abstrato e
concreto/material. Mas tudo isto já é sabido por todos nós. Eu simplesmente não
quis deixar passar em branco um passo tão importante na história do pensamento
psicanalítico até porque meus aspectos persecutórios entrariam em ação achando
que o auditório poderia pensar que ignoro o novo sentido dado por Winnicott à
palavra criatividade.
Mas agora vou falar de criatividade no sentido comum de
criação de objetos e ideias previamente inexistentes.
Voltemos às perguntas acima: Como foi que inventei meus
versos, compus minhas músicas e escrevi meus artigos? Em outras palavras: como
foi e é o meu processo criativo? E como o sonho entra nesta seara?
Vou enfrentar estas perguntas por intermédio de alguns marcantes
episódios pessoais. O mais próximo do par criatividade/sonho encontra-se em um
período em que eu acordava de madrugada e furiosamente despejava uma poesia que
brotava por si só. Era uma maneira de “por para fora” emoções muito fortes. Isto aconteceu muitas vezes. Algumas das
poesias eu não conseguia entender, como se fosse um sonho indecifrável. Só vim
a entendê-las anos após. Outras eu compreendia de imediato, ou depois de um
certo tempo e muitas vezes as modificava com a intenção de torná-las mais apolíneas.
É irrefreável o pensamento de uma equivalência da poesia madrugueira a um
sonho. Ao invés de uma sucessão de quadros oníricos próprias do sonhar espocava
uma poesia repleta de imagens verbais que certamente tinha a mesma urdidura do
sonho. O que me leva a pensar que uma das formas de elaboração da poesia é
feita na região do sonho, mesmo que estejamos acordados. Em termos freudianos
seria uma junção do processo primário com o secundário. Em termos
winnicottianos seria uma criação do espaço transicional, um feliz encontro do
subjetivamente concebido com a linguagem consensual (objetivamente manifestada).
Outra lembrança: eu tinha aproximadamente quatro anos e
voltava para o Brasil, vindo de Israel, em um navio. Naquela noite um conjunto
musical estava se apresentando. Subitamente, senti-me invadido pelo som de um
violino que despertou em mim estranhas sensações das quais consigo hoje me
lembrar como uma mescla de maravilhamento e incômodo, um incômodo que se
aproximava da sensação de dilaceramento. Naquele momento decidi, sem me dar
conta, ser violinista. Ao chegar ao Brasil martelei insistentemente nos ouvidos
de meus pais (além de outros recursos) o meu desejo de estudar violino até
finalmente vencer suas resistências. Eles acharam um professor de violino a
quem faltava o dedo indicador da mão esquerda. Eu me atirei com entusiasmo ao
estudo e realizei grandes progressos que espantaram meu professor e meus pais.
Bem, de todo esse blá-blá-blá nostálgico e autoelogioso o que nos interessa
aqui foi o sentimento que se apossou de mim ao ouvir o som do violino. Ou
melhor dizendo, a invasão que sofri quando fui atingido pela música. Desconfio que estamos diante daquilo que Kant
chama de sublime: um espanto, um arrebatamento, um deslumbramento, um
estranhamento, um temor diante de um fenômeno portentoso que nos transfigura, arrancando-nos
do cotidiano banal e nos lançando para um além, em um confrangedor destino forasteiro.
Posso dizer que somos transportados para uma “outra cena”, expressão freudiana
para o sonho.
3º episódio – Quando meus filhos eram pequenos costumávamos
passar as férias na Fazenda Ramon da cidade de São Lourenço. Havia um aeroporto
desativado em frente à fazenda. Certa noite, estando eu muito inquieto, saí
para caminhar pelo gramado deserto do aeroporto. Eu estava agitado e deparei-me
com pássaros que se tornaram agressivos, grasnando e efetuando voos rasantes quando
eu me aproximava de seus ninhos feitos na grama, onde estavam depositados seus
ovos. Neste ambiente insólito, atemorizante, onírico, em que eu caminhava me
aproximando e afastando dos ninhos com a correspondente reação dos pássaros,
foi surgindo em minha mente uma poesia que falava de um SER massacrado, adoecido,
aprisionado pelo mundo social e familiar, e defendendo-se com todos os recursos
de uma devastação. Na medida em que a
poesia ia se fazendo minha aflição ia diminuindo até que me senti em condições
de voltar ao meu alojamento onde imediatamente me pus a escrever o poema que
não deve ter ficado muito diferente do que eu inventara no meu agitado
caminhar.
Considero esta poesia um desabafo, uma espécie de grito
primal transformado em imagens poéticas.
Esta poesia que poderia ter sido um sonho --- pois vinda
diretamente de minhas entranhas, encontrara sua expressão em palavras/imagens
--- é um retrato da civilização na qual eu estava vivendo, um retrato de um Ser
atormentado por essa civilização, usando de vários recursos para a sua
sobrevivência psíquica. Onde fica nesta poesia/sonho o desejo freudiano?
Certamente o poema exprime mais que desejo; expõe uma subjetividade social
circulante, uma subjetividade pessoal e manifesta um quase desespero. Mas não é
difícil daí deduzir um desejo de uma sociedade diferente. E ainda exprime o
desejo de relações humanas mais compreensivas e amorosas.
Um último episódio: eu frequentava uma oficina de poesia sob
a direção de uma excelente guia que nos dava a tarefa de compor em casa poesias
de diversas modalidades. Frequentemente eu as produzia em longos passeios pelo
Aterro do Flamengo. Lá eu encontrava um ambiente propício para juntar o
intelecto com a imaginação e criar assim uma poesia. E lá me dei conta de que,
se não tomasse cuidado, acabaria por escrever uma falsa poesia. Deixarei que um poema então surgido transmita este
caminhar na corda bamba do falso e do autêntico.
NO ATERRO DO FLAMENGO
I
Cosmopolita
Nos ventos lúdicos do Aterro do Flamengo
Afino a mente, respiro o mundo
Banho-me no horizonte, esplendor fecundo.
II
Ao longe
Ao
longe
Um
barco a vela
Um
latido de cachorro
Uma
casinha de favela
Ao
longe
O
Paraíso
III
Marginando
Traçamos
as bordas do Paraíso
Não
as ultrapasso
Para
não perdê-lo
IV
Césio 87
Amplos
espaços do Aterro do Flamengo
Coração
aberto, desdobrado tapete
Verde Verde
Vêde
A
paisagem cambiante das folhas
O
comentário alado dos pássaros
O mar
em brilhos de sinfonia
O
ousado arrepio de uma lufada mais fria
E a
tristeza da terra empurrada pelos homens
Para
o esplendhorror do césio
Parêntesis – Por que césio 87? Li em alguns jornais do
ano de 1987 que um garoto ou um grupo de pessoas, não me lembro bem, viram um
objeto brilhante, de uma luminosidade inexcedível, e que provavelmente foi
sentido como eu senti o som do violino: algo imaterial, impossível de ser
agarrado. E aí aparece o desejo de segurar, de materializar o abstrato. Os
meninos invadiram a propriedade em que estava o césio, apalparam e apertaram aquele
pedaço de metal, sentiram a sua consistência material. Foram além da beleza
imaterial e ficaram com câncer.
A metáfora aqui é o perigo que se corre ao ultrapassar o
limite do inefável, tentando objetificar a formosura espiritual. – Fecha parêntesis.
Quando cheguei ao Aterro predominava no meu espaço
transicional o objetivamente percebido. O subjetivamente concebido quase não se
manifestava. Por ação do acolhimento e aconchego da Natureza pude afrouxar a
vigilância exercida pela Mente libertando em mim o subjetivamente concebido.
Pude então sentir os sutis movimentos sensíveis de meu psiquismo. Fui invadido por um clima interior onírico que
transformou em beleza e sublimidade a banalidade dos objetos. A nota dissonante
do poema, o césio, simboliza o desejo de controlar a feitura do poema através
de uma Mente dissociada do psiquessoma, perdendo-se assim a subjetividade
sensível; ao irromper o desejo-fantasia de Perfeição a ser patrocinada por uma
Mente dissociada estava sendo estendida uma corda bamba no caminhar criativo. De
um lado teríamos uma produção puramente mental a recusar a penetração dos
“ventos lúdicos do Flamengo” com o receio de que o não controle racional produzisse
uma obra imperfeita; de outro lado haveria o mergulho irrestrito na ambiência onírica
com uma produção espontânea vinda da integração psique-soma-mente. Ultrapassado
o perigo da intelectualização pude transformar meus sentimentos inefáveis em
palavras, versos e estrofes.
Poesia existe em todos nós. Quanto mais não seja, ela aparece
em forma de sonhos que com seus deslocamentos, condensações e figurações são
formações poéticas. Mas o sonhar do sono está aprisionado na gaiola do adormecimento,
mantendo-se à margem daquilo que chamamos de “luta pela vida”. Vivemos numa
sociedade em que a ideia de “vencer na vida” prescreve objetividade,
desconfiança, atenção, implacabilidade, impiedade. Inibe-se o subjetivamente
concebido ficando o espaço transicional dominado pelo objetivamente percebido.
A pessoa se endurece e não permite o exercício da porosidade, da empatia, da compreensão,
de sentimentos amorosos. Não há clima para a arte. Este clima acontece quando a
alma se abre para a beleza, para o sublime. Desaparece então a banalidade dos
objetos. As árvores, o céu, o mar, os pássaros com seus gorjeios ganham um
sentido onírico transcendental. Cada detalhe do ambiente ganha uma vida própria
e o mundo se enriquece de subjetividade. É neste clima que a arte pode
aparecer. A ideia de embate competitivo e de sobrevivência qualificada fica
arquivada até segunda ordem. O poeta
entrega-se sem medo ao mais desvairado devaneio para daí produzir um feixe de
energia que penetra nos meandros obscuros do psiquismo fazendo reviver a sensação
da maravilhamento que o menino de 4 anos sentiu ao ouvir o som do violino. Estaremos
diante de uma vivência onírica a partir da qual se pode realizar arte. O
contacto com a natureza (as árvores, as aves, o céu e o mar do Aterro do
Flamengo) nos ajuda a chegar a este estado acalmando o sentimento de competitividade
e facilitando a emergência do subjetivamente concebido.
Então o
passo fundamental para a criatividade artística é a atenuação da objetificação,
permitindo que o subjetivamente concebido crie uma atmosfera de sonho,
envolvendo o artista em uma bruma onírica de onde a arte emergirá.
Se eu me
mirasse no exemplo de Winnicott, terminaria o artigo aqui. O que eu tinha a
dizer já ficou dito nos exemplos e comentários. Deveria agora dar um maior
espaço para a criatividade dos que me ouvem, permitindo que o subjetivamente
concebido de cada um viesse em direção ao objetivamente exposto nesta pequena
palestra, possibilitando o exercício da criação e recriação. Porém ainda é
muito forte em mim o item cartesiano de ideias claras e distintas e vejo-me
compelido a colocar um acréscimo esclarecedor. Sonhamos não só quando dormimos;
mesmo acordados, quando nossa atenção se dirige para o objetivo, continuamos a
sonhar, num incessante deslizar e cruzar de associações paratáxicas. Só que não
nos damos conta desta atividade onírica. De seu cantinho escondido o onírico
continua circulando; seu contínuo movimento tanto pode contribuir para os
ajustes como para os desajustes na vida. E é no campo da criatividade onírica
que se faz o principal trabalho analítico.