POEMA DA SOBREVIVÊNCIA

          O espectro dos dias intermináveis a desfilar diante de meus                                                                            olhos fatigados
       Me anima
       A prosseguir minha marcha pesada
       Rumo ao país das somas cansadas de somarem-se a si mesmas
       Sem fim
       E sem finalidade.  

WINNICOTT - O HOMEM E SUA OBRA

A pessoa que nos procura para tratamento traz consigo uma certa forma de  pensar, agir, um certo modo de conhecer e de se relacionar  com o mundo. Essa maneira de ser é diferente do homem de gerações anteriores. Portanto, a maneira de realizar o tratamento atual certamente diferirá da anterior.
        Pode-se pensar que tendo mudado a subjetividade do homem em geral, certamente a dos terapeutas terá também mudado e que, portanto há um ajuste na terapia psicanalítica. Acontece que os especialistas, de uma maneira geral, se apegam às teorias, tendo receio de libertar-se delas e acabarem responsáveis por um fracasso indesejado e ameaçador. Enquanto a subjetividade da vida corre livre, a subjetividade dos especialistas, dos técnicos fica amarrada a teorias já ultrapassadas pelos acontecimentos.
        A libertação ou a modificação de teorias que estão sendo ultrapassadas pelos acontecimentos acaba ficando a cargo de alguns homens que poderíamos chamar de excepcionais, sendo que neste conceito de excepcional estão embutidas muitas variáveis: a história de vida, a liberdade interior, a conjunto da personalidade, as condições ambientais, o acaso, a força afirmativa, o grau de submissão à sociedade, a habilidade política e social, a autoestima, a paixão pela profissão, a filosofia de vida, os valores e ideais, e certamente outros aspectos que não percebo.
        Creio que todos concordam que um desses homens excepcionais foi Freud. Homem extremamente inteligente, honesto na sua busca da verdade, íntegro, idealista, político, ambicioso, versátil, culto, implacável, conseguiu implantar a psicanálise como uma nova disciplina, tornando-a universal e polivalente.
        Uma vez aberto o campo psicanalítico tornou-se mais fácil seu desbravamento. Mas, mesmo assim, foi necessário que houvesse homens de visão para fazer andar a psicanálise. Poderíamos pensar em vários, mas nos interessará um em especial que por uma razão ou outra, tornou-se hoje a referência principal de quem busca uma nova epistemologia para compreender o novo homem. Estou-me referindo a Winnicott.
        Sua história:  
                Nasceu em 1896 em Plymouth, Devon, Inglaterra, um baluarte da tradição metodista não conformista. Morreu em 1971. É, portanto um analista situado no século XX, um século em que as alterações epistemológicas ganharam uma força e consistência cada vez maiores. Era o único filho homem, com duas irmãs mais velhas, fazendo parte de uma família rica e influente. “Cresceu em um universo marcado pela presença das mulheres. A mãe, a avó, uma babá, uma governanta e as duas irmãs tiveram um papel maior na sua educação, enquanto o lugar do pai permanecia vago”. COMENTÁRIO: Daí viria a sua sensibilidade para as relações mãe-filho, e portanto, para a subjetividade feminina. Podemos, para melhor marcar este aspecto de sua subjetividade, confrontar sua capacidade de se colocar no papel de mãe, realizando o “holding”, o “handling” e a “apresentação de objeto” com uma fala de Freud citada por Doolittle: “É preciso que eu lhe diga (você foi franca comigo e eu serei com você), eu não gosto de ser a mãe na transferência. Isto me surpreende e choca um pouco”. Um exemplo de apresentação de objeto para uma analisanda minha. Após um ano e meio de terapia ela disse uma frase altamente significativa. “Fulano nunca erra; entre uma afirmativa de Fulano e uma afirmativa minha ele sempre estará certo”. Depois de dita a frase riu como que percebendo o significado dela. Mais adiante eu lhe falei de dois mundos, um mundo perfeito onde existe um rabi que está sempre certo e um mundo imperfeito onde qualquer um pode errar. Pode-se dizer que nesse momento eu lhe “apresentei” o mundo real, embora ela mesma já o tivesse feito pelo menos em parte. Mas mesmo a sua possibilidade de deixar escapar sua fantasia, sua maneira de organizar o seu psiquismo e o mundo tiveram a ver com minha atuação passada que procurava mostrar-lhe a realidade e a ilusão em relação a si mesma e ao mundo.
O pai era um bem-sucedido e admirado comerciante e prefeito da cidade e recebeu o título de cavaleiro em reconhecimento a seu trabalho cívico.  
UMA LEMBRANÇA DE WINNICOTT: “Meu pai tinha uma fé religiosa simples. Um dia, quando lhe fiz uma pergunta que poderia nos levar a uma discussão sem fim, ele se limitou a dizer: ‘Leia a Bíblia que você encontrará a resposta certa’. Foi assim que ele deixou  ---  graças a Deus  ----  que eu me virasse sozinho”. COMENTÁRIO: podemos associar a importância que esse episódio teve para Winnicott com a importância por ele dada ao encontro da verdade não por imposição externa, mas por um encontro com ela (a verdade pessoal) a partir dos recursos da própria pessoa. Isto aparece em vários escritos seus. Lembro-me particularmente do artigo “Moral e Educação” do livro “O ambiente e os processos de maturação”. Também associo com sua conduta na terapia (uma conduta, que, não podemos esquecer, apareceu mais tarde) de deixar o próprio analisando chegar à interpretação de si mesmo. Penso também na idéia de que a terapia é a superposição do brincar do analisando com o brincar do terapeuta, formulação essa que aponta para uma certa independência das produções do analista em relação às produções do analisando e vice-versa, o que não significa que não haja interações, mas não situações hierárquicas de autoridade e muito menos imposições.
OUTRO ACONTECIMENTO SIGNIFICATIVO: num acesso de raiva estragou a cabeça de uma boneca da irmã; o pai a reconstituiu e esse foi um acontecimento significativo que fez com que ele vivesse a experiência de reparação.  
Continuando a história: aos 14 anos (1910) passou a estudar em escola interna em Cambridge. Ao quebrar, no ano seguinte, a clavícula, decidiu ser médico. Apaixonou-se pelas ideias de Darwin e resolveu estudar biologia. Em seguida fez medicina. Na faculdade de medicina converteu-se ao anglicanismo. Através de  um livro de Oskar Pfister entrou em contato com textos psicanalíticos. 
Em 1923 tornou-se médico no Padington Green Children’s Hospital onde clinicou por 40 anos. Sua clínica evoluiu da pediatria tradicional para a psiquiatria infantil. Neste mesmo ano iniciou uma análise com James Strachey que durou 10 anos. Segundo a correspondência de seu analista com a esposa, Winnicott tinha problemas sexuais. Entre 1933  e 1938 fez sua segunda análise com Joan Riviere.
Casou-se com Alice uma pessoa com problemas psiquiátricos e que teve várias internações. Divorciou-se em 1949. Em 1951 casou-se com Clare Britton, uma assistente social com quem havia trabalhado na 2a. Guerra  Mundial tratando da instalação de crianças evacuadas das cidades britânicas bombardeadas. Lá supervisionou o tratamento de delinqüentes e desenvolveu suas idéias sobre “a tendência anti-social”. Foi presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise por dois períodos. Vários títulos e presidências. Palestras na BBC freqüentemente para pais.
Era um homem de grande coragem pessoal tendo se recusado a receber supervisão de M.Klein no tratamento de Erich, um de seus filhos. Ela era então um membro todo-poderoso da Sociedade Britânica de Psicanálise e ele estava em supervisão com ela (supervisão entre 1935 e 1941). Ele fez parte do grupo dos independentes, não ficando nem no grupo de M.Klein, nem no grupo de Anna Freud. Sua coragem e independência apareciam nas suas intervenções deste conflito e nas cartas que escrevia. Há uma carta dirigida à M.Klein em que ele fala da ditadura terminológica e conceitual por ela imposta e o quanto isso era perigoso para o progresso da psicanálise(carta de 17/11/1952 – p.30). Em outra carta que se tornou famosa, datada de 3/6/954, denuncia a hipocrisia das duas líderes da escola inglesa: “considero que é de importância vital para a Sociedade, que ambas destruam seus grupos em seu aspecto oficial. Não tenho razões para pensar que viverei mais tempo que as sras., mas ter que lidar com agrupamentos rígidos, que com a sua morte se tornariam automaticamente instituições de Estado, é uma perspectiva que me apavora”.  Ele próprio foi um autor original, mas nunca desejou ser líder de uma escola ou de um movimento. Preconizava a liberdade de pensamento para todos os psicanalistas. Ele próprio tomou liberdades técnicas, prolongando sessões (até 3 horas de sessão), usando o corpo como forma de comunicação e terapia, e realizando sessões psicanalíticas avulsas ou com longos intervalos, escrevendo cartas terapêuticas para clientes e mães de clientes. Segundo Elizabeth Roudinesco ele “não hesitava, na linhagem da herança ferencziana, em manter relações de amizade calorosa com seus pacientes, reencontrando sempre a criança neles e em si mesmo”.    
Tornou-se popular fazendo conferências radiofônicas na BBC entre 1939 e 1962.
Verberou Françoise Dolto por achá-la demasiadamente carismática e favorecedora de uma idolatria por parte dos alunos. “Independente sem ser solitário, não gostava de seitas, de discípulos, de imitadores. Foi por isso que, mostrando-se ao mesmo tempo transgressor em sua prática e rigoroso em sua doutrina, não hesitou em apoiar os rebeldes e os dissidentes  ---  principalmente Ronald Laing, um dos artífices da anti-psiquiatria”. 
Sofria de problemas cardíacos desde 1948. Morreu de ataque cardíaco em 1971. Sobre a morte dizia: “quero estar vivo no momento de minha morte”. Pontalis escreveu a seu respeito: “Talvez não haja nenhum sucessor, ninguém para se dizer seu seguidor. E é melhor assim. Com mestres, a psicanálise pode sobreviver durante algum tempo. Sem juízes nem mestres, ela tem a possibilidade de viver indefinidamente”. COMENTÁRIO: Não é o que vemos hoje em dias. Há psicanalistas tentando aprisioná-lo em uma metapsicologia winnicottiana, matando a essência de suas contribuições. Uma questão a ser discutida. Focos de poder institucionalizados tentam fazer isto.

Winnicott preocupou-se em manter-se sensível ao sofrimento e sentimentos dos seres humanos. Isso aparece mais claramente quando declina do convite para cuidar de leitos do Hospital Infantil. Carta de 5/9/967: “...o sofrimento de bebês e crianças pequenas numa ala de hospital, mesmo que muito bom, é algo terrível. Entrar na enfermaria me perturba muito. Se eu me tornar médico de pacientes internados terei de desenvolver a capacidade de não me deixar perturbar pelo sofrimento das crianças, do contrário não poderei ser um médico eficiente. Portanto, vou me concentrar em meu trabalho de ambulatório e em não me tornar insensível com a finalidade de ser eficiente”.   


Winnicott é contemporâneo quando diz que o ambiente deve prover condições para o aparecimento do verdadeiro self. A moralidade virá de um movimento espontâneo do ser humano em direção ao social, não há um modelo de comportamento a ser adotado, pois cada ser humano é singular, etc. Ele está na passagem epistemológica do modelo para a singularidade, do indivíduo como é entendido por Foucault, para o self como o próprio Winnicott conceitualiza.

Winnicott colocava-se como necessitado de um movimento de aceitação, de reconhecimento do ambiente. Neste sentido ele modifica a concepção moderna de auto-suficiência. É uma versão adulta da mãe que aceita o objeto subjetivo da criança tornando-o transicional pela sua aceitação. Winnicott reconhecia a importância de ser reconhecido, aceito pelo ambiente e teoriza sobre a falta de uma reação de M.Klein a um  trabalho que apresentara: Parte da carta de 17 de novembro de 1952 para M.Klein: “ o que eu queria na sexta-feira era sem dúvida que houvesse algum movimento de sua parte para com o gesto que fiz naquele trabalho. Trata-se de um gesto criativo e não posso estabelecer relacionamento algum através desse gesto se ninguém vier ao seu encontro. Acho que eu estava querendo algo que não tenho nenhum direito de esperar de seu grupo e que tem a natureza de um ato terapêutico, algo que não consegui em nenhuma de minhas duas longas análise, embora tenha conseguido muitas outras coisas” (p.XVIII e p.30). Em cima desse fragmento de carta muito se pode especular a respeito de Winnicott. Primeiro: sua teoria e sua vida estão intimamente entrelaçadas: ele está falando do gesto criativo, espontâneo que deverá ser aceito pelo que sobrou da personificação materna para passar a ter existência. Em outras palavras: o gesto criativo, isto é, o objeto subjetivo só se tornará um objeto pleno, um objeto transicional se a ele corresponder um objeto objetivo, que, no caso, é um objeto consensual. Enquanto apenas eu penso algo este pensamento é puramente subjetivo. É, como diz Winnicott, um objeto subjetivamente concebido. Para que, além de subjetivamente concebido ele seja também objetivamente percebido é preciso que ele exista na realidade externa, no caso, numa realidade consensual. M.Klein, com a força de seu prestígio tinha o poder de tornar consensual, e portanto objetivo, um pensamento; tinha o poder de introduzir pensamentos originais na cultura. É disso que Winnicott reclama, é sobre isto que ele teoriza. Segundo: existem e devem existir atos terapêuticos na vida. Ato terapêutico aqui é mais do que um ato limitado a um contexto de consultório; na verdade, todo ato deveria ser terapêutico, embora muitos sejam anti-terapêuticos. Winnicott rompe pois as barreiras do consultório, os limites de atuação. Terceiro: introduz a idéia de que na análise as produções subjetivas do analisando, os objetos subjetivamente concebidos deverão ser acolhidos pelo terapeuta, assim como a mãe acolhe os gestos criativos do seu filho, colocando no lugar que o bebê está criando o objeto objetivo de tal forma que o objeto subjetivamente concebido pelo bebê seja também objetivamente percebido. Quando um objeto é ao mesmo tempo subjetivamente concebido e objetivamente percebido teremos então um objeto transicional, nem objetivo, nem subjetivo, mas transicional. Tive um exemplo da importância clínica, isto é, da importância para a conduta do analista numa reunião científica da Associação Brasileira de Psicossomática. Um analista apresentou um caso clínico em que uma recém-casada não aceitou que a cama do casal fosse aquela em que o marido dormia com a ex-mulher. Segundo este analista havia aí um colamento (confusão) da cama – algo objetivo – com ex-mulher – um sentimento subjetivo, pois a mulher não viria junto com a cama. O analista chamou ao objetivo de símbolo, ao puramente subjetivo de signo, e à junção signo-símbolo de equação simbólica. Seu trabalho analítico consistiu em separar signo e símbolo que estavam acoplados constituindo a equação simbólica, fazendo então que ela se tornasse razoável e aceitasse a entrada da cama no seu lar. Eu contrapus o seguinte: que essa área intermediária em que convivem subjetivo e objetivo é a área em que predominantemente vivemos, uma área paradoxal, mas uma área humana e não uma área despida de afeto, robótica que aparece quando tentamos expurgar o subjetivo de nossos atos. Em outros termos o marido deveria ter a sensibilidade suficiente (e o terapeuta também) de aceitar o mal-estar da esposa em relação a uma cama na qual ele tinha dormido com a ex-esposa. Essa tentativa de alcançar o objetivo absoluto, o simbólico absoluto é ainda uma herança cartesiana que separava corpo (sentimentos) de mente (raciocínio objetivo). Faz portanto diferença ter uma teoria que valoriza o espaço transicional, que leva em conta a área em que o subjetivamente concebido convive sem questões com o objetivamente percebido. É uma área onde não cabem questões como dizer “mas é só uma cama e minha ex-esposa não está mais nela”. Se interpretamos cama/ex-esposa como deslocamento ou confusão (exp.: “você está confundindo a ex com a cama”) estaremos na lógica da exclusão, na lógica cartesiana pois estarei dizendo que ou é ex-esposa ou é cama. Se estou na lógica paradoxal, no objeto  transicional, a lógica é a paradoxal, contemporânea, pois ex-esposa e cama convivem sem choques, e sem necessidade de ultrapassamento.
         A  equação simbólica está no paradigma dicotômico pois ou é psicose ou é simbólico. O objeto transicional está no  paradigma não-dicotômico pois ele é simbólico e subjetivo, signo e símbolo ao mesmo tempo.  3- No paradigma moderno dar-se-ia uma interpretação enquanto que no paradigma pós-moderno o analista simplesmente ouviria a queixa do analisando aceitando o paradoxo objetivo-subjetivo e portanto acolhendo os sentimentos da analisanda.
          A maneira do analista proceder (se dando holding e fazendo intervenções sensíveis, ou  se interpretando sem levar em conta a subjetividade, a vulnerabilidade, a sensibilidade do paciente) dá uma forte pista da maneira dele proceder: se ele leva em conta a subjetividade ou se exige que a subjetividade seja recalcada para que  reine a objetividade.  
        Dessa mesma carta podemos retirar o seguinte: Winnicott achava que uma teoria poderia correr o risco de se esclerosar nas palavras que a constituíam. Palavras para ele não eram conceitos fixos, mas uma forma especificamente humana de tentar transmitir uma experiência. O importante era poder transmitir uma experiência e não usar palavras conceituais. (ver p.XXI ou p.31 do livro “O Gesto Espontâneo).
Ainda nesta mesma carta de 17 de novembro, para M.Klein, podemos retirar mais uma contribuição de Winnicott, uma contribuição que aponta para uma concepção contemporânea da saúde e da doença. Não é que Winnicott tenha falado explicitamente dessa questão, mas, se dirigirmos um olhar intencional para o que ele escreve, poderemos lá encontrar essa idéia. Vou reproduzir o trecho da carta que nos interessará. Está na pag. 33: “A questão que estou discutindo toca bem na raiz de minha dificuldade pessoal, de modo que o que você vê sempre pode ser posto de lado como doença de Winnicott, mas se você desconsiderá-lo desse modo, pode perder algo que, no fundo, é uma contribuição positiva. Minha doença é algo com que posso lidar ao meu modo e que não está longe de ser a dificuldade inerente ao contato humano com a realidade”. Comentário: Winnicott está falando de saúde e doença. Sua última frase permite-me pensar doença e saúde como parte do fluir da vida. A doença aparece então como uma reação aos obstáculos inevitáveis que o ser humano encontra no seu percurso de vida. Este obstáculo tanto pode ser uma bactéria que o invade, à qual ele responderá com uma infecção que é a doença, como pode ser uma invasão materna, à qual  ele poderá responder com ansiedade ou retraimento que serão a doença. Tanto num caso como no outro haverá um desvio ou uma parada no desenvolvimento que será retomado ou retificado após o obstáculo colocado pela vida for removido. A diferença entre o predominantemente psíquico e o predominantemente extra-psíquico está no ultrapassamento do obstáculo, que é geralmente total no extra-psíquico, mas que, quando se trata do psíquico, é internalizado continuando a exercer os seus efeitos. O obstáculo, ou a invasão predominantemente extra-psíquica pode deixar sequelas, e a saúde que para Winnicott é vida, terá de ser exercida com a seqüela. Pensemos em Itzhak Perelman que exerceu a sua saúde mesmo com a paresia, quase paralisia das pernas. Com o psíquico não é diferente. Temos de exercer nossa saúde, nosso viver, a partir do limites que temos e que aconteceram no processo de desenvolvimento. A reportagem de VEJA n. 37 de 2003, o psicólogo Roger Gould que  escreve na revista americana Psychology Today, é citado: ”Quem é fisicamente mais saudável? Um campeão olímpico fora das pistas  por  causa de uma torção no tornozelo ou um diabético do tipo I cujo nível de açucar no sangue está temporariamente normal?” Esta é uma boa questão e entra na linha de pensamento que coloca as doenças como vicissitudes, como parte de um viver onde saúde e doença realizam uma dança complexa impedindo que se saiba exatamente onde está a saúde e onde está a doença, ou ainda, emaranhando saúde e doença de maneira a não se poder distingui-las, a não ser por um golpe de inteligência, um golpe epistemológico. Se de um ponto de vista a gripe da criança é doença, de outro é saúde. Saúde e doença convivem paradoxalmente. Talvez o importante seja dizer que os dois pontos de vista epistemológicos são produtivos e necessários. Outro comentário: “...saúde compreendida como processo e não como ausência de doença na perspectiva da  produção de qualidade de vida, enfatizando ações integrais e promocionais de saúde”( III Conferência Nacional de Saúde Mental, 2002).
        Winnicott não abria mão de estar integralmente presente na sessão. Pôde então falar e analisar o seu ódio pessoal do paciente. Nisto ele foi além da relação analista-analisando colocando a sua pessoalidade na relação. Masud Khan, um conhecido analista ex-analisando de Winnicott falou da forte “presença psicossomática” de Winnicott na relação. Comentário: Estar “todo” presente é ultrapassar a dicotomia corpo-/alma, presente nos primeiros cem anos de psicanálise quando o analista tentava ocultar o seu corpo para não perturbar com a sua presença as associações do paciente e para não se perturbar com o olhar do analisando. Essa presença global ultrapassa a dicotomia corpo/alma. Neste sentido Winnicott é monista. Mas é também monista na sua recusa em aceitar uma pulsão de morte. Para ele a pulsão que temos é a pulsão de vida que em algum momento chamou de “força vital”. A agressividade e destrutividade nascem da força vital.

Podemos colocar como característica da modernidade o conjunto dever/disciplina/obrigação e como característica da pós-modernidade o conjunto criatividade/espontaneidade/surpresa. E encontramos ao longo da vida e obra de Winnicott momentos privilegiados em que o segundo trinômio se manifesta. Winnicott estava em uma reunião científica quando se viu dizendo “não existe esta coisa chamada bebê”. Ele próprio ficou surpreso com a formulação, mas compreendeu que ela vinha de um longo período de observação e elaboração. Posso acrescentar que Winnicott ao dizer esta frase estava mudando de paradigma. Para usar a linguagem de Edgar Morin posso dizer que ele estava complexificando o objeto de estudo. Estudar o bebê separado da mãe pode ser considerado um recorte da realidade caindo no paradigma da simplificação enquanto que a inclusão da mãe complexifica e permite enxergar uma realidade mais ampla. Recorte refere-se ao ambiente e à história e permite um estudo em profundidade de características particulares, mas torna o homem cego ao conjunto em movimento. Os operadores da complexificação (conjunção, distinção e implicação) permite ver o todo, as partes, e os todos parciais que interessam para o objetivo a ser alcançado. Uma outra  frase que tem o mesmo significado nós a encontramos em EXPLORAÇÕES PSICANALÍTICAS, p.196/7: “Não se deve permitir que a existência dos padrões de enfermidade obscureça a realidade de que a criança em questão é uma criança com um irmão ou uma irmã mais novos”. Outra surpresa para Winnicott: “Foi minha observação seguinte que me surpreendeu tocando um ponto importante”. Está na p. 105 do O Brincar e a Realidade.

No livro EXPLORAÇÕES PSICANALÍTICAS Winnicott fala explicitamente de “abandonar alguns princípios dos quais esteve corretamente orgulhoso”. A psicanálise tradicional adota o ponto de vista do “indivíduo antes do ambiente” e Winnicott fala da necessidade de se olhar “o ambiente antes do indivíduo”. Diz mais: “Ele [o bebê] é um fenômeno complexo que inclui o seu potencial e mais o seu meio ambiente”. “Não se deve permitir que a existência dos padrões de enfermidade obscureça a realidade de que a criança em questão é uma criança com um irmão ou uma irmã” (p.196) Comentário: é uma frase interessante: existem padrões de enfermidade que são modelares e que portanto caem na categoria da modernidade e da dicotomia, sim. Mas esses padrões devem ser olhados em um contexto maior, devem ser incluídos em uma complexidade, devem realizar uma conjunção. Ou o contrário: pode-se começar pela conjunção, e, se necessário, chegar à disjunção, para posteriormente voltar à conjunção. Meu exemplo: criança que faz uma gripe por falta de atenção. Portanto a gripe tem a função de trazer o olhar dos pais para essa criança. Digamos que não seja uma gripe, mas uma infecção. Procedimento moderno, causal, redutor: levar material para o laboratório, fazer cultura, estabelecer o antibiótico eficiente e receitá-lo para a criança. Este procedimento não deve ser redutor de uma situação mais complexa. Portanto, não se deve parar nele. É preciso incluí-lo na situação de vida. Ele passou, por algum motivo, a receber menos atenção dos pais ou da mãe, por exemplo. A mãe pode ter tido um filho, ou pode ter ficado deprimida, ou qualquer outra coisa. Com isso as suas defesas baixaram, sim, mas, do ponto de vista holístico, a infecção e o resultado de uma complexidade da qual faz parte a tentativa de recuperar a  atenção perdida e ainda necessária.  

A questão da teoria modelar e da teoria ou teorização exemplar. Acho que essas palavras adjetivantes são boas. Há uma diferença entre se seguir um modelo (filosofia platônica, cartesiana, kantiana) e tomar a teoria não como um modelo fixo, mas como uma formulação advinda de uma prática clínica.
Terminarei com uma frase de Peter Tizard que se encontra na Introdução ao livro “Os bebês e suas mães” de Winnicott: “O Dr. Winnicott foi um bom escritor, às vezes muito bom, outras vezes nem tanto, mas foi muito melhor como professor e brilhante como conferencista. Para expressar suas idéias  de  modo claro e vívido, precisava da proximidade de uma platéia; além disso, tinha a capacidade de mudar de estilo e de conteúdo em função do nível de compreensão e do humor da platéia, fosse ela constituída de uma pessoa ou de centenas delas”(p.VIII).
Winnicott tinha alma de aedo: mais Homero do que Platão.

                                                Nahman Armony

A ÉTICA E O AMOR

Os pensadores da atualidade chamam a atenção para uma mudança fundamental na mentalidade humana. No passado, acreditava-se em princípios universais que, mesmo transgredidos, eram aceitos por todos em uma cultura. A pessoa, ao transgredir, sabia estar indo de encontro à Verdade de seu grupo.
Hoje temos uma dispersão da Verdade. Cada um constrói a sua ética e tenta agir de acordo com ela. A elaboração dessa ética varia de pessoa para pessoa. Nela, misturam-se mandatos advindos da educação, da realização dos desejos próprios e de um cuidado com os outros, seja por amor ou por convicção filosófica. Não estou falando de elaboração consciente, que pode existir, ou se manifestar em algum momento, mas de uma forma não-consciente de agir.
Muitas vezes a ética explícita não é a mesma do inconsciente, o que provoca mal-estar e sentimento de culpa em determinadas situações. Por exemplo: a ética de uma pessoa lhe diz que a infidelidade não é um ato reprovável e, no entanto, ela se sente culpada quando acontece. Vamos pensar em um caso concreto: um jovem adulto, criado em ambiente religioso e repressor, apresenta dificuldades sexuais, as quais o desvalorizam e revoltam. Ele se rebela contra a educação recebida e elabora uma ética própria, em que a sexualidade é um direito de todos. Algo importante está acontecendo. O rapaz desafia, a partir de seus instintos e desejos, a força dos mandatos parentais que, à sua revelia, se tornaram parte dele mesmo. E sua elaboração ética vai além. Para ele, é possível haver infidelidade na relação amorosa, pois esta não deve impedir que um desejo sexual de grande intensidade seja realizado. Sua ética está no respeito ao impulso. Pode-se pensar que este fragmento ético tem sua origem afetiva no desejo de experimentação e variedade (não quero repetir o argumento biológico darwiniano da máxima transmissão dos caracteres hereditários).
Pois bem, esta é a ética que ele apresenta à namorada: ambos teriam o direito a aventuras sexuais. Talvez peça a ela discrição, pois se vier a saber da infidelidade sofrerá. A moça, porém, tem outra ética. Para ela a fidelidade sexual é um princípio cuja quebra é inaceitável. Se o namorado tiver uma aventura, terminará o namoro. Temos aqui duas éticas em confronto, o que não acontecia no tempo em que havia apenas uma Verdade: para o rapaz o ético é não impedir a realização de um forte impulso; para a moça o ético é preservar a fidelidade a qualquer custo. Uma diferença de ajuizamento e um impasse.
O mais coerente seria terminarem o namoro antes que um aprofundamento da relação viesse a fazê-los sofrer na eventualidade de uma traição. Acontece que os dois se amam. Um deles irá ceder. Mas será uma frágil renúncia. Ou ela se sentirá ofendida se houver infidelidade ou ele se sentirá cerceado por não poder se entregar a um desejo intenso que surja. A situação poderá dar origem à dubiedade. Mantendo-se fiel a sua ética, à qual não pode renunciar já que se trata de um princípio básico, ele “sabe” que em situações excepcionais cederá ao desejo. Mas como está muito interessado na namorada, não deixa claros, nem para si nem para ela, os seus sentimentos. Ela aceita esse estado ambíguo porque não quer um rompimento. Ambos concordam em manter uma semi-mentira e uma semi-verdade. Está criado o cenário para muito sofrimento futuro.

                    Nahman Armony

Primeira publicação na revista CARAS





POEMA DA LIBERDADE

                    Minha máquina relojoeira
                    Está trabalhando diferente
                    Não só aponta para o Norte
                    Para o Sul também
                    Para o Leste e para Oeste
                    Para qualquer de todos os lados,

                    Mas é sempre para o meu caminho.

                                                 Nahman Armony