Como se sabe
Na natureza
Nada se cria, nada se perde:
Tudo se transforma.
E esta é
A minha grande esperança
De imortalidade.
Nahman Armony
WINNICOTT E A CULTURA
Estou-me propondo a discorrer
sobre a contribuição de Winnicott relativa às transformações culturais
decorrentes da passagem da modernidade para a hipermodernidade. As contribuições
de Winnicott são inúmeras. Entre elas temos as ideias revolucionárias de
mãe-suficientemente-boa, de paradoxo, de espaço potencial e objeto
transicional, de agressão infantil e juvenil como pedido de socorro, de
borderline ‘normal’ e outras. Neste artigo vou me dedicar a tentar entender sua
pessoal concepção de normalidade e patologia borderline vis a vis com a
normalidade e patologia neurótica. Esta compreensão é importante pois permite
uma visão mais conforme às transformações que estão ocorrendo em nossa cultura
e subjetividade.
A
primeira dificuldade que encontro é a miscelânea que encontramos em sua obra no
que diz respeito às palavras borderline, esquizoidia, psicose, esquizofrenia,
fronteiriço e outras. Farei algumas citações para que os colegas tomem contato
direto com as dificuldades de delimitação que encontrei. Winnicott:
“É na análise do caso do tipo
fronteiriço que se tem a oportunidade de observar os delicados fenômenos que
apontam para a compreensão dos estados verdadeiramente esquizofrênicos. Pela
expressão caso fronteiriço quero significar o tipo de caso em que o cerne do
distúrbio do paciente é psicótico, mas onde o paciente está de posse de uma
organização psiconeurótica suficiente para apresentar uma psiconeurose, ou um
distúrbio psicossomático, quando a ansiedade central psicótica ameaça irromper
de forma crua”. (Winnicott, 1969, p.122).
“A defesa do self falso pode ser
abandonada e o self verdadeiro pode ficar exposto (com grandes riscos) na
transferência psicótica. A partir daqui (e fico envergonhado por ter condensado
o quero dizer quase ao ponto do absurdo), comecei a ver a esquizofrenia e,
especialmente, a enfermidade do caso borderline como sendo uma sofisticada
organização de defesa. Não mais experimentar a angústia impensável que está na
raiz da enfermidade esquizóide”. (Winnicott,
1967a, p.154)
“Quanto à minha experiência,
aquela que mais me permitiu aprender foi a observação de regressões contínuas
seguidas de progressão em casos de pacientes borderline, ou seja, de indivíduos
que precisam chegar a um estado de doença do tipo psicótico no decorrer do
tratamento (Winnicott,
1990, p.172).
“Freud foi capaz de descobrir a sexualidade
infantil em uma nova visão porque ele a reconstruiu a partir de seu trabalho
analítico com pacientes neuróticos. Ao estender seu trabalho para cobrir o
tratamento de pacientes psicóticos borderline, foi possível para nós
reconstruir a dinâmica da infância e da dependência infantil, e o cuidado materno
que satisfaz essa dependência”. (Winnicott, 1960, p.53).
Vamos pois guardar na mente que psicótico, esquizofrênico e
borderline estão muito próximos no pensamento winnicottiano, o que significa
que podemos, muitas vezes, tomar um termo por outro, ou considerar um desses
termos uma condensação do três.
Posso agora
apresentar, através da palavra do próprio do próprio Winnicott um borderline revolucionário,
um borderline que possui a sua própria normalidade, diferente do borderline patologizado
da maioria dos outros autores.
Citando Winnicott:
“Os psicanalistas experientes
concordariam em que há uma gradação da normalidade não somente no sentido da
neurose mas também da psicose (...) Pode ser verdade que há um elo mais íntimo
entre normalidade e psicose do que entre normalidade e neurose; isto é, em
certos aspectos. Por exemplo, o artista tem a habilidade e a coragem de estar
em contacto com os processos primitivos aos quais o neurótico não tolera
chegar, e que as pessoas sadias podem deixar passar para o seu próprio
empobrecimento”. (Winnicott, 1959-1964, p.121).
Como Winnicott diferencia o psicótico próximo da ponta da
normalidade (borderline-normal) do neurótico igualmente localizado? Garimpando
seletivamente sua obra encontrei algumas preciosidades:
“Se tudo
que foi dito antes pode ser dado como certo, podemos dizer, referindo-nos a um
bebê total relacionado a uma mãe total, que está estabelecido o estádio no qual
a posição depressiva pode ser alcançada. Se essa totalidade não pode ser levada
em conta, então nada do que tenho a dizer sobre a posição depressiva é
relevante. O bebê vai vivendo sem ela; e muitos conseguem [sublinhado
meu]. De fato, em tipos esquizóides pode não haver uma conquista significativa
da posição depressiva e, na ausência daquilo que pode ser descrito como
reparação e restituição, a recriação mágica é utilizada”.(Winnicott, 1954,
p.440)
Winnicott, ao que eu saiba, não mais falará de “recriação
mágica”; tomarei então a liberdade de interpretar essa expressão. Como entender
a recriação mágica sem fugir à teorização winnicottiana? A essa questão tentei
responder da seguinte maneira: ao recriar magicamente o mundo, o borderline
estaria lançando a sua fantasia onipotente (mitigada) no ambiente pessoal e cultural
potencialmente receptivo. Seria a sua maneira de conseguir um relacionamento
suficientemente bom com as pessoas e o cultural, não através da culpa e
reparação, mas através da inclusão das pessoas e do social em seu mundo
fantasmático, de tal maneira que eles são recriados magicamente de acordo com
uma fantasia não alheia à realidade. Estou antecipando a próxima citação de
Winnicott que é a seguinte: “Pode mesmo acontecer que [o borderline]
seja capaz de aceitar o que é bom no
ambiente como uma projeção simples e estável de elementos emergentes que se
originam de seu próprio potencial herdado” (Winnicott, 1960, p.39). Elementos emergentes cuja origem está
no potencial herdado são projetados em aspectos bons do ambiente. Esses aspectos bons do ambiente estão,
por assim dizer, à espera dos elementos emergentes. Há uma amálgama entre os
aspectos bons do ambiente e os elementos emergentes projetados. Essa amálgama
entre o dentro e o fora nos remete exatamente ao espaço potencial.
Winnicott:
É interessante reparar que o artista criativo é capaz de
chegar a um tipo de socialização que
obvia [em inglês “obviates”; o Michaelis
traduz por “remover”, “eliminar”; em castelhano “soslaya” – “passa por alto”.
No dicionário Aurélio obviar é remediar, prevenir, desviar, atalhar (seguir por
um caminho mais curto)] a
necessidade do sentimento de culpa e a atividade reparativa e restitutiva associada que forma a base do
trabalho construtivo habitual. O artista ou pensador criativo pode, na verdade,
falhar em compreender, ou pode mesmo desprezar, o sentimento de
preocupação[concern] que motiva uma pessoa menos criativa; e dos artistas se
pode dizer que alguns não têm a capacidade de sentir culpa e ainda assim
atingiram uma socialização através de seu talento excepcional. As pessoas
habitualmente governadas pelo sentimento de culpa acham isso surpreendente;
ainda assim tenho um respeito sub-reptício pela falta de piedade [ruthlessness]
que leva de fato, em tais circunstâncias, a conseguir mais do que o trabalho
orientado pela culpa. (Winnicott, 1958, p.28/29).
Obviamente o
borderline e o artista estão no mesmo barco winnicottiano. Creio que não será
nenhum abuso dizer que o artista talentoso recria magicamente o mundo através
de sua arte, mesmo porque essa idéia permeia nossa subjetividade. Borderline e
artista talentoso, quando não coincidem, encontram-se. Ambos recriam
magicamente a realidade. O artista através da obra de arte e o borderline
através da transformação da vida em obra de arte. Winnicott distinguiu os que alcançam a fase
depressiva - aqueles que, em tendo a capacidade de se sentir culpados e de
reparar - poderão usar o mecanismo de recalque, sendo então chamados de
neuróticos, daqueles que não atingem a fase depressiva e que mesmo assim
conseguirão se relacionar suficientemente bem com o ambiente através da
recriação mágica – os “tipos esquizóides”, os borderlines. Winnicott fala dos
artistas (que numa de suas citações aparecem lado a lado com os borderlines)
que obviam a culpa e que mesmo assim se socializam devido ao seu talento excepcional.
Mas ele também fala dos tipos esquizóides que se relacionam com o mundo não
através da culpa, mas da recriação mágica. Repetindo: A obra artística não
seria uma recriação mágica da realidade? O borderline e o artista não seriam
então gêmeos em sua capacidade de recriar o mundo? Poderíamos, então, a partir
dessas duas citações, (é claro que elas são apenas pontas de icebergs, usadas
para argumentação, demonstração e formação de juízo) pensar que o talento do
borderline brando em plantar suas fantasias no social é uma estética de
existência, uma construção artística? É essa mesma concepção que os sociólogos
têm do homem pós-moderno. À noção de borderline sobrepõe-se a de homem
pós-moderno:
“Dentro da nova classe média pode haver efetivamente um número
maior de pessoas que aceitam a concepção de que a vida estética é a vida
eticamente boa, que não existe a natureza humana nem o ‘eu’ verdadeiro, que
somos uma coleção de quase-eus e que a vida se presta a uma modelagem
estética”. (Featherstone, 1995, p.75).
“
“A estetização da vida cotidiana pode designar o projeto de
transformar a vida em uma obra de arte”.
(Featherston, 1995, p.99).
É possível argumentar que setores
da nova classe média, os intermediários culturais e as profissões de caráter
assistencial retêm as disposições e sensibilidades necessárias que os fazem
mais abertos à exploração emocional, à experiência estética, e à estetização da
vida. De fato, para se produzir e apreciar a estetização do corpo,
caracterizada como um elemento da arte pós-moderna, é preciso descontrole
emocional.(Featherstone, 1995, p.72).
É preciso examinar
desapaixonadamente a justificativa estética da vida; se isso for realizado,
pode-se mostrar que o descontrole controlado das emoções e a ausência de um
sistema de fé religiosa coerente e centralizado não resultam em niilismo e
desintegração social; é, antes, perfeitamente possível que a mudança para
critérios estéticos e conhecimento local resulte num autocontrole mutuamente
esperado e no respeito para com o outro.(Featherstone,
1995, p.174)
Nessas
citações o homem pós-moderno aparece como um artista da vida, uma pessoa que
vive criativa e apaixonadamente a própria existência. Esse homem aproxima-se do
homem winnicottiano: “Desejo examinar o lugar, utilizando a palavra em seu sentido abstrato,
em que permanecemos a maior parte do tempo enquanto experimentamos a vida” (Winnicott,
1971c, p.145) E mais adiante:
“Onde estamos, quando fazemos o que, na verdade, fazemos grande parte
de nosso tempo, a saber, divertindo-nos? (...) Observe-se que estou examinando
a fruição altamente apurada do viver, da beleza, ou da capacidade inventiva
abstrata humana, quando me refiro ao indivíduo adulto, e, ao mesmo tempo, o
gesto criador do bebê que estende a mão para a boca da mãe, tateia-lhe os
dentes, fita-lhe os olhos vendo-a criativamente” (ibid, p.147).
Essas
colocações lembram os sociólogos que falam de um homem lúdico, esteta,
criativo. O homem moderno era e é o homem do dever, da disciplina, da ordem. O
homem pós-moderno – e isso está dito por Winnicott e pelos sociólogos - seria o
homem da criatividade, da fruição, da liberdade. O homem pós-moderno mais vive, mais experimenta a vida, do que a
padroniza em comportamentos repetitivos e lugares estanques. O homem moderno
mais pretendia viver no espaço objetivo; o homem contemporâneo winnicottiano
sente-se mais à vontade no espaço potencial.
Existem, pois, homens que se socializam apesar de terem
atalhado o estágio da culpa. Em uma de suas citações Winnicott limita esse modo
de socialização aos artistas de talento excepcional. Mas, sem dúvida, revendo a
citação anterior em que fala de esquizóides capazes de uma recriação mágica, e
mais, informados pelos sociólogos que fazem do homem pós-moderno um artista da
vida, podemos estendê-los aos borderlines criativos em geral. Poderíamos
especular que a recriação mágica (um ato onipotente) ocupa o lugar da culpa.
Esta recriação mágica pode ter ou não uma função social. A próxima citação de
Winnicott falará dessa função social:
“É costume fazer alusão ao ‘teste de realidade’ e efetuar uma
distinção clara entre percepção e apercepção. Reivindico aqui um estado
intermediário entre a inabilidade de um bebê e sua crescente habilidade em
reconhecer e aceitar a realidade. Estou, portanto, estudando a substância da
ilusão, aquilo que é permitido ao bebê e que, na vida adulta, é inerente à arte
e à religião, mas que se torna marca distintiva de loucura quando um adulto
exige demais da credulidade dos outros, forçando-os a compartilharem de uma
ilusão que não é própria deles. Podemos
compartilhar do respeito pela experiência ilusória, e, se quisermos, reunir e formar
um grupo com base na similaridade de nossas experiências ilusórias. Essa é a
raiz natural dos agrupamentos humanos”. (Winnicott,
1971a, p.15).
Essa
citação faz minha imaginação desandar:
imagino que a formação dos primeiros grupos humanos tenha exigido a
presença de líderes capazes de recriar suas próprias fantasias primevas de uma
forma não incompatível com a subjetividade circulante no grupo social,
conseguindo apresentá-las na forma de mitos atraentes, úteis à coesão desse
grupo. Certamente o grupo estaria, até certo ponto, propenso a receber a ilusão, o mito, pois
este preencheria um espaço de interrogações e necessidades. Mas também
determinante seria a capacidade do líder em “vender o seu peixe”. Para isso ele
teria uma sintonia fina com seus interlocutores, tato e ousadia no seu trato
com eles, um certo dom encantatório, uma qualidade carismática, um charme, uma
capacidade de seduzir. (Não pretendo que essa especulação corresponda a uma
realidade. Eu a coloquei com o intuito de esclarecer meu pensamento a respeito
da função social do borderline. Minha concepção de borderline faz dele um ser
criativo apto a transformar sua subjetividade em formações transicionais). O borderline é capaz de colocar de
forma palatável para a sociedade suas experiências ilusórias, suas recriações
mágicas, suas fantasias primevas mitigadas[1].
E ele consegue fazê-lo quando, atravessando a camada macro, é capaz de perceber
e sentir as nano-reações e os nano-acontecimentos do ser humano.
Poderíamos, à maneira de um
aforismo dizer que se o borderline é o devir do mundo, o neurótico é a sua
estabilidade.
Recapitulando: se a posição depressiva
não é adequadamente alcançada, a capacidade de sentir culpa fica reduzida. O
sujeito poderá se relacionar com o mundo através de recursos outros que não a
culpa e reparação. Winnicott fala que o borderline usa uma sofisticada
organização de defesa. Isso faz com que o borderline se relacione com a
realidade externa e com o semelhante de um modo diferente do neurótico. Um modo
onipotente, artístico; através de uma recriação mágica da realidade. Se essa
recriação mágica estiver conectada com a cultura vigente teremos uma atividade
criativa cujo lócus é uma área
intermediária. Por outro lado, a recriação mágica poderá ser autística se ao invés
de fenômeno transicional for um fenômeno subjetivo. Estaríamos então não mais
no espaço potencial, mas no espaço subjetivo, na psicose. Diferentemente do
psicótico o borderline precisa de um contato razoável com a realidade
compartilhada; necessita colocar as suas fantasias no social-cultural de uma
maneira tal que este as aceite; e tanto mais o conseguirá quanto maior for a
sua capacidade de empatia e de identificação dual-porosa e melhor souber
usá-las (Armony, 1998, p.63 e seguintes).
Palavras
finais: o borderline é uma força pessoal e cultural transformadora que rompe
com os códigos vigentes a partir de sua íntima relação com uma subjetividade
que tanto é pessoal quanto cultural.
Uma
última observação: A normalidade perfeita é sempre um ideal impossível, pois
não se conhecem homens sem traços neuróticos, já que aquilo que produz neurose,
estrutura o caráter, nem homens sem traços psicóticos, pois a criatividade,
intuição e comunicação não verbal bebem na mesma fonte da psicose. De uma certa
forma todos vivemos em um espaço transicional/potencial.
Nahman Armony
Bibliografia
ABRAM,
J. A linguagem de Winnicott. Rio:
Revinter, 2000.
ARMONY, N. Borderline,
uma outra normalidade. Rio: Revinter, 1998
FEATHERSTON,
M. Cultura de consumo e pós-modernismo.
São Paulo: Studio Nobel, 1995.
FREUD,
S.(1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.XII. Rio: Imago, 1969
MARTINS, A. O medo de ousar: entre a hiperaceleração
contemporânea e a tendência à conservação. Cópia
xerocada de uma conferência realizada no CPRJ. Junho de 1998.
WINNICOTT, D.W. (1954) A posição depressiva no
desenvolvimento emocional normal. In: Da
pediatria à psicanálise. Rio: Francisco Alves, 1982, 2ª edição.
------------------------- (1954/5) Aspectos clínicos e
metapsicológicos da regressão dentro do setting
analítico. Ibid.
------------------------- (1958) Psicanálise do
sentimento de culpa. In: O ambiente e
os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1983.
-------------------------
(1960) Teoria do relacionamento
paterno-infantil. In: O ambiente
e os processos de maturação. Porto Alegre:Artes Médicas, 1983.
-----------------------
(1964) Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à
classificação psiquiátrica? In: O
ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
----------------------- (1967a) O conceito de regressão
clínica comparado com o de organização defensiva. In: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
---------------------- (1967b) A localização da
experiência cultural. In: O brincar e
a realidade. Rio: Imago, 1975.
---------------------- (1969) O uso de um objeto e
relacionamento através de identificações. In: O brincar e a realidade. Rio: Imago, 1975.
----------------------
(1971a) Objetos transicionais e fenômenos transicionais. Ibid.
----------------------
(1971b) Criatividade e suas origens. Ibid.
----------------------
(1971c) O lugar em que vivemos. Ibid.
----------------------
Natureza Humana. Rio: Imago, 1990.
[1]
Usei originalmente a palavra mitigada em referência à onipotência da fase de
dependência relativa, onde o objeto é transicional, em contraste com a fase de
dependência absoluta, onde o objeto é subjetivo. A materialidade do objeto
transicional faz com que a onipotência absoluta não possa ser vivida, fazendo
aparecer a experiência de onipotência mitigada.
DIFERENÇAS DE CONFORMAÇÃO SUBJETIVA
Um motivo frequente de
briga de casais é a diferença das constelações subjetivas. Cada membro do casal
tem o seu jeito de sentir, o seu jeito de pensar, seus preconceitos conscientes
e inconscientes, suas superstições, seus valores, suas preferências, etc. Cada
um teve suas próprias relações pessoais formadoras da sua personalidade.
Decorre que sempre há diferenças entre dois seres humanos. Algumas são
irrelevantes. Outras, em constituindo o pilar de suas personalidades, podem
levar a sérios conflitos. Um exemplo disto é um analisando meu que, apesar de
sua formação machista, aceita que a noiva tenha os próprios amigos e que saia
com eles sem a sua companhia assim como aceita que ela tenha tido namorados
anteriores a ele. Mas sente-se muito incomodado em estar participando de alguma
atividade onde esteja um ex-namorado “que a tinha comido”. Um resto de sua
formação psicológica machista.
Mas, mesmo um assunto
menos sensível pode se tornar fonte de desentendimento especialmente quando há
sentimento de não estar sendo compreendido pelo parceiro. Segue-se um exemplo retirado
de minha clínica. Uma analisanda relata que certa noite ela e o marido pegaram
um táxi. Carro velho, motorista gordo, esparramado no assento, mal-humorado,
com cara de “poucos amigos”. Rádio em altura excessiva tocando uma música
desconfortável. A mulher pede de uma forma educada, para abaixar o volume. O
taxista faz ouvidos moucos. O marido, após o tempo de aproximadamente 4
respirações reitera, também educadamente, o pedido. O taxista, após um tempo de
suspense, atende. A mulher, sussurrando diz: “teria sido melhor chamar um taxi
de cooperativa; eles são mais educados”. Apesar do esforço para não ser ouvida,
o taxista mostrou que tinha uma ótima audição, pois parou o carro fazendo o
casal sair com a desculpa de um defeito. O taxi se foi e eles ficaram na
calçada à noite, a rua com quase nenhum movimento. A esposa ficou indignada,
arrependida de não ter tomado nota do número da placa para fazer queixa no
lugar apropriado. O marido não ficou indignado. Diferença de sentimentos.
Seguiu-se uma conversa tendo como pano de fundo a divergência. Resultado:
discussão e amuo do par. Ao analisarmos o acontecido apareceu o sentimento de
ter sido expulsa, o sentimento de humilhação, o desejo de justiça/vingança e o
sentimento de não ser compreendida pelo marido. A sessão girou em torno da
questão da aceitação das diferenças e da possibilidade de se chegar a algum
tipo de acordo. Numa sessão posterior contou que havia conversado com o marido
e que tinham encontrado um ponto em comum: as autoridades competentes deviam
ser informadas: a diferença inicial é que para a mulher deveria haver uma justiça
punitiva, pois ela se sentira humilhada e agredida pela expulsão e estava em
busca de uma justiça/vingança do tipo “olho por olho...” atenuado. O marido que
não se sentira nem humilhado nem agredido achava que o mais importante seria
levá-lo a fazer um curso de civilidade. Essa diferença tinha a ver com a
constelação subjetiva de cada um traduzida em postura ética. O marido concordou
que era compreensível ela ter-se sentido humilhada podendo então consolá-la e
ela aceitou que o marido pudesse não se sentir degradado pela grosseria que
poderia ser compreendida como uma reação do taxista ao ouvir o comentário
sussurrado pela esposa. Foi um episódio de desavença que chegou a um final
feliz graças à análise o que nem sempre acontece tão rapidamente, pois há
outros fatores em jogo como ressentimentos, lutas pelo poder, necessidade
imperativa de uma relação de espelho, etc. É como se a divergência fosse
alimentada por antigos ressentimentos nem sempre conscientes e que aproveitavam
a ocasião para terem seus afetos descarregados. Mas o desejo de entendimento
pode superar estas constelações inconscientes desde que se entenda as
subjetividades em jogo na conformação de um episódio.
Nahman Armony
Primeira publicação
na revista CARAS.
POEMA DO AMOR IMPOSSÍVEL
Esta avidez com que me atiro a ti
Esta busca incessante do teu corpo
Este desejo doido de te fender em mil frestas
E nelas espalhar os mil pedaços de minha carne dolorida
Não pode ser amor.
É antes o desespero do que me falta
E que me deixa faminto
De uma fome que não se satisfaz
Nunca.
Nahman Armony
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