RABISCOS HISTÓRICOS
No mundo das palavras,
o termo borderline tem um avô. Chama-se borderland e foi criado por C. Hughes
que a usou pela primeira vez em 1884. Seu significado difere do termo
borderline atual embora se possa reconhecer seu parentesco. Hughes escreveu: “A
fronteira da insanidade é ocupada por muitas pessoas que passam sua vida
inteira próxima àquela linha às vezes de um dos lados às vezes do outro”. De lá
para cá o termo que de borderland passou a borderline, teve inúmeros
descendentes que embora se parecessem, não podendo, pois, negar sua origem, mostravam
nas suas diferenças uma história de modificações e complexificações. Borderland
nasceu no seio do paradigma cientificista e, como tal, tinha de ter uma clareza
e distinção cartesianas próprias do paradigma. E nada mais claro que este pingueponguear
que dispensava uma percepção da complexidade borderline. Uma complexidade que
foi se revelando no desdobrar da história dos transtornos psíquicos e mentais e
da qual vamos tomando conhecimento na medida em que entramos em contato com as
concepções dos vários autores. O quadro sintomático múltiplo do borderline era
desorientador dificultando um consenso e multiplicando a nomenclatura. Entre
estes nomes encontra-se o de esquizofrenia larvada, esquizofrenia latente, esquizofrenia
incipiente, esquizofrenia pseudoneurótica, suave demência precoce, depressões
periódicas e outros. De uma maneira geral pode-se dizer que as primeiras
tentativas de caracterizar o borderline lhe dava um lugar excêntrico nas
classificações psiquiátricas da época, pois não era visto nem como psicótico,
nem como neurótico. Simplesmente não havia ainda um lugar para ele. Para alguns
o borderline ocupava uma posição intermediária entre a neurose, definida como
uma doença nervosa de origem psíquica, e a psicose definida basicamente como
perda de contato com a realidade. Esta forma incompleta de enxergar o
borderline nós ainda a encontraremos em vários autores. Knight em 1954 escreve
que borderline não é propriamente um diagnóstico, sendo mais usado para
designar pessoas muito perturbadas, mas não francamente psicóticas; é também
utilizado naqueles casos em que é difícil decidir se o paciente é neurótico ou
psicótico. Estas dificuldades podem ser atribuídas ao fato de o borderline não
se enquadrar em um sistema classificatório exigido pelo paradigma cientificista
e repressivo do século 19. Quando Kraepelin na psiquiatria e Freud na
psicanálise finalmente realizam esta proeza, o borderline com seu quadro
multiforme não encontra um lugar, vagando aleatoriamente como alma penada no
universo psi. A era vitoriana não aceita nem a multiplicidade de desejos do
homem, nem a variedade de sintomas que compõem uma singularidade.
Darei um exemplo:
Sob os auspícios do
Chicago Psychoanalytic Institute, um grupo de 16 psicanalistas reunia-se
mensalmente para discutir seus casos borderline. Depois de um período de
discussão elaboraram o seguinte relatório: “Do ponto de vista do diagnóstico
clínico o espectro borderline inclui variados casos descritos na literatura
como desordem de caráter, neurose narcísica de caráter, desordem narcísica de
personalidade, defeito ou distorção do ego, personalidade esquizoide,
personalidade paranóide, esquizofrenia ambulatória ou pseudoneurótica, certos
caracteres depressivos, alguns pacientes com depressões periódicas ou episódios
maníaco-depressivos, alguns alcoólatras, jogadores, pacientes com distúrbios
sexuais, perversos ou promíscuos, caracteres obsessivo-compulsivos severos e
muitos pacientes com sérias doenças psicossomáticas. As características
clínicas do borderline incluíam baixa autoestima, extrema sensitividade à
crítica e rejeição, suspicácia e desconfiança e extremo pavor. Eles têm muito
medo da agressividade deles próprios e dos outros, de amar e serem
aprisionados, de responsabilidade e de mudança em geral. Suas relações interpessoais
tendem a ser tênues e temporárias, e sua percepção da realidade é muitas vezes
deficiente. Eles usam a negação e a projeção numa escala muito maior que os
neuróticos. Seu intenso anseio por aprovação e proximidade, e um medo
simultâneo de que isso conduza a sentimentos de solidão e vazio, e, no extremo,
a um total vácuo e desespero”(Grinker, p.13/14 do livro “The borderline
syndrome”).
Esta pletora de
diagnósticos, características e dinâmicas não condizem com o paradigma cientificista
repressivo vigente. Procura-se então unificar estas diversas percepções. Grinker
em 1968 realiza a façanha de encontrar a unidade na criação de um espectro que
vai do borderline próximo à psicose ao borderline próximo à neurose.
Ele admite[1] quatro
níveis de borderline: “Grupo 1- O borderline psicótico –
comportamento inapropriado e não adaptado. Deficiente senso de identidade e de
realidade. Comportamento negativo e raivoso em relação às pessoas. Depressão.
Grupo 2- O borderline nuclear – Envolvimento flutuante com outros. Expressões
abertas e atuadas de raiva. Depressão. Ausência de indicações de um self
consistente. Grupo 3 – Personalidades ‘como se’ – comportamento adaptado e
apropriado. Relações complementares. Pouca espontaneidade e afeto em resposta a
situações. Defesas: afastamento e intelectualização. Grupo 4- O borderline
neurótico – Depressão anaclítica (semelhante à da infância). Ansiedade.
Semelhança com caráter narcisista neurótico”. Pautado por
essa sistematização distingui nesse conjunto humano três níveis: borderline
pesado (patológico), borderline falso-self e borderline brando (próximo da
normalidade) com os quais passei a trabalhar.
Outros analistas lidam
de outra maneira com a miscelânea borderline. Diferentemente de Grinker que
procura ordenar a síndrome borderline eles aceitam a dispersão borderline não
como um defeito de diagnóstico, mas como uma condição ontológica. Para
exemplificar apresentarei uma citação de Grinker a respeito de Schmideberg.
Este psicanalista em 1959 “descreve o borderline como uma síndrome que mistura
normalidade, neurose, psicose e psicopatia em um padrão que permanece
relativamente estável ao longo da vida... ele é estável em sua instabilidade e
muitas vezes mantém um padrão constante que lhe é peculiar” (GRINKER, R. e
colaboradores- “The borderline syndrome”, 1968, p.12/13). Temos aqui uma
novidade valiosa: até então a inconsistência dos aspectos sintomáticos e
comportamentais do borderline impediam sua aceitação como entidade de direito
próprio, pois o paradigma cientificista e repressivo exigia definições claras e
precisas, o oposto da variabilidade não sistematizada do chamado borderline. Há
um rompimento destes psicanalistas, provavelmente inconsciente com este
paradigma dando uma potência ontológica à palavra inconsistência (nem
neurótico, nem psicótico e ao mesmo tempo neurótico e psicótico - paradoxo)
desatrelando o borderline da obrigação de consistência e sugerindo um novo
paradigma onde a precisão, a causalidade, e a repressão da palavra cedem seu
lugar à liberdade associativa e ao paradoxo, dando elasticidade aos conceitos e
legitimando o diagnóstico de borderline. Isto é oficialmente reconhecido em
1980 pela comunidade psiquiátrica no DSM-III da APA, a respeitada Associação Americana
de Psiquiatria usada como guia diagnóstico por grande número de psiquiatras de
todo o mundo ocidental. Lá o borderline ganha o rótulo de Borderline Personality Disorder e será diagnosticado como tal se
apresentar 5 das 8 características seguintes: impulsividade, relações
interpessoais intensas e instáveis, distúrbios de identidade, instabilidade
afetiva, intolerância com o estar só, atos físicos autoagressivos, sentimentos
crônicos de vazio e futilidade.
Em 2002 foi publicado
no Brasil o:
Manual
diagnóstico e estatístico de transtornos mentais
4ª Edição - 1994
DSM-IV-TR
American Psychiatric Assotiation
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE (p.664)
American Psychiatric Assotiation
TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE (p.664)
•
Padrão
global de instabilidade no relacionamento interpessoal, auto-imagem e afetos, e
acentuada impulsividade que se manifesta em vários contextos.
•
Para
o diagnóstico devem estar presentes pelo menos 5 das 10 características abaixo
relacionadas:
•
1-Esforço
frenético para evitar abandono.
•
2-Relação
interpessoal intensa e instável caracterizado por alternância extrema entre
idealização e desvalorização.
•
3-Perturbação
de identidade: instabilidade da autoimagem ou do sentimento do self.
•
4-
Impulsividade.
•
5-
Gestos ou ameaças de suicídio ou automutilação.
•
6-
Instabilidade afetiva.
•
7-
Sentimentos crônicos de vazio.
•
8-
Raiva intensa e inapropriada ou dificuldades de controlá-la.
9- Ideação paranóide transitória reativa
ao stress ou sintomas
dissociativos graves.
Não há nenhuma
dificuldade em perceber que se trata de um arrolamento fenomênico sem nenhuma
gota de dinâmica. Esta, no entanto já vinha sendo procurada por diversos
psicanalistas que tentavam entender a dinâmica do borderline. Apresentarei
alguns desses esforços.
Stein em 1938 atribuiu
a “lesão narcísica severa” a uma “deficiente afeição maternal”, colocando a
ideia da importância da mãe na genealogia do borderline.
Knight (1954)
refere-se a um ego frágil que não consegue controlar impulsos inconscientes
primitivos. Tem, porém força suficiente para uma adaptação superficial à
realidade.
De acordo com Fried
(1956) o borderline ao se aproximar emocionalmente de outra pessoa teme a perda
da diferenciação e/ou de ser engolido pelo outro e então reage isolando-se e
tornando-se hostil. Greenson fala-nos da deficiência das funções do ego devido
a uma pobreza de relações de objeto e de identificações. Waelder em 1960
refere-se a um sentimento de vazio a partir do qual o borderline deseja se
apropriar do outro e tem medo de por ele ser engolfado: “Alguns tentam
emprestar dos outros, tornam-se satélites dos outros, imergem na multidão ou
situam-se pele com pele. Outros tentam preencher com conhecimento ou
experiência”. Outros temas da literatura sobe borderline são: escassas
identificações, distúrbios e busca de identidade, problemas na integração do
bom e do mau, difíceis relações com a realidade.
Bergeret tenta dar um
passo adiante buscando fundamentos para a sintomatologia do borderline. Ele
escolhe como um dos fundamentos a luta contra a depressão. Esta seria a
característica ubíqua do borderline. Para controlar a depressão o borderline
usaria a hipomania, a ansiedade, a relação anaclítica. Falhando estas formas de
compensação o borderline ver-se-ia lançado no poço da depressão.
Também Kernberg
procura fundamentos para a sintomatologia do borderline. Remete-nos então à
cisão. Não uma cisão kleiniana de Mãe-Boa e Mãe-Má. Para Kernberg teria havido
uma suficiente unificação do Bom e do Mau; a insuficiência estaria no recalque
dos conflitos primitivos, os quais, permanecendo perigosamente na beira da
consciência ameaçam com uma ansiedade disruptiva, o que ele tenta evitar com
uma mais superficial dissociação entre o Bom e o Mau.
Christopher Bollas
afirma que “a personalidade borderline busca inconscientemente a turbulência
emocional. Embora doloroso e perturbador, o estado de tumulto é desejado, e,
paradoxalmente, o encontrar-se num estado de angustia produz gratificação”.
Na genealogia do
borderline muitas vezes nos deparamos com uma situação infantil em que os
movimentos alternados de apego e libertação do infante não sensibilizam a mãe que
então pode vir a agir contrariamente ao desejo do bebê, criando dificuldades
psicológicas.
Uma outra situação que
poderia ser chamada de uma variante genealógica borderline é uma mãe que
necessita de uma relação fusional/simbiótica subjetiva de exclusividade,
impedindo que o filho tenha qualquer outra relação intersubjetiva que não seja
com ela, mãe.
Mas a hipótese que ao
final deste texto vou apresentar só poderá ser entendida se para além das
dinâmicas, entrarmos no terreno dos fundamentos (uma palavra que não aprecio e
que em meu livro sobre borderline substituí por “insinuâncias”). São as
seguintes as insinuâncias que uso: onipotência mitigada, compartimentação
(correspondente à cisão), dual-porosidade. Assim como a repressão/recalque está
na base da neurose, as insinuâncias arroladas influenciam o modo de estar no
mundo do borderline.
Apoiando-me na
classificação de Grinker tipifiquei o borderline em três categorias: O
borderline pesado, aquele que sofre e faz sofrer, o borderline falso self (ou
como se) e o borderline brando. Examinarei a questão do borderline brando ----
o borderline normal.
Pelo menos três
escritores psicanalistas se referem, de diferentes maneiras, ao borderline que
estou chamando de normal. São eles: Bergeret, Winnicott e Bleger.
Bergeret- citação: “existem tantos termos de passagem entre ‘normalidade’ e psicose
descompensada no seio da linhagem estrutural psicótica fixa, quanto entre
‘normalidade’ e neurose descompensada, no seio da linhagem estrutural neurótica
fixa (...) A noção de ‘normalidade’ estaria, assim, reservada a um estado de
adequação funcional feliz, unicamente no seio de uma estrutura fixa, seja esta
neurótica ou psicótica, sendo que a patologia corresponderia a uma ruptura do
equilíbrio dentro de uma mesma linhagem estrutural”. BERGERET, 1991, p. 28/9. Bergeret
considera a estrutura psicótica superior à estrutura neurótica: “Pode-se ser ‘normal’ sem haver atingido o nível edipiano, com a condição
de haver realizado uma verdadeira estrutura; contudo a estrutura do tipo
edipiano deve, da mesma forma, ser disposta em um nível elaborativo superior ao
da organização estrutural psicótica”. Ibidem, p. 43. Portanto Bergeret
acredita em uma normalidade neurótica e em uma normalidade borderline e coloca
a normalidade neurótica em um nível elaborativo superior.
Já Winnicott passa outra
impressão. Vejamos: “Os
psicanalistas experientes concordariam em que há uma gradação da normalidade
não somente no sentido da neurose, mas também da psicose, e que a relação
íntima entre depressão e normalidade já foi ressaltada. Pode ser verdade que há
um elo mais íntimo entre normalidade e psicose do que entre normalidade e
neurose; isto é, em certos aspectos. Por exemplo, o artista tem a habilidade e
a coragem de estar em contacto com os processos primitivos aos quais o
neurótico não tolera chegar, e que as pessoas sadias podem deixar passar para o
seu próprio empobrecimento”.[2]
Outra citação: “Se
tudo que foi dito antes pode ser dado como certo, podemos dizer, referindo-nos
a um bebê total relacionado a uma mãe total, que está estabelecido o estádio no
qual a posição depressiva pode ser alcançada. Se essa totalidade não pode ser
levada em conta, então nada do que tenho a dizer sobre a posição depressiva é
relevante. O bebê vai vivendo sem ela; e muitos conseguem [sublinhado
meu]. De fato, em tipos esquizóides pode não haver uma conquista significativa
da posição depressiva e, na ausência daquilo que pode ser descrito como
reparação e restituição, a recriação mágica é utilizada”.(Winnicott,
1954, p.440)
Parece-me que nas
citações de Winnicott há não só a admissão de uma normalidade borderline, mas
também uma valorização dos borderlines que teriam, frente ao neurótico, uma
maior riqueza vivencial e uma percepção mais apurada do inconsciente.
Já Bleger em seu livro
“Simbiose e ambiguidade” separa categoricamente o borderline (que ele chama de
personalidade ambígua) do neurótico sem nenhuma aparência de avaliação: “ ... a personalidade ambígua, rigorosamente
falando, não carece de ego nem de
sentido de realidade; ela possui um outro tipo de ego e outro sentido de
realidade. Disto se deduz que a onipotência (por exemplo) que caracteriza a
personalidade ambígua e a primitiva organização sincrética, não constitui uma
falta de sentido de realidade (em seu significado convencional), mas sim
configura uma relação distinta e um manejo diferente da realidade, que ainda
pode ser bem-sucedido para o sujeito. Neste sentido, a onipotência da
ambigüidade primitiva não é uma defesa frente à realidade, como um escape
frente à mesma, mas uma forma distinta de estruturá-la e manejá-la, o que não
exclui que possa servir como defesa por meio da regressão. O eu da personalidade
ambígua é sumamente cambiante e não se acha interiorizado como um eu definido
ou cristalizado”.[3]
Estes três autores
valorizam a personalidade borderline, mas todos eles colocam a neurose e o
borderline em compartimentos separados. Já eu tenho a impressão que se torna
cada vez mais difícil distinguir uma pessoa que seja exclusiva/predominantemente
neurótica de uma exclusiva/predominantemente borderline. Esta é a impressão
fenomênica que tenho com a amostra de meus analisandos. Eles ao mesmo tempo são
pessoas que sofreram recalques traumáticos como também sofreram incompreensões
ambientais quanto às suas necessidades relacionais intersubjetivas que lhes
permitiriam crescer e encontrar uma equilibração satisfatória. As repressões
traumáticas da atualidade tendem a ser mais benignas que malignas.
Historicamente falando, quando as repressões migraram de uma mais frequente
malignidade para uma mais amiudada benignidade a ditadura da repressão maligna
atenuou-se liberando um espaço psíquico que pôde ser ocupado por outros
processos psíquicos tais como repressão benigna, onipotência mitigada,
porosidade, compartimentação/cisão --- processos neuróticos e borderlines. Há
atualmente uma tendência das pessoas não se apresentarem nem como neuróticas
nem como borderlines o que pede do analista grande flexibilidade e vasto
repertório terapêutico: interpretação, construção, sugestão, explicação, apoio,
continência, experiência compartilhada, relação intersubjetiva, holding,
handling, e quaisquer outros recursos que façam sua aparição espontânea no
calor da relação terapêutica. Uma citação de André Martins poderá melhor
esclarecer esta concepção: “Seja mais,
seja menos, temos todos nossos traços neuróticos e psicóticos, ou neuróides e
psicóides. Somos todos borderlines. Entre os borderlines, as dificuldades e a
organização psíquica variam. Mas a saúde psíquica não está mais do lado da
neurose, como tampouco passou a estar do lado da psicose. Ela se encontra na
franja central, não no justo meio, que não há, mas na busca da expressão de
nossa criatividade com um mínimo de defesas, e em lidar bem com elas, nem
rigidificando-as, como na neurose, nem abrindo inteiramente mão delas, recaindo
em um descontrole emocional e da percepção da realidade, como na psicose”.
Então, a pessoa que se
apresenta para o analista não seria chamada nem de neurótico nem de borderline.
De que então? Valeria mesmo a pena nomeá-lo? Ou simplesmente dizer que “Fulano
sofre de Sofrimento” e ponto final?
Meu ponto de vista é
que seria fecundo dizer que todos nós humanos, vivemos, winnicottianamente, em
um espaço transicional e que somos todos, portanto, Homens Transicionais
(Homens no sentido de seres humanos). O espaço transicional permite justamente
uma inclusão universal. Trata-se de um espaço em que subjetivo e objetivo
convivem em variados graus. Se, para facilidade de entendimento imaginarmos o
espaço transicional como um lócus/linha, teríamos numa extremidade (e,
paradoxalmente fora dela), o subjetivamente concebido puro da psicose-modelo;
na outra extremidade (e ao mesmo tempo fora dela) teríamos a purificação objetificante,
um processo psíquico próprio da neurose modelo. E ao longo da linha (que já
podemos imaginativamente expandir para lócus/espaço) teríamos as várias
possibilidades de mistura do subjetivamente concebido com o objetivamente percebido.
Durante um tratamento esta composição de objetivo/subjetivo sofre flutuações. Creio
que podemos dizer que os lugares próprios e mais adequados do homem
contemporâneo estariam no miolo do espaço transicional, portanto afastado de
suas extremidades subjetiva e objetiva. Neste miolo o Homem Transicional viverá
tanto o subjetivamente concebido como o objetivamente percebido tratando de
conseguir uma equilibração ( prefiro usar a inventada palavra equilibração a
equilíbrio, pois esta última dá uma impressão de estabilidade que quero evitar).
Para isso será preciso que use flexivelmente os processos psíquicos de
repressão/recalque, de onipotência mitigada, de divisão e compartimentação e de
graduada e seletiva porosidade. Quando a equilibração falha o psicanalista
poderá ser chamado para, junto com o analisando, procurar as circunstâncias das
falhas retomando-se o trabalho de permanente equilibração, recorrendo para isto
a um vasto repertório terapêutico a ser usado de acordo com as peculiaridades
das vivências do analisando. O analista não procurará saber se o futuro
analisando é neurótico, borderline ou psicótico. Ele estará diante de um Homem
Transicional que será conhecido em sua singularidade, expressa em parte pelas sucessivas
posições (lócus) ocupadas no Espaço Transicional.
Nahman
Armony
Junho/2014
Publicado na
revista RABISCO vol.4, n.2, outubro de 2014