MANIPULAÇÃO E MOBILIZAÇÃO

MANIPULAÇÃO E MOBILIZAÇÃO[1]
NAHMAN ARMONY
Uma controvérsia que aos poucos vai esmorecendo ainda é suficientemente intensa para merecer um estudo. Refiro-me à questão da manipulação e controle que o cliente procura exercer sobre o psicoterapeuta. Nos extremos desta questão colocam-se, por um lado, aqueles que temem o controle como o supremo pecado da psicanálise e, por outro, aqueles que “entram no jogo do cliente” na esperança de lhe fornecer uma ajuda terapêutica. A primeira atítude dominava, soberana, os arraiais da psicanálise até há algum tempo. Sempre, porém, desde os primórdios da psicanálise houve vozes discordantes, a princípio isoladas, aos poucos mais encorpadas. Marion Milner (1969, pág. 107) escreve: “Todo este tempo ouvi muito os analistas falarem da necessidade de constante interpretação das muitas maneiras sutis pelas quais os pacientes buscam, inconscientemente, controlar o analista e a análise. No entanto, este procedimento, com Susan, somente a submergia em um profundo desespero, até um estado no qual todo contato entre nós parecia estar perdido”. Searles (1961), ao cunhar a figura da “Simbiose terapêutica”, eleva o assim chamado envolvimento à condição de instrumento terapêutíco. É preciso, porém, cui­dado: Milner, Searles, Sechehaye (1947), Sullivan (1962), Fromm-Reichmann (1962) e outros, estão se referindo a pacientes psicóticos ou a núcleos psicóticos da personalidade. Diante desta situação, o analista fica mobilizado, no sentido de desempenhar os papéis assinalados pelo clíente, tendo os sentimentos e reações que este procura despertar. “Impõe-se-nos uma conclusão inesperada e surpreendente, isto é, que a tela elemento-beta (chamá-la-ei de tela-beta, daqui por diante, para abreviar) apresenta a capacidade de promover a espécie de reação que o paciente deseja, ou, por outro lado, a resposta do analista fortemente carregada de contratransferêncía” (Bion, 1962, pág. 39). Quando escrevi, acima, o analista fica mobilizado, usei esta última palavra deliberadamente, para distingui-la de um outro termo cuja simples menção provoca, em inúmeros analistas, um arrepio de medo e horror; trata-se da palavra manipulação, ou controle. Diante da possibilidade de estar sendo manipulado, o analista coloca-se numa posição defensiva, dura e rígida, com receio de estar sendo levado por caminhos malditos, de não estar fazendo a “verdadeira psicanálise", de estar sendo dominado pelo cliente.
É justamente neste ponto que cabe distinguir mobilízação (ou comoção) de manipulação (ou controle). Contratransferencialmente, elas se distinguem por apresentar, a primeira, um caráter de urgência, de apelo primitivo que, se desconsiderado, poderá levar ao ísolamento ou ao desespero quase sem possibilidade de retomo. Já a manipulação ressoa inautêntica, superficial; parece ter a finalidade de amarrar o terapeuta, manter intactos os dinamismos, impedir o desenvolvimento da díade. A não-resposta vivencial à manipulação não desperta o sentido de perigo para as bases da personalidade, não atinge os aspectos de confiança e segurança básicos, pois o rompimento a partir da manipulação tem a ver com a dificuldade de aceitar um processo de reestruturação da personalidade. Já o rompimento a partir de uma defensividade do terapeuta em relação à mobilização coloca o cliente em uma situação de perigo, cujas menores consequências poderiam ser o isolamento e a loucura. sem que possamos esquecer, também, da possibilidade de algo mais definitivo e irremediável como o suicídio. Estes desdobramentos possíveis têm a ver com o sentimento de perda de um semelhante com o qual se necessita, vitalmente, fazer uma relação simbiótica. A resposta vivencial à mobilização aproxima os participantes da díade, melhorando as condições do trabalho terapêutico. Cliente e analista se sentem mais unidos em uma tarefa comum, e não imobilizados como ocorre na resposta vivencial à manipulação. Examinemos mais detidamente esta diferença: Na mobilização as emoções são mais intensas que na manipulação, e vividas de uma forma mais pessoal. Na manipulação os sentimentos não penetram diretamente dentro do terapeuta, mas ficam como que colocados em um espaço intermediário, a partir do qual o terapeuta pode percebê-los e senti-los. Esta distância permite-lhe ter uma visão mais isenta dos acontecimentos do que é possível na mobílízação, onde um afastamento depende de um esforço maior. O que também aparece na manipulação é uma ansiedade referida às consequências de “não entrar no jogo” do cliente: O cliente irá embora? Ficará zangado? Rejeitará o terapeuta? Controlará o terapeuta?
Nenhuma destas perguntas tem a força e a gravidade daquelas que surgem a partir da mobilização, onde as questões referem-se à integridade psíquica e às vezes física do analisando e do analista. As perguntas, porém, só são formuladas em um segundo momento. No primeiro instante o que aparece é uma vivência que só depois pode ser percebida, interrogada. compreendida. Trata-se de uma espécie de comunicação primitiva, que impele o terapeuta a mudar o enquadre psicanalítico. Assemelha-se ao apelo primitivo que existe no choro da criança que mobiliza a mãe, ou no grito de alerta de um animal contagiando os companheiros do grupo. Quando o terapeuta inibe a sua resposta vivencial, o apelo e a mensagem caem no vazio, aumentando a tensão. Estamos agora em melhores condições para compreender por que a mobilização aproxima a díada terapêutica. Na resposta vivencial do terapeuta à mobilização, a tensão, que se acumulava no relacionamento da díade, descarrega-se. Há uma sensação de alívio – e a possibilidade de retomar o trabalho tera­pêutico de maneira mais fluente e livre. Surgem novas aberturas a partir da experiência vital partilhada. Aquilo que, em termos de vivência, não tinha forma, era “flou”, vago, frouxo – não se lhe podendo, pois, dar um nome – passa a ter consistência, a apresentar contornos, torna-se visível, concreto e, portanto, pode, a partir de então, ser nomeado. Neste processo todo há um aprofundamento da transferência, os dois membros da díade reconhecem-se cada vez mais como membros de uma comunidade fantasmática. O laço ima­ginârio solidifica-se entre os dois, e agora eles já não mais se estranham. Há um sentimento de familiaridade, de união, que lhes permite enfrentar tempos tormentosos sem romper a relação.
Se acharmos, agora, necessário rastrear e desvendar as concepções teóricas que se ocultam nas descrições da contratransferência, formando com estas um amálgama do qual não se conhece princípio e fim, poderemos encontra-las em Bion, M. Klein e Freud. “Graças à tela-beta, o paciente psicótico apresenta a capacidade de despertar emoções no analista. Suas asso­ciações são os elementos da tela-beta, que se destinam a estimular as interpretações ou outras respostas que se relacionam menos com a sua necessidade de ínterpretação psicanalítica que com a sua necessidade de produzir en­volvimento emocional (...) Ele não se empenha em manipular o analista da mes­ma maneira que o neurótico” (Bion, 1962, pág. 40). Quando se fala de mani­pulação neurótica, a referência teórica não é mais a tela-beta, mas sim a bar­reira-de-contato, isto é, os elementos e a função alfa. Esta aproximaçlo teóri­ca permite explicar a razão pela qual a manipu1ação não apresenta o caráter de urgência e apelo·da mobilização. Na manipulação está em pauta·o prin­cípio de realidade, enquanto que na mobi1ização é o princípio do prazer que predomina. “Só os elementos-beta se utilizam para qualquer atividade que substitua o pensar, e eles só servem para ser evacuados – talvez através da ação da identificação projetiva. Estes elementos-beta se tratam por processo de defecação semelhante aos movimentos da musculatura, das mudanças de semblante, etc., que se destinam, segundo Freud, a livrar a personalidade dos acréscimos de estímulos e não a efetuar modifícações no ambiente” (Bíon, 1962, pág. 29). “Nova função foi então atribuída à descarga motora que, sob o predomínio do princípio do prazer, servira como meio de aliviar o apa­relho mental de adições de estímulos, e que realizara esta tarefa ao enviar inervações pata o interior do corpo (conduzindo a movimentos expressivos, mímica facial e manifestações de afeto). A descarga motora foi agora empre­gada na alteração apropriada da realidade" (Freud, 1911, pág, 280). Na mani­pulação, o cliente, encontrando-se diante da realidade da situação analítica. uma realidade que pretende promover modificações estruturais na sua perso­nalidade, tenta, consciente ou inconscientemente, modificar esta realidade que se lhe apresenta, usando para isto a função alfa, isto é, aquela função que per­mite desde o pensamento oníríco inconsciente até o pensamento consciente mais elaborado. Já na mobilização há um movimento maciço da personalidade, no sentido de “aliviar o aparelho mental de adições de estímulos”. Os elementos beta são evacuados para fora do aparelho mental através da identifi­cação projetiva. Porém, junto com esta função primária de descarga, há uma importantíssima função secundária de comunicação. “O enchimento dos neurônios nucleares em psi terá como resultado uma propensão à descarga, uma urgência que se libera por via motora. A experiência demonstra que aqui, a primeira via a ser seguida é a que conduz à alteração interna (expressão das emoções, grito, inervação vascular)... O organismo humano é, a princípio, incapaz de levar a cabo esta ação específica. Ela se efetua por meio de assistência alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é atraída para o estado em que se encontra a criança, mediante a condução da descarga pela via da alteração interna (por exemplo, pelo grito da criança). Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação (...)” (Freud, 1895, pags, 421-422). Mas que espécie de comunícação é esta? Evidentemente não se trata de comunicação simbólica, pois esta se realiza por intermédio de elementos alfa. Seria, antes, um tipo de comunicação primitiva, que se utiliza dos elementos beta. Os conceitos de identíficação projetiva e contraidentificação projetiva cobrem adequadamente esta espécie de comunicação. O sentimento contratransferencial, como já foi dito, é de não haver um espaço-tempo separando terapeuta de cliente. A sensação é a de que os conteúdos de um dos membros da díade terapêutica são jogados diretamente no no interior do outro, comovendo-o, mobilizando-o, motivando-o a atender ao apelo primitivo.
Na prática clínica, como seria de se esperar, não é possível distinguir facilmente o sentimento de estar sendo manipulado do de estar sendo mobilizado. As misturas e confusões são frequentes. O funcionamento da tela-beta e da barreira-de-contato podem se alternar em curtos períodos de tempo; os elementos alfa despojados não se distinguem de beta (Bion, 1962, pág. 41), os elementos alfa que deveriam ser usados no “pensar” podem ser empregados na identificação projetiva, como se fossem elementos beta (ibid., pág.102); é também possível, estar o cliente funcionando em termos de princípio de realidade, e mesmo assim utilizar-se de elementos beta ou de elementos alfa despojados como forma de comunicação mobilizadora. Não obstante estas dificuldades, mantém-se a importância da distinção entre mobilização e manipulação. A partir do conhecimento desta diferença é possível apurar cada vez mais a sensibilidade para detectá-la. Um exemplo: O cliente é de um psicanalista a quem dei supervisão. Apresenta um dinamismo depressivo predominante. O sintoma depressão surgia em pelo menos dois pontos da da cadeia dinâmica típica do dinamismo depressivo. Ou surgia da frustração – raiva, ou a partir de uma quase absoluta desesperança de reconquistar a proteção da Mãe Onipotente Idealizada No primeiro caso, surtiam efeito as interpretações referentes à raiva dirigida contra si próprio, com a fInalidade de, 1º – castigar a Mãe Idealizada Abandonadora e 2º - fazer com que esta Mãe Idealizada tivesse um desempenho Protetor Onipotente. É claro que aqui estamos no nível de pensamento onírico (Bion, 1962, pag, 143) e, portanto, de elementos alfa. Trata-se, então, de uma manipulação que deve ser interpre­tada. Estas mesmas interpretações não surtiram efeito quando a depressão era fruto de uma desesperança sentida em relação à possibilidade de reconquista da Mãe Onipotente. Estamos, aqui, na região do apelo primitivo, da mobílização dos elementos beta, da identificação e da contraidentificação projetiva. Nestas circunstâncias, o que funcionou foi uma atitude de com­preensão, receptividade, acolhimento maternal. As intervenções eram do tipo “Você está se sentindo só...”, que revelavam uma empatia do terapeuta com o analisando. Tendo o analista podido sentir a diferença entre manipulação e mobilização, pôde responder adequadamente às duas espécies do sintoma “depressão” que ocorreram no quadro do dinamismo depressivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BION. W. R. (1962): “Os Elementos da Psicanálise”, 1ª Edição – Rio de Ja­neiro, Zahar Editores, 1966.
FREUD, S. (1895): “Projeto para uma Psicologia Cíentifica”, Edição Stan­dard Brasileira, Vol. I, Rio de Janeiro, Imago Ed. Ltda. – 1ª Edição, 1977.
FREUD. S. (1911): “Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental”, Idem, Vol XII
FROMM-REICHMANN, F. (1962): Psicoterapia de las Psicoses, Buenos Aires, Ediciones Hormé.
MILNER, M. (1969): The Hands of the Living God, New York, International Universities Press.




[1]  Título original: “Distanciamento X Envolvimento: Uma opção necessária?” – GRADIVA, n. 6, agosto de 1980.

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