INFIDELIDADE E CIÚME: NATURALIZAÇÃO E DESNATURALIZAÇÃO

A tendência adulterina humana existe desde os primeiros tempos e nunca deixou de existir. Não só provoca ciúme como vai além: é condenada como uma aberração o que justifica atos de extrema crueldade. Se fosse aceita como natural, haveria menos  sofrimento e menos conseqüências trágicas.   

 Nós, humanos, aceitamos sem estranheza nem questionamento as leis físicas, como “o que é jogado para o alto cai”, “o fogo queima” e “a água molha”. São fatos da natureza e em relação a eles não surge nenhuma indagação. Fazem parte do funcionamento do mundo. Nós os aceitamos e não os achamos enigmáticos, a não ser que nos coloquemos em uma perspectiva filosófica.
Há, porém, outras regularidades que nos intrigam, como a da moeda que, se lançada incontáveis vezes, se aproximará cada vez mais de 50% de cara e 50% de coroa. Faz parte dos fatos que temos de aceitar, embora os estranhemos. Nós os aceitamos quando fazemos nossas apostas dentro de um cálculo de probabilidades. O que temos dificuldade de aceitar são certas regularidades humanas. Elas existem há milênios e as repudiamos. Uma delas -- e de grande importância pelas conseqüências -- é a tendência adulterina dos humanos. Ao lado da tendência monogâmica, a mais aceita e valorizada pela subjetividade atual, existe uma tendência poligâmica, repudiada e estigmatizada. A pergunta é: por que uma regularidade que existe há milênios ainda não foi incorporada à subjetividade como algo inerente à natureza humana? A infidelidade está em toda a parte: nos jornais, nas fofocas, na história, na política... No livro O Movimento Pendular, de Alberto Mussa, encontramos a tese de que “o conceito de adultério foi anterior ao de incesto, sendo o adultério, e não o incesto, essa instituição fundamental do Homo sapiens” --  palavras do próprio autor em entrevista para o site da Livraria Record. Mas o infiel é visto pejorativa e preconceituosamente, como se o impulso amoroso e sexual fora da relação a dois fosse maligno, indigno, inaceitável, moralmente hediondo. Isso não quer dizer que o ser humano seja indiferente à infidelidade: a decepção e o ciúme são suas conseqüências inevitáveis.
O ciúme tem uma base biológica: o macho de qualquer espécie animal quer que seus genes predominem e para isso precisa evitar que as fêmeas copulem com outros machos. O ciúme está a serviço da raiva e da agressividade, levando o ofendido a anular o rival. Carregamos essa herança atávica em nossos cromossomos, mas o processo civilizatório conseguiu atenuá-la com o passar dos séculos. Porém, como humanos, introduzimos outra complicação. Em nossa infância dependente -- o bebê humano é o mais desamparado e dependente entre todos os mamíferos --, apegamo-nos a nossa mãe e tememos perdê-la, razão pela qual qualquer pessoa que dela se aproxime será objeto de ciúme, raiva e desejo de destruição. Ao crescermos elaboramos esses sentimentos, mas eles persistem de forma atenuada e disfarçada. Assim como fomos “reizinhos” para nossa mãe, assim como fizemos uma fantasia de exclusividade, assim queremos, ao nos tornarmos adultos, que nosso “The One” só tenha olhos de amor erótico e apaixonado para nós; desejamos repetir na idade adulta a fantasia infantil arcaica de ser o Único para aquela pessoa. Aí estão algumas das bases da violência apaixonada com que se vive a infidelidade. Mas o homem já se deparou com muitas realidades intoleráveis que acabou aceitando. Por que não pode acatar que, como o ciúme, a infidelidade é um dado inevitável da natureza humana? A desnaturalização da infidelidade torna o ciúme ainda mais perigoso, pois as pessoas se sentem justificadas para tratar o infiel como um deformado mental a ser punido ou destruído. Se se retirasse a pecha de aberração da infidelidade, seria mais fácil lidar com o ciúme, reduzindo o sofrimento e evitando conseqüências trágicas.
            Nahman Armony


Primeira publicação na revista CARAS.

DETALHES

 AS SUTIS DEPRECIAÇÕES
                                       
Frequentemente encontra-se em casais, por mais harmoniosos que sejam um jogo de poder. Este poderia até ser chamado de tendência universal, tão espalhado se encontra, envolvendo mesmo os menos belicosos e competitivos e mais propensos ao entendimento. E, no entanto, sua frequência pode ter um efeito devastador, acabando com relações promissoras. É o caso mais ou menos óbvio de um casal em que um de seus membros é frequentemente interrompido pelo companheiro, tendo dificuldade de terminar o seu pensamento ou a sua história. A repetição desta situação provoca naquele que costuma ser interrompido um sentimento de falta de espaço, de não ser importante, de não ter um lugar digno, onde se sinta valorizado e participante em condições de igualdade com o outro. Existem comportamentos tão sutilmente depreciativos que geram no observador, pensamentos do tipo “que criancice”, mas que ao insistirem podem ter um efeito devastador para a relação. São comportamentos dos quais pode ser que nenhum dos parceiros se dê conta, mas cuja contumácia é mortal para a relação. Darei um exemplo que me foi relatado por um cliente consciente da dinâmica do casal, perceptivo em relação aos seus sentimentos e capaz de colocá-los em palavras. Sabe felizmente que o acontecimento foi eventual e que a luta pelo poder, pela superioridade sobre o outro (que frequentemente advém de um sentimento de inferioridade permanente ou ocasional) é uma característica que acompanha o homem desde priscas eras, sendo preciso aprender a lidar com ele. Com a minha ajuda seu aborrecimento praticamente desvaneceu-se. Mas vamos ao exemplo que servirá como alerta de como algo banal pode ter um grande peso numa relação.
        Meu paciente relatou que a esposa, tarde da noite, cansada, estava tentando estacionar o carro numa vaga que facilitasse sua saída no dia seguinte. Tentou repetidas vezes e ela apesar de ótima manobrista estava cansada e sonolenta, falhando seguidamente. No entanto continuava no seu propósito. O marido então ofereceu sua ajuda. A oferta foi feita várias vezes sem que ele obtivesse uma resposta verbal Finalmente julgou perceber na expressão corporal da esposa, um pedido de ajuda. Saiu do carro e passou a orientar as manobras. Seu sentimento era de que tinha uma percepção clara do que deveria ser feito. E subitamente a esposa que não estava seguindo suas instruções resolveu desistir da ajuda e colocou o carro numa posição incômoda, deixando a manobra difícil para o momento da saída. Meu paciente se ressentiu deste gesto, pois ele respeitara a capacidade e autonomia dela, só interferindo quando percebeu um exasperado e inaudível pedido de ajuda. O casal foi dormir agastado. É claro que precisamos acrescentar outros ingredientes que estavam atuando como, por exemplo, a impaciência do marido de logo chegar ao lar; o fato de que naquele dia havia passado por algumas situações em que suas ideias não foram acolhidas. Por outro lado, disse eu, era preciso levar em consideração o lado da esposa: sua ideia feminista de opressão masculina secular: as dificuldades de vida que a esposa vinha enfrentando e que exigiam dela uma força que parecia estar além de suas possibilidades, mas que ao ser convocada permitia-lhe lidar com os problemas que estava atravessando.
        Esta vinheta tem a intenção de mostrar aos casais como pequenos atos competitivos quando repetidos, podem ter grandes repercussões. Uma boa conversa, franca e tranquila sobre o acontecimento --- tomando o cuidado de evitar fazer do diálogo mais um episódio de luta pelo poder onde a razão e superioridade de um teria de prevalecer sobre o outro --- desfaz o ressentimento.      
                        Nahman Armony

     Primeira publicação na revista CARAS.

POEMA DA CONDIÇÃO HUMANA

  Grande pássaro metálico
  De altos vôos noturnos
  Grande mãe indiferente
  Cumprindo seu destino cósmico

                        Varando espaços
                        Cavalgando nuvens
                        Dominando infinitos
                        Iluminando astros.
             
  Como podes amar os filhos que carregas em teu bojo? 
  Se eles são tão fracos, tão mesquinhos
  Tão sem asas
  Se eles apenas pensam em voltar para a Terra?

  Eles estão em segurança dentro de seu corpo
  E isto lhes basta.
  Isto a liberta para as estrelas, 
  Para o infinito.
  Para aquilo que só pode ser adivinhado
  De dentro da Noite Onírica
  Fendida pelo Grande Pássaro Mitológico.

  Pobres filhos abandonados
  Pobres filhos feitos de barro e medo,
  De desejo e ambição.
  Pobres filhos que mal podem entrever
  O etéreo mundo habitado
  Pelos Grandes Pássaros Mitológicos.
                             Nahman Armony
                                      

VIOLÊNCIA

VIOLÊNCIA: UMA VISÃO TRANSDISCIPLINAR COM ÊNFASE NA PSICANÁLISE
        A violência é um fenômeno onipresente no tempo e no espaço; atravessa toda a história e todas as culturas. Algumas culturas estimulam a violência e outras a inibem. O capitalismo contemporâneo, mercadológico e consumista estimula a competição e o consumo desenfreados criando condições para o exercício da impiedade. Uma crueldade que se infiltra em todas as atividades humanas e cujos primórdios já aparecem nas primeiras relações humanas. O modo pelo qual a sociedade, através dos pais, criam seus bebês em crescimento insere-se numa totalidade que produz para uma subjetividade que estimula e valoriza a competição, o consumo, a impiedade, as relações de submissão, a manutenção do statu quo, etc. Veremos no decorrer do artigo como Winnicott propõe outra forma de criação/educação baseada na transmissão de princípios organizadores diferentes dos princípios organizadores do capitalismo consumista.
        As culturas agem sobre as subjetividades desde o início da vida. Eric Erikson em seu livro “Infância e Sociedade” nos mostra que a criança é criada e educada para se tornar um adulto com os valores, preconceitos e costumes do grupo. Margaret Mead confirma essa visão em seu livro “Sexo e temperamento” ao estudar as tribos Mudungumor e Arapesh. A cultura é um aparelhamento de uma força extraordinária, podendo mesmo superar instintos básicos do ser humano, inclusive o de auto- preservação. Dois exemplos: monges ateiam fogo em si mesmos; guerrilheiros explodem seus corpos em atentados terroristas.
A ação cultural se inicia muito cedo, ainda quando o ser humano é um bebê. A mãe é a grande transmissora dos preceitos culturais da sociedade em que vive. As vivências iniciais do ser humano exercem extrema influência sobre o restante da vida e estão fora do alcance da consciência. Daí a força e a importância da relação mãe-bebê. Winnicott e Piera Aulagnier divergem quanto ao modo de criar/educar o ser humano. Piera Aulagnier preconiza uma criação-educação predominantemente de fora para dentro. Winnicott inverte a direção dando maior crédito à assimilação da cultura, assimilação essa que é o par inseparável da criatividade. Bruno Cancio fez uma resenha do livro “A violência da interpretação” de P.Aulagnier bastante esclarecedora. Citando-o: “Dos conceptos de importancia establecidos en la obra son los de violencia primaria y secundaria. Por violencia primaria se entiende ‘...lo que en un campo psíquico se impone desde el exterior a expensas de una primera violación de un espacio y de una actividad que obedece a leyes heterogéneas al yo...’(Piera Aulagnier). Se trata de una acción necesaria y que contribuirá a la futura constitución del yo. A través de ésta se le impone a la psique ajena un pensamiento, acción o elección producidos por el deseo de quien lo impone, pero que da respuesta a una necesidad a quien le es impuesto. De esta forma, se consigue entrelazar deseo de uno y necesidad del otro, dando lugar a la demanda. El deseo de quien ejerce la violencia pasará, a partir de allí, a ser demandado por quien la padece.
Por otro lado, violencia secundaria hace referencia a ‘un exceso por lo general perjudicial y nunca necesario para el funcionamiento del Yo’(Piera Aulagnier) y que se apoya en su precedente, la violencia primaria. En este caso se trata de una violencia ejercida contra el yo, ya sea por un conflicto con otro ‘yo’ o con un discurso social que intenta oponerse a toda suerte de cambios que pudieran producirse en los modelos por él previamente instituídos”.
Winnicott não concorda com uma criação/educação impositiva como Aulagnier propõe. Um exemplo esclarecedor nós o encontramos no artigo “Moral e Educação”. Tentando sintetizar um artigo longo e complexo, consigo dizer o seguinte: Winnicott está respondendo a uma palestra anterior à sua onde foi citada a seguinte fala de um reitor para uma criança: “Você acreditará no Espírito Santo às 5 horas desta tarde ou a espancarei até que o faça”. Os exemplos extremos servem para deixar claro uma orientação paradigmática que neste caso é um paradigma autoritário não aceito por Winnicott. Para ele o autoritarismo é uma invasão/intrusão no self do outro, tornando-o submisso e dependente. Neste artigo ele, confronta o autoritarismo adoecedor que tenta impor conceitos exteriores à experiência do outro, com uma experiência interior, uma “crença em” que resulta de uma convivência suficientemente boa com os pais.  Quando o horizonte se abre para além dos pais, a criança que está crescendo precisa algo maior em que acreditar. É hora dos pais, da escola, da sociedade apresentarem as diversas possibilidades de crenças existentes, respeitando sua eventual busca por outra crença que não aquelas que lhe foram mostradas. A imposição é uma invasão do psiquismo do outro, uma tentativa de dominá-lo, colonizá-lo, tornando-o revoltado, conformado e violento em vários graus. Mesmo os conformados --- que engolem os traumas advindos das invasões e os acumulam não sabendo de onde veem, pois a relação dominador-dominado é frequentemente inconsciente e aceita como algo natural --- podem ter explosões espontâneas de ódio indiscriminado muitas vezes despertados por fatos insignificantes.
Ao invés de tentar impingir uma crença dever-se-ia, segundo Winnicott, aceitar a criatividade espontânea do ser humano. Criatividade tem dois sentidos: um primeiro que todos nós conhecemos, e um winnicottiano que é um paradoxo: criamos o que já existe. Não é preciso forçar a realidade para dentro da cabeça das pessoas, mas sim cuidar para que a criatividade de cada um encontre a sua realidade que é um arranjo pessoal do subjetivamente concebido e objetivamente percebido.  
Desenvolverei um pouco mais a ideia de criatividade winnicottiana. O ser humano cria o que já existe. Seu exemplo mor é o bebê que ainda não teve a primeira mamada e que ao sentir fome procura algo que termine com o seu anseio. Este algo é uma vagueza  impressionista de seio que ele virá a conhecer tanto melhor quanto mais com ele se relacionar. A vivência do bebê é de que foi ele quem criou o seio desde que o seio apareça na hora da fome. Da mesma maneira a função da sociedade é apresentar diversas alternativas para escolha aceitando a contribuição de novas opções e não impor, seja por que meio for, suas crenças. Mesmo porque o ser humano tem um impulso inerente de pertencimento e precisará escolher um gancho na cultura para exercer sua criatividade. A imposição, o conformismo e a revolta são combustíveis para a violência. Precisamos deixar para trás tanto o paradigma autoritário quanto o paradigma permissivo e aperfeiçoar um paradigma ecológico/poroso/humanitário/holístico.
Ao que parece já nos adentramos firmemente na psicanálise de inspiração predominantemente winnicottiana. É claro que os fatores que levam à violência são inúmeros e é preciso a colaboração de muitas disciplinas para um maior entendimento deste fenômeno que parece estar se intensificando tanto no nível macro (guerra, terrorismo, tráfico, repressão violenta, etc.), no micro (assaltos, furtos, roubos, mortes, balas perdidas, violência doméstica, violências discriminatórias, etc.) e no nano (dinâmicas bi e plurisubjetivas). Não podemos esquecer os fatores psicossociais como, por exemplo, as consequências psíquicas de um sentimento de exclusão das benesses dos mais afortunados que pode levar a ações violentas, o fanatismo religioso fundametalista, a glamorização dos traficantes e especialmente dos chefes do tráfico que se tornam figuras fortes de identificação para uma parcela das crianças e adolescentes das comunidades que eram chamadas de favelas . O que também vemos são jovens das classes médias altas exercendo violência através de roubos, ataques a populações marginalizadas (incendiar índios, atacar mendigos, atacar homossexuais, etc.). Podemos compreender o comportamento violento dos que se sentem inferiorizados, excluídos, injustiçados e que necessitam de figuras fortes de identificação e de uma cultura e ética próprias. Mas, e os jovens da classe média alta que têm acesso ao conforto, diversão e que estão up-to-date com as tecnologias emergentes? Aqui é onde melhor a psicanálise pode dar a sua colaboração.
O ritmo atual de vida faz com que tanto o pai quanto a mãe fiquem, por muito tempo, ausentes do lar. Com isto a assistência afetiva aos filhos sofre danos. Isto é especialmente grave para os infantes, pois eles necessitam de cuidados maiores. Segundo Winnicott para que a criatura humana crie uma base psicomentessomática sólida (integração, personalização) necessita de um tempo de fusão com a mãe à qual ele deu o nome de dependência absoluta, seguida de um outro período que denominou de dependência relativa. A primeira se caracteriza pelo imediato atendimento pela mãe ou figura substituta das necessidades físicas e psicológicas do bebê. Para isso a mãe deverá estar em um estado de “preocupação materna primária” na qual ela se encontra hiperatenta e hipersensível em relação ao bebê de tal maneira que possa atendê-lo imediatamente ou até mesmo prever o desconforto do filho. Na dependência relativa não é mais necessário que a mãe esteja em estado de preocupação materna primária, pois é uma fase em que o bebê, ao se diferenciar da mãe, sofrerá frustrações (desilusões). De qualquer maneira, embora em nível diferente, a mãe deverá continuar sensível e afinada com seu rebento, especialmente para certos comportamentos. Um dos mais relevantes é a conduta de aproximação e afastamento da mãe. A mãe sensível e sem grandes problemas em relação à oscilação do bebê entre dependência e independência, aceitará de bom grado tanto o seu afastamento quanto o seu retorno à segurança do colo materno. Para que essa dinâmica funcione bem é necessário não só que a mãe esteja presente, mas que não seja solicitada pelo trabalho profissional do qual se afastou, nem esteja preocupada  com a contabilidade da família. Este é um item problemático. Não só a vida atual envolve a mãe, deixando-a preocupada e, portanto, afetivamente menos disponível para o bebê do ponto de vista da sensibilidade porosa, mas também o hedonismo característico de nossa cultura faz com que a mãe se separe do bebê quando ele ainda não está preparado para isto. Sem falar das ausências que acontecem por conta do trabalho executivo ou de outro tipo.
Na área da criminalidade Winnicott também dá a sua contribuição. Mais que uma contribuição é uma revolução, pois ele ao procurar, nas crianças, as origens dos atos antissociais percebe que estes estão além da agressão: são pedidos de socorro e, no caso de roubos, uma apropriação simbólica de uma mãe que o está abandonando. Para entender melhor esta dinâmica vou recorrer a dois conceitos winnicottianos relacionados entre si: privação e deprivação (anglicismo derivado da palavra deprivation). O atendimento insuficiente às necessidades do bebê na fase de dependência absoluta ---- quando o ambiente ainda não se distingue do si-mesmo, só existindo um bebê que é o próprio mundo ---- facilita o ingresso no delírio e na psicose. Ele foi privado de um ambiente suficientemente bom, mas não sabe disso por não possuir ainda um eu distinto do não-eu. Porém, se ele teve a experiência de ser bem cuidado na fase de fusão, sentir-se-á lesado se na fase de dependência relativa os pais não forem suficientemente presentes e sensíveis. Ele se perceberá deprivado, pois diferentemente do privado, perdeu o que já havia tido. Sentindo-se negligenciado pelos pais passa a aborrecê-los através de birras, desafios, e também de pequenos atos delituosos como roubar, maltratar pequenos animais, exercer ações destrutivas, etc. Estes atos são gestos de esperança, tentativas de recuperar os pais, maneiras de chamar a atenção, pedidos de socorro. Exp.: (p.407 – Da pediatria à psicanálise – Tendência antissocial)   Winnicott foi procurado por uma mãe cujo filho mais velho tinha a compulsão de roubar que “estava se transformando em algo bastante sério. Ele estava roubando muito, tanto em lojas quanto em casa”. Winnicott sugeriu: “Por que você não lhe diz que sabe que quando ele rouba, não são realmente aquelas coisas que ele quer, e sim alguma outra coisa à qual ele acha que tem direito? Que é como se ele estivesse fazendo uma reclamação a seu pai e sua mãe, por sentir a falta do seu amor?” Winnicott continua: “Algum tempo depois recebi uma carta contando-me que ela havia feito o que sugeri. Dizia ela: ‘Eu lhe disse que o que ele realmente queria, quando roubava dinheiro e comida e outras coisas, era sua mãe. E devo dizer que na verdade eu não esperava que ele compreendesse, mas ele pareceu compreender. Eu lhe perguntei se ele achava que nós não o amávamos por ele ser às vezes tão difícil, e ele disse imediatamente que em sua opinião nós não o amávamos muito..... Então eu lhe disse que ele nunca, nunca deveria duvidar disso de novo, e se em algum momento ele tivesse alguma dúvida era só me lembrar que eu lhe diria de novo..... De modo que tenho feito muito mais demonstrações, a fim de evitar que ele venha a duvidar outra vez. E até este momento não houve um único roubo’. Agora oito meses depois, é possível relatar que não houve mais roubos e que o relacionamento entre o menino e a sua família melhorou muito”. (Ibid, p.407/8). Se a tendência antissocial não for tratada na fase de crescimento, tenderá, com o passar dos anos, a se tornar uma psicopatia.      
Uma criança com o eu inflado e sem limites por ação/omissão dos pais não sairá da situação de “Sua Majestade, o Bebê”. O mundo lhe deverá obediência e reverência. Nada poderá se interpor no seu caminho. Todos seus desejos terão de ser atendidos. Uma cabeça dessas acaba tomando o caminho da agressividade e violência. Isso se torna ainda mais problemático quando a mãe necessitada de simbiose não consegue colocar limites para o filho adolescente ou adulto.
Há outras condições psicológicas que facilitam o aparecimento da violência. A intolerância à frustração, as fantasias persecutórias inconscientes, a excessiva competitividade, a autoestima baixa, dificuldades na transição da dependência absoluta à dependência relativa, etc.
HANNA ARENDT E A BANALIDADE DO MAL
Quando foi designada para a cobertura do julgamento de Adolf Eichman --- um criminoso de guerra nazista, encarregado da organização e envio de prisioneiros a campos de extermínio --- esperava encontrar um monstro e se surpreendeu ao encontrar um homem comum como muitos outros. “O problema de Eichman era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais” (Arendt, 1999, p.299 do livro “Eichmann em Jerusalém). Adolf Eichmann era um eficiente e dedicado burocrata, cumpridor fiel dos seus deveres e leal aos seus superiores hierárquicos, obedecendo diligentemente às suas ordens. Era um bom pai de família, um filho exemplar e um irmão dedicado. Quanto ao assassinato eficiente de milhões de pessoas ele apenas, burocraticamente, cumpria ordens superiores como todo bom cidadão, em sua opinião, deveria fazer. Mas não teria Eichmann consciência da monstruosidade de sua ação? Hanna Arendt estava convencida de que sim, pois Eichmann declarou várias vezes que estava com a consciência tranquila, já que cumprira seu dever e sabia que sua ação era moralmente correta. Palavras de Arendt: “Sua consciência [de Eichman] ficou efetivamente tranquila quando ele viu o zelo e o empenho com que a ‘boa sociedade’ de todas as partes reagia ao que ele fazia.  Ele não precisava ‘cerrar os ouvidos para a voz da consciência’, como diz o preceito, não porque ele não tivesse nenhuma consciência, mas porque sua consciência falava com a ‘voz respeitável’, com a voz da sociedade respeitável à sua volta” (Ibid, p.143). O conceito banalidade do mal expressa o fato do mal ser exercido não só por psicopatas e degenerados, mas também por homens comuns como qualquer um de nós. Todas as formas sociais de totalitarismo impõem uma obediência cega e servil a seus cidadãos. Difícil escapar de tal mandato pois a punição que se segue é terrível.
Hanna Arendt fala de alguns fatores que se encontram na gênese da banalidade do mal. Entre eles estão: a superficialidade das pessoas, o utilitarismo nas relações humanas ---- que torna as pessoas supérfluas e descartáveis (p. 115) ----, o servilismo como fator supostamente moral da obediência.
Pois é o servilismo e a obediência que quero examinar, sob o ponto de vista da psicologia social e da psicologia psicanalítica.
Na década de 1960 o psicólogo social Stanley Milgram, pesquisador da Universidade de Yale, realizou experimentos sobre obediência a uma figura de autoridade sancionada pelo social logo repoicados por outros pesquisadores com o mesmo resultado. O esquema geral destas experimentações é o seguinte: um grupo de pessoas é dividido em dois. A um deles cabe fazer uma tarefa (Estudantes). Ao outro cabe punir as pessoas do primeiro grupo se a tarefa não é bem realizada (Professores). Ao condutor da experiência (Experimentador) cabe estabelecer a intensidade do castigo que é passar uma corrente elétrica pelo corpo dos que erraram. Na verdade o castigo é uma simulação, mas o grupo punitivo não sabe disto. Para este existe realmente uma corrente elétrica passando pelo corpo das pessoas do outro grupo. Pois bem, se o Experimentador ordenar que uma corrente máxima seja acionada, ela o será por aproximadamente 60% dos Professores. A obediência é automática não sendo levado em consideração o sofrimento que possa causar ou mesmo o perigo que representa.
Existe, pois, em nossa sociedade ocidental a forte tendência em obedecer a autoridade socialmente constituída mesmo que resulte em um ato desumano. Sugiro que isto se deva a uma educação autoritária onde a criança é ensinada a obedecer sem refletir. Na psicanálise esta situação se replica, como vimos anteriormente, no conceito de violência primária de Piera Aulagnier assim como vimos que a concepção de desenvolvimento psíquico e mental de Winnicott privilegia a criatividade: os objetos da cultura são apresentados e a criatividade os inclui no espaço transicional onde o subjetivo improvisa um dueto com o objetivo. Não sei se é correto dizer que essa concepção é nova e revolucionária e que vai ao âmago da questão colonização versus independência. Acredito que por vários séculos a criação/educação do ser humano em crescimento foi dominada pela imposição, dificultando o pensamento livre, situação que ainda perdura. O ser humano ao ser criado/educado tendo como insinuância principal a criatividade, podendo então construir o mundo mediante sua própria ação está mais apto a resistir às convenções e mandatos da cultura e de suas figuras representativas, julgando por si próprio o que mais se coaduna com seus pensamentos e sentimentos. Já o ser humano criado através de atos predominantemente impositivos tenderá a aceitar a orientação da cultura e de seus representantes de uma forma submissa, obedecendo automaticamente às ordens, por mais desumanas que sejam.
Tenho a esperança de que usando a criatividade como guia, teremos uma integração ética do homem com a natureza e com seu semelhante/diferente que, narcisicamente (conforme meu artigo “Narcisismo secundário inclusivo”), passarão a fazer parte dele, diminuindo a violência no mundo.
                                                               Outubro/2014

                                                               Nahman Armony      

FLUTUAÇÕES NO AMOR


                             
        O Homem deseja ao mesmo tempo estabilidade e aventura. Nas sagas dos heróis há um período de aventuras que exige força, habilidade para enfrentar os perigos do inesperado e depois de tudo, o herói é recompensado com uma vida tranqüila ao lado de seus entes queridos. Para muitos de nós estas histórias satisfazem o nosso desejo de aventura. Lemos estes mitos no conforto de nossos lares, na nossa poltrona preferida ou em nossa cama aconchegante. Enquanto o herói enfrenta perigos terríveis nós também os enfrentamos, porém na segurança de nossas casas. Muitas vezes nosso desejo de aventura se aplaca vicariamente nessas leituras; mas não sempre. Premidos pela nossa curiosidade e pela nossa insatisfação com a monotonia e rotina da vida procuramos “sarna para nos coçar” como diriam nossos sábios e aposentados avós. Mas, sem dúvida o desejo de estabilidade permanece. Uma estabilidade que se mostra cada vez mais problemática. Hoje tudo se move. Karl Marx já dizia que “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. De um universo estático da Idade Média quando o homem tinha o conforto da previsibilidade inclusive no após a morte, passo a passo chegamos a um mundo em perene movimento em todos os seus recantos. Lemos no último livro de Mario Novello “Do Big Bang ao Universo Eterno” que um dos últimos redutos que ainda pensávamos como estático ----- o Universo ------  é atualmente visto como dinâmico e histórico. Tudo se agita. E, no entanto, continuamos precisando tanto de estabilidade quanto de instabilidade. O leitor de aventuras está estável no seu canto lendo o seu livro e ao mesmo tempo instável identificando-se com o herói da estória. O soldado na frente de batalha está dentro de um cenário convulso com bombas ameaçando explodir seu acampamento e neste panorama de absoluta instabilidade ele busca estabilidade na fotografia da amada que de tempos em tempos contempla e beija para se assegurar de que existe um corpo e uma alma que para sempre o acolherão.
        Para duas pessoas apaixonadas a estabilidade existe na forma de ininterrupção. Eles desejam estar e estão sempre que podem juntos. E isto para eles é o amor. Só têm olhos um para o outro e nada que não seja a sua própria paixão os distrai. Porém mais cedo ou mais tarde a paixão dá lugar a um sentimento mais tranqüilo que permite agora que se olhe para os lados, para fora da relação apaixonada. A pessoa que estava inteiramente perdida dentro da outra retoma a sua individualidade e ao fazê-lo vive processos e sentimentos que permaneceram latentes durante o período de paixão. Seu amor pelo parceiro mesmo que sólido e incontestável não se traduz mais em um comportamento inteiramente dedicado a ele. Agora existem aproximações e afastamentos, flutuações de intensidade e de qualidade, sentimentos paradoxais, ambivalências, fantasias várias, curiosidades que fazem olhar para além da relação. Isto pode acontecer em tempos diferentes para cada um. E aquele que continua perdidamente apaixonado não entende que o parceiro deixe de ter olhos só para o casal. A idéia é de que não é mais amado o que se torna fonte de mal-entendidos. É importante que a pessoa possa se colocar no lugar da outra para entender o que está acontecendo com ela. Pedir isto a um apaixonado é quase uma perda de tempo, pois dificilmente de dentro de sua paixão ele poderá compreender a subjetividade do outro. E, no entanto em nome de um amor promissor será preciso fazer um esforço. Esforço que mais facilmente virá daquele que já passou o período de paixão absoluta e que deverá compreender e acolher a incompreensão do parceiro, sem se revoltar com o que poderá ser sentido como tentativa de controle e dominação. Talvez valha mais a pena este esforço do que simplesmente se afastar de uma relação amorosa promissora.
                                                    Nahman Armony