O BORDERLINE CRIATIVO: SUJEITO DE UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO


 

O HOMEM CRIATIVO: SUBJETIVIDADES EM TRANSFORMAÇÃO

 

RESUMO

DE O ‘BORDERLINE CRIATIVO: SUJEITO DE UM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO’ PARA ‘O HOMEM CRIATIVO: SUBJETIVIDADES EM TRANSFORMAÇÃO’. 

 

Ao final de minha conferência, tendo feito um percurso da modernidade à pós-modernidade, e dentro da pós-modernidade, elaborado um novo paradigma a ser ventilado e debatido, sugiro, a partir dos novos elementos trazidos, a mudança de título. Esta foi uma forma que encontrei de enfatizar a permanência do devir (o Ser é o Devir) nessa minha manifestação onde afirmo a existência de um paradigma moderno repressor, um paradigma pós-moderno excessivamente permissivo e elaboro a existência de outro paradigma pós-moderno cujo nome, ainda flutuante, poderia ser paradigma holístico, humanista, ecológico, amoroso, ou algum outro que caracterize essa nova subjetividade. Nesse trajeto elaboro a questão da criatividade comum e da criatividade winnicottiana lançando mão de diversos autores psicanalistas, filósofos, escritores e cientistas: Freud, Romain Rolland, Bergson, Kekulé, Einstein, Carlos Plastino e, naturalmente e enfaticamente, Winnicott. Uma linha importante de pensamento são as diferenças das relações parentais nos três paradigmas mencionados. Essas diferenças são altamente influentes na formação dos paradigmas, o que não quer dizer que não haja outras também extremamente influentes. A ideia que fica é a de que o homem contemporâneo que em outro lugar chamei de Homem Transicional é mais facilmente criativo por amalgamar os modos neurótico e borderline de estar no mundo.

Palavras-chave: criatividade, neurose, borderline, repressão, intuição, paradigma moderno, paradigmas pós-modernos, Homem Criativo.

 

O verbo criar (e seus parentes próximos --- criativo, criação, criatividade) tem inúmeras conotações:  criar uma criança, criar gado, criar uma esperança, criar uma obra de arte, criar uma teoria, etc. No momento interessa-me trabalhar com uma das conotações mais usadas: inventar algo novo, inédito. Um acaso (ou, quem sabe, um sincronismo) alertou-me para o possível perigo dessa escolha, pois um simples ‘o’ acrescentado à palavra ‘usadas’ transforma-se em ousadia. Assusto-me com os ocultismos dos poderes mediúnicos. Qual ousadia invadiu meu campo semântico? Será que meu pecado é colocar em um lugar privilegiado ---- considerando que estou entre psicanalistas que conhecem e admiram Winnicott sendo eu mesmo um deles ---- uma conotação banal, deixando ao lado a contemporânea, complexa e revolucionária concepção winnicottiana que se materializa na frase “criar o que já existe”?

O bordão criar o que já existe nos remete ao objeto e fenômeno transicional que é ao mesmo tempo subjetivamente concebido e objetivamente percebido. Esse objeto transicional, irmão siamês do espaço potencial é criativo não especialmente por acrescentar algo inédito, mas por unir o subjetivo mutante ao objetivo consensual, tornando a pessoa parte integrante do universo, e o universo parte integrante da pessoa, ultrapassando-se a dicotomia h@mem/ambiente. A pessoa é criador e criatura do mundo. Essa formulação holística básica não impede que a essa conotação se acrescente uma significação mais usual que é a de simplesmente inventar, trazer ao mundo objetos até então desconhecidos/inexistentes. Haverá então criatividade em dois sentidos: no de estar recriando o objeto e portanto criando o mundo (objeto transicional), e no sentido de acrescentar ao acervo da humanidade algo inédito num desdobramento da intuição original. Diz Winnicott que o simples e autêntico respirar é um ato criativo. Um ato que une homem e mundo. Visto isso, surge uma questão: toda inovação é, por definição, criativa no sentido winnicottiano?

Percebo que, quanto mais se afastam as duas conotações de criatividade (a comum e a winnicottiana) mais elas insistem em se aproximar. Acabarei sendo coagido a aceitar a existência de dois contrários atuando como unidade funcional. Devido aos meus condicionamentos genealógicos, certamente não ficarei adstrito ao paradigma holístico já que estou sujeito à influência/intensidade de minhas raízes mais primitivas. Dou-me provisoriamente por vencido e me conformo em manter juntas as duas conotações do criar, sabendo que provavelmente terei de lidar com contradições, paradoxos, confusões várias, com as quais tentarei lidar, usando ora a lógica formal, ora a paradoxal, ora sem saber bem que lógica estou usando. Continuarei falando de criatividade como acréscimo e de criatividade como sentimento de pertencer ao universo e ser por ele pertencido. Esta última pode ser mais bem compreendida se a compararmos com pessoas que têm um sentimento de desrealização: elas são observadoras da vida, mas não a criam e, em não criando, não se sentem vivazes. O pôr-do-sol, por exemplo, não as comove. É simplesmente um fenômeno natural importante para a ciência e externo às pessoas. Mas quando crio o que já existe, estou penetrando no fenômeno pôr do sol, tornando-o transicional ao empapá-lo com minha subjetividade. A subjetividade flui em devir e isso é uma benção, pois podemos ver milhares de vezes um pôr-do-sol como se fosse a primeira.

Quando o novo não resulta da junção assimilativa do objetivo com o subjetivo, ele será chamado de criação no seu sentido corriqueiro, mas não será uma criação no sentido winnicottiano. Quando produzo algo sem antes ter penetrado em seu âmago com minha subjetividade, estou criando sem criatividade, pois meu ser mais íntimo não estará participando da criação. Trarei uma citação de Bergson para, em colocando-a junto com os ingredientes de nossa panela queer ecumênica, atrair @s efervescentes e criativos fogos eletrificados da vida: “Seja ainda uma personagem de romance cujas aventuras me são contadas. O romancista poderá multiplicar os traços de caráter, fazer falar e agir seu herói tanto quanto queira: tudo isto não valerá o sentimento simples e indivisível que eu experimentaria se coincidisse um instante com o próprio personagem” (Bergson- “Introdução à Metafísica” p.20). Na minha avaliação estamos aqui diante de uma criatividade que não inova no sentido comum da palavra, mas de uma criatividade vital (o personagem ganha vida ao ser criado pelo liame subjetividade/objetividade) que faz o Homem parte da sociedade/natureza. Em minha opinião Winnicott instituiu um arquétipo, o mais primitivo possível, quando falou do simples respirar como um ato criativo.  

 A criação no entender psicanalítico winnicottiano é fundamental para a existência do Homem. Mas também a criação inédita não winnicottianamente criativa (se é que posso me expressar assim) preenche parte de nossas vidas e sem ela os seres vivos não poderiam prosperar. A boa cópia, embora sempre incompleta, dizia Deleuze interpretando Platão, é uma figura necessária para a vida. 

Conheço dois concertos para violino de Haydn. Um do genial Joseph Haydn e outro de seu irmão Michael Haydn, ambos interpretados por Robert Gerle. O primeiro concerto toca nossa alma fazendo com que participemos da música com o nosso ser mais íntimo. Dissolvidos e carregados pelas ondas sonoras nos perdemos num oceano sem fim. O segundo faz com que acompanhemos com interesse sua criação, sem porém  nos tornarmos unos com a música. Temos um belo objeto a nossa frente, uma música agradável que apreciamos, mas que, em não mobilizando nosso mais íntimo núcleo emocional, não comove, não nos dispersa no infinito. Mas provoca uma agradável e bem-vinda sensação de bem-estar.

Estamos, pois, falando de dois tipos de criatividade. 

O Homem foi desde seus primórdios, criativo nos dois sentidos. E continua a sê-lo. Caso contrário, teria desaparecido como espécie. Sua inventividade foi se potencializando através dos séculos. Temos uma infinidade de exemplos que vão desde a ancestral conquista do fogo até a atual descoberta de elementos fugazes captados por gigantescas estruturas aceleradoras de partículas; e desde a criação de mitos de origem que incluíam nosso ancestral primitivo no enigmático mundo em que vivia, até a concepção winnicottiana de criatividade. E muitos outros desenvolvimentos serão encontrados se os procurarmos. Uma vez tendo sido, num lance de intuição, criada a roda, seguiram-se os vários e diferentes tipos de aperfeiçoamentos mais dependentes de um raciocínio lógico do que de uma intuição. O mesmo vale para o fogo, para a teoria da relatividade, para as leis de Arquimedes, etc. Acho que aqui vale uma citação de Winnicott: “Num sentido positivo, o pensar faz parte do impulso criativo, mas existem alternativas ao pensar e elas possuem algumas vantagens sobre ele. Exemplificando, o pensamento lógico leva muito tempo e pode nunca chegar lá, mas o lampejo de intuição não leva tempo e chega lá imediatamente. A ciência precisa de ambas estas maneiras de progredir. Achamo-nos aqui buscando palavras, pensando e tentando ser lógicos, e incluindo um estudo do inconsciente que permite uma imensa ampliação do raio de ação da lógica. Ao mesmo tempo, porém, precisamos ser capazes de buscar símbolos e criar imaginativamente e em linguagem pré-verbal; precisamos ser capazes de pensar alucinatoriamente”. (WINNICOTT – “Explorações psicanalíticas”. Uma nova luz para o pensar infantil.).

Tentei, com essas páginas iniciais, desfazer a impressão que eu poderia estar passando, de que considero a criatividade apanágio do borderline light. Não penso assim. O neurótico é também criativo. E é criativo não só no sentido do desdobramento e desenvolvimento de uma intuição já consensualmente acatada; ele, apesar da violência da repressão, consegue com esforço e persistência, alcançar estados de não integração, de descontração, de soltura, de desorganização organizada, que permitem ao inconsciente gotejar preciosas intuições.  Desfeitos os recalques, ainda que provisória e pontualmente, o neurótico estará apto a receber uma visita pessoal das musas inspiradoras. Estas recompensam seu esforço abrindo-lhe o mundo do sonho, da poesia, da desordem, da intuição, do insight ---- saltando do paradigma cientificista para o holístico, e, em seguida aprendendo a trabalhar com ambos no modo paradoxal. Aqui vale colocar uma outra historinha para ilustrar minha fala. Trata-se de um sonho relatado por Kekulé que precedeu sua descoberta da estrutura cíclica do benzeno. Ei-lo: Eu estava sentado à mesa a escrever o meu compêndio, mas o trabalho não rendia; os meus pensamentos estavam noutro sítio. Virei a cadeira para a lareira e comecei a dormitar. Outra vez começaram os átomos às cambalhotas em frente de meus olhos. Desta vez os grupos mais pequenos mantinham-se modestamente à distância. A minha visão mental, aguçada por repetidas visões desta espécie, podia distinguir agora estruturas maiores com variadas conformações; longas filas, por vezes alinhadas e muito juntas; todas torcendo-se e voltando-se em movimentos serpenteantes. Mas olha! O que é aquilo? Uma das serpentes tinha filado [abocanhado] a própria cauda e a forma que fazia rodopiava trocistamente diante dos meus olhos. Como se se tivesse produzido um relâmpago acordei;...passei o resto da noite a verificar as consequências da hipótese. Aprendamos a sonhar, senhores, pois então talvez nos apercebamos da verdade...mas também vamos ter cuidado para não publicar nossos sonhos até que tenham sido examinados pela mente desperta”. Esta citação faz parte de um discurso proferido em 11 de março de 1890, em Berlim,  em comemoração à descoberta da estrutura fechada do benzeno, por ocasião dos 25 anos da publicação de um primeiro artigo do discursante sobre a estrutura química do benzeno.  

Vamos agora ver o que Freud nos diz dos dois modos de vivenciar os acontecimentos: “Em anos posteriores neguei a mim mesmo o enorme prazer da leitura das obras de Nietzsche, com o propósito deliberado de não prejudicar, com qualquer espécie de ideias antecipatórias, a elaboração das impressões recebidas na psicanálise. Tive, portanto de me preparar --- e com satisfação --- para renunciar a qualquer pretensão de prioridade nos muitos casos em que a investigação psicanalítica laboriosa pode apenas confirmar as verdades que o filósofo reconheceu por intuição.” (V.14, p.25/26). Lendo cuidadosamente esta citação, veremos que Freud fala de duas espécies de criatividade: uma criatividade que vem de uma investigação lenta, laboriosa, trabalhosa e outra que se apresenta como imediata, instantânea. Um bom exemplo destas duas formas de criatividade nós o encontramos nas primeiras páginas do “Mal-estar na civilização”(vol.21 pg.82). Freud recebe uma carta na qual Romain Rolland afirma existir em si mesmo “confirmado por muitos outros e que pode imaginar atuante em milhões de seres humanos” um sentimento que chamou de oceânico, ‘uma sensação de eternidade, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras --- oceânico por assim dizer’(21,81). Freud comenta: “Não consigo descobrir em mim esse sentimento oceânico. Não é fácil elaborar sentimentos passando-os pelo pente-fino da ciência” (v.21, p.82). E mais adiante: “a ideia de os homens receberem uma indicação de sua vinculação com um mundo que os cerca por meio de um sentimento imediato que, desde o início é dirigido para este fim, soa de modo tão estranho e se ajusta tão mal ao contexto de nossa psicologia que se torna justificável a tentativa de encontrar uma explicação psicanalítica, ou seja, genética, para esse sentimento”. Parte então em busca de uma validação científica na forma de uma ‘elucidação psicanalítica genética’. Essa elucidação tem como pedra fundamental a concepção de um ego “autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais”(21,83). Aqui temos um Freud que 1- não tem a intuição de ‘sentimento oceânico’, e 2- que nestas circunstâncias parece não aceitar a intuição como componente do método psicanalítico de conhecimento. Apesar de conscientemente não aceitar a intuição como parte do método psicanalítico, a pedra inicial de seu raciocínio --- o ego --- é um dado intuitivo. Citando:  “Normalmente, não há nada de que possamos estar mais certos do que o sentimento do nosso eu, do nosso próprio ego(p.83)”. Ele parte desse fundamento/intuição para a tão desejada confirmação científica da importância da noção de sentimento oceânico de seu amigo Romain Rolland. Para não me alongar demasiadamente não discriminarei os passos dados por Freud. Apenas os nomearei: ego e id não têm uma delimitação nítida(p.83); a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer no auge da paixão; as patologias das relações ego-objeto; uma reflexão sobre o psiquismo inicial do bebê (Citando: “Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte de sensações que fluem sobre ela”(p.84).) Freud dá mais alguns passos e finalmente tem uma frase conclusiva: “...originalmente o ego inclui tudo; posteriormente separa de si mesmo um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo --- na verdade, totalmente abrangente ---, que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento de ego mais estrito de mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo --- as mesmas ideias com que meu amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’ ”(p.86).

Ufa! Que enorme volta Freud teve de fazer para validar a intuição do amigo dentro do paradigma moderno cientificista. Mas ele teve de partir de uma intuição para conseguir legitimar ‘cientificamente’ a noção de ‘sentimento oceânico’. Por que ele aceitaria a intuição ego e não a intuição ‘sentimento oceânico’? Não acho que seja simplesmente pelo fato de Freud ter uma percepção da primeira e não da segunda. Trata-se mais da questão do paradigma no qual as pessoas se movem. Quando Freud diz que “Normalmente, não há nada de que possamos estar mais certos do que o sentimento do nosso eu, do nosso próprio ego(p.83)”, está implicitamente admitindo um conhecimento direto, uma intuição de eu. Infiro que é pelo fato dessa intuição se coadunar com o paradigma moderno --- no qual viveu mergulhado a maior parte de sua vida ---- que Freud, de alguma maneira a percebe. Já o sentimento oceânico pertence a outro paradigma, o paradigma holístico. Os padrões de relacionamento com a cultura e com as pessoas dependem dos paradigmas em que se vive. O ser humano deles depende para se movimentar no social, pois é dentro destes parâmetros que ele se move e através deles que enxerga. Freud, no “Mal-estar da civilização” encontra-se no paradigma cientificista. Ou, mais abrangentemente, podemos dizer que está no paradigma da modernidade. A prioritária, imediata e fácil intuição que Freud tem em relação ao ‘sentimento de eu’ está consoante ao paradigma da modernidade. [Pertencem a este mesmo paradigma o ‘self made man’ e a ‘mente isolada’ de Stolorow].1 Já a intuição ‘sentimento oceânico’ está fora de seu alcance por pertencer ao paradigma holístico. Ele validou o ‘oceânico’ do amigo percorrendo caminhos que, partindo da separação eu – outro, chega através de um científico raciocínio genealógico psicanalítico à íntima união de ambos. Sua convicção da existência de um sentimento oceânico não vem de uma desacreditada intuição, mas de uma legitimadora ilação científica. Embora ele também use de intuições para construir sua argumentação parece não se dar conta disso nesse trabalho. Em outros trabalhos Freud dirá que a elaboração intelectual, possibilitando a superação das resistências, permitirá o insight, o espocar súbito de uma intuição. É assim que entendo a sua frase: “... não há supressão da repressão até que a ideia consciente, após as resistências terem sido vencidas, entre em ligação com o traço de lembrança inconsciente. Só quando este último se torna consciente é que se alcança o êxito.” (Freud, v.14 – p.202).                                     

Aqui termino a releitura seletiva do “Mal-Estar”. Em outros escritos, Freud mais claramente admite e valoriza a participação da psicanálise em um universo não verbal, universo esse cuja existência ele já postula no “Projeto”. Essa participação aparece, por exemplo, na sua convicção da existência de uma   comunicação de inconsciente para inconsciente, afirmação esta que pode ser encontrada no v.12, p.154 e 402, e no v.14, p.222. Na citação que se segue vemos um Freud acreditando existirem dois tipos de conhecimento e criatividade. Essa citação foi retirada de uma carta de 14 de maio de 1922 dirigida a Arthur Schnitzler: “Assim, ficou-me a impressão de que o sr. sabe por intuição ---- realmente, a partir de uma fina auto-observação --- tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho”.

Freud está, pois, talvez sem se dar conta, lançando sementes para o desenvolvimento do paradigma holístico, e assim contribuindo para o recuo do paradigma cientificista.

Carlos Plastino garimpou uma preciosidade: um extraordinário cientista expondo seu modo de criar. Esse cientista é nada mais nada menos que o formidável pensador Albert Einstein, violinista nas horas vagas, criador da Teoria da Relatividade Restrita e da Relatividade Geral, teorias que deram um nó nas melhores cabeças pensantes de sua época. É no artigo “Criatividade em Winnicott” que Plastino coloca esse depoimento de Einstein: “...as palavras e a linguagem, na sua expressão oral ou escrita, não parecem desempenhar papel algum no mecanismo de meu pensamento. As entidades psíquicas que servem como elementos de pensamento são certos signos e imagens, mais ou menos claros, que se podem reproduzir e combinar ‘voluntariamente’...Tomado do ponto de vista psicológico, esse jogo combinatório é a característica principal do pensamento produtivo, antes que se estabeleça um vinculo qualquer com uma construção lógica em palavras ou outros símbolos comunicáveis aos demais. Os elementos mencionados precedentemente são, no meu caso, de tipo visual e, em algumas pessoas, são musculares. Apenas numa segunda etapa as palavras ou outros signos convencionais devem ser desenterrados, quando o jogo de associações tem se estabelecido suficientemente e se pode reproduzir à vontade” (Laborde Nottale, 1992) Então: não foi pensando com palavras e símbolos já existentes que Einstein produziu/encontrou as teorias da relatividade. De meu ponto de vista ele evitou pensar no modo egóico e superegóico (processo secundário), criando condições para o pensamento transcorrer em processo primário (função secundária). Em seu artigo Plastino comenta: “Repare-se que Einstein apresenta claramente os dois processos psíquicos --- primário e secundário --- considerando ambos como processos de pensamento, porém atribuindo ao processo primário o que denomina de ‘pensamento produtivo’, cerne da criatividade intelectual.”

Para Bergson existem dois modos de conhecimento (e portanto de criatividade). Citando: “...os filósofos concordam apesar de suas divergências aparentes, em distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma coisa. A primeira implica que rodeemos a coisa; a segunda que entremos nela. A primeira depende do ponto de vista em que nos colocamos e dos símbolos pelos quais nos exprimimos. A segunda não se prende a nenhum ponto de vista e não se apoia em nenhum símbolo.” (Os Pensadores – “Introdução à metafísica”, p.19)”. Tal como Plastino posso pensar que ao não se apoiar em nenhum símbolo Einstein funciona em processo primário, começando pela função primária(de descarrego) e logo passando para a função secundária do processo primário (comunicação e evitação de desprazer). Teoricamente, esta passagem teria de ser instantânea, pois se o organismo não evitar as situações destrutivas nem  se beneficiar das situações alegres e amorosas, estará em risco de desaparecimento. O Q (quantidade, energia, fluxo’’) logo aprenderá a evitar as vias que conduzem à destruição e a procurar as que provocam prazer e alegria. Estamos aqui na função secundária do processo primário. Mas isso não é o suficiente pois o ego com seu consistente conjunto de neurônios possui um enorme poder de atração aliciando para si as Quantidades, tentando obrigar a todos neurônios, todas as quantidades (Qs.) a rezar pela cartilha do núcleo egóico, fazendo-os funcionar em processo secundário. Não é difícil dar um passo adiante e dizer que um ego e superego fortes, hipercatexizados, dificultam o exercício da criatividade. Será preciso que os investimentos escapem da atração exercida pelo ego/superego para exercer a criatividade. E esta é função do borderline pois no funcionamento normoneurótico todos os investimentos tendem a ser atraídos pelo ego/superego.    

A neurose, Freud já o disse, é fruto da repressão externa e do consequente recalque (repressão interna). No século 19, a sociedade funcionava em um modo patriarcal: a mãe era a senhora do lar, a que cuidava da casa e dos filhos, enquanto o pai se ausentava da residência por um certo período de tempo para trabalhar. A educação era concebida, primordialmente, como tarefa da mãe sendo o pai uma espécie de apêndice educativo. A mãe era a pessoa presente, com quem a criança trocava afetos e comportamentos. O pai era uma pessoa distante, reservada, poderosa, respeitada, temida e até certo ponto, desconhecida. Ao chegar ao lar, o pai recebia um relatório da esposa e distribuía castigos, ralhações, elogios e recompensas segundo as observações, sugestões e cumplicidades da mãe. A prescrição social não incluía a compreensão das dificuldades e sofrimentos das crianças, e os filhos eram violentamente castigados, física e psicologicamente. Esse comportamento dos pais propiciava a formação de um superego cruel, exigente, que tirava a espontaneidade, impedia a criatividade, obrigando a criança a se conformar às regras e exigências domésticas e sociais, sob pena de castigos reais e de terríveis punições fantasmagóricas de seus personagens: fantasmas, monstros colossais, odiosos, cruéis, impiedosos.

Pode parecer, mas não estou tentando invocar o complexo de Édipo e a castração freudiana. Minha orientação é outra. Crianças que tiveram pais dentro dos padrões do paradigma moderno, que sofreram traumas malignos provocados pelos pais, internalizam o aspecto torturador e traumatizante da dupla genitora, fantasiando monstrengos, monstros e espaços aterrorizantes, obstaculizadores da autoafirmação e da criatividade.  Esta dinâmica não tem a ver com a sexualidade que pode estar presente ou não, em grau maior ou menor, com mais ou menos influência na sintomatologia. Acho que, metaforicamente, cabe o termo castração, mas tenho receio de usá-lo, temeroso de que se faça uma confusão entre traumatização edípica sexualizada com traumatização por quaisquer outras circunstâncias que é como uso a palavra. O ser humano assim ‘‘panificado’ (pânico e pane), para não ser assolado pelo medo e pela culpa torna-se incapaz de abrir suas valências identificatórias ao mundo, condenando-se a uma triste vida, pobre e imitativa (ver o livro ‘Borderline: uma outra normalidade) .

O recém-nascido tem o máximo de suas valências identificatórias abertas absorvendo como se esponja fosse, tudo que atinge seus sentidos. Chamo a isso de porosidade se estou no campo da dependência absoluta e de identificação dual-porosa se no campo da dependência relativa. A relação de porosidade permite que o bebê encontre na mãe o que, potencialmente, já se encontra nele, bebê: fusão, simbiose, empatia, mutualidade, porosidade, etc. No paradigma moderno, repressivo, vitoriano, o pai entrará em contato mais ativo com o pequerrucho aproximadamente entre seus 3 e 5 anos de idade; neste paradigma moderno o pai, até então uma figura semiausente, torna-se responsável pela socialização da criança, devendo nela incutir a mentalidade, os processos, costumes, regras e leis já existentes. Em face das transgressões o pai agirá autoritariamente, exigindo uma mudança de comportamento do filho. Se essa autoridade não for aceita o pai deverá usar métodos mais severos e que se tornarão cada vez mais violentos se o filho continuar a desautorizar o comando do pai. Temos aí uma ação metaforicamente castradora. 

Vou fazer um longo parêntesis visando ampliar e distinguir os vários significados de vocábulos como castração, limite, amor, o que nos permitirá visualizar melhor os obstáculos que se colocam à criatividade winnicottiana.

Toda criança necessita de limites. Estes podem estar sob o signo da violência ou sob o signo do amor. No paradigma repressivo a criança é forçada a fazer o que detesta, sem que haja uma explicação, uma preparação, a criação de uma atmosfera, uma escolha. Usando uma alegoria: a criança ao querer realizar o seu potencial verdadeiro self encontrará um muro maciço de aço protegido por protuberâncias pontiagudas (superego feroz) que o traumatizará se ele o enfrentar, saindo desta luta ou machucado, ou traumatizado, amedrontado, raivoso, reprimido, inibido, acovardado, recalcado. A função deste muro (superego) é produzir um trauma maligno para assim impedir, em definitivo qualquer movimento verdadeiro de renovação. Não ceder nada e não ceder nunca são os lemas dos adultos capturados pela ideologia social. Esta conduta repressiva, malignamente traumatizante, rege um modo neurótico de vida.   No paradigma humanista/ecológico a criança será criada com amor, compreensão, empatia. O limite será dado não por uma muralha de aço, mas por uma cortina macia que oferecerá resistência sim, mas não só não o machucará além do necessário (trauma benigno) como também permitirá avanços no desconhecido, no não convencional, no que há de novo no meio e até atrás dos panos de uma cortina que depois de mexida se recomporá sem nunca voltar exatamente à forma anterior. Nesta ambiência, o mundo experienciado através do sentimento oceânico será uma complexidade da qual fará parte a singularidade da criança, singularidade esta mantida pela preservação da porosidade, da intuição, das identificações cruzadas, da mutualidade, etc. Chamei ao portador dessa complexidade de borderline brando (light).

Aqui termina o parêntesis e eu volto a falar do pai autoritário e, portanto da repressão traumática maligna. Citando Freud:

“A parte essencial desse curso de acontecimentos [Freud neste trecho está se referindo aos acontecimentos malignos] repete-se no desenvolvimento abreviado do indivíduo humano. Também aqui é a autoridade dos pais da criança ---- essencialmente, a de seu pai autocrático, a ameaçá-la com seu poder de punir ---- que lhe exige uma renúncia  ao instinto e que por ela decide o que lhe deve ser concedido e proibido. Mais tarde, quando a Sociedade e o superego assumiram o lugar dos pais, o que na criança era chamado de bem-comportado’ ou ‘travesso’, é descrito como ‘bom’ e ‘mau’, ou ‘virtuoso’ e vicioso’. Mas ainda é sempre a mesma coisa --- renuncia instintual sob a pressão da autoridade que substitui e prolonga o pai” (“Moisés e o Monoteísmo”, v.23 p.142).  Temos, portanto uma função superegóica com o seu aspecto traumaticamente maligno, que se mantém permanentemente forte “quase sem mudança” (Freud).  

Acho que finalmente posso falar dos indícios do surgimento de uma nova subjetividade, à qual denominei de Transicional. É uma subjetividade  pertencente a um paradigma em formação ----------- Paradigma Humanista/Amoroso/Ecológico (ver em meu livro ‘O Homem Transicional).

O Homem Transicional, em minha concepção é uma convergência do modo neurótico e do modo borderline de ser/viver. No modo neurótico prevalece a repressão; a criatividade é lenta, organizada e trabalhosa e possui o bônus de uma dinâmica psicológica sustentadora e o ônus do empobrecimento da personalidade. Já no borderline brando, ‘normal’ o bônus é uma vida rica, leve e criativa e o ônus é o perigo da dispersão, da inadequação social, da fragmentação, de cair no abismo para sempre. O Homem Transicional incorporaria os ônus e bônus de ambos.

Creio que quanto ao neurótico já tivemos material suficiente para apreender sua evolução em direção ao Homem Transicional. Mas sinto falta de elaborar um pouco mais o caminho tomado pelo borderline brando nessa mesma direção.  

Quando se diz que o borderline sofre de insuficiência de identificações a lente utilizada é a da patologia. Visto de outra perspectiva dir-se-á que o borderline, não sofrendo dos impedimentos ferozes de um superego implacável, está com suas valências identificatórias insaturadas, sendo capaz de, através da empatia e identificação, acompanhar o movimento de sua alma, das almas alheias e da cultura. Em havendo uma excessiva precariedade de vivências fusionais sólidas com o devir da mãe, a criança estará a mercê de sua identificação com o pai. Se essa também falhar teremos um borderline desmembrado, perdido, transtornado, desorientado. Se a precariedade não for excessiva teremos um borderline prejudicado na sua potência e na sua capacidade de fruição. Este quadro tem mudado devido a um intenso espalhamento dos modos femininos de estar no mundo incluindo-se aí uma modificação na ação superegóica dos cuidadores. A configuração neurótica dominada pela repressão/recalque insensível e violento e a configuração borderline, dominada por excessiva permissividade, dicotomia (ou dualidade), onipotência, compartimentação, porosidade, externalidade, estariam convivendo e se atenuando dando lugar a uma outra configuração que batizei (com o beneplácito involuntário de Winnicott), de Homem Transicional. Nesta configuração o espaço até então obstruído pela repressão maligna fica vago e passa a ser ocupado pela repressão benigna, pela porosidade seletiva, pela onipotência mitigada, pela compartimentação adequada, pela permissividade sensível e sensata, pelo esgotamento conduzido das emoções. Esta nova configuração se deve a um menor domínio patriarcal e a uma maior difusão do modo feminino de estar no mundo. Nessa configuração não haveria nem a dominância do sólido nem a do líquido; teríamos idealmente uma ondulação oceânica, obtendo-se uma solidez líquida suficiente para as variantes entre sustentação e aventuras do Ser. O H@mem criado por pais gradientemente sensíveis e gradientemente amorosos, estaria menos sujeit@ à repressão e à dispersão malignas, com mais chances para exercer uma equilibração mentepsicosomática e, portanto, com maior liberdade para a fruição e para a criatividade.

Catalogando: menos repressão em geral, evitação da repressão maligna, valorização e aceitação da onipotência mitigada, mais sensibilidade e sensitividade, mais relações porosas, liberdade para usar os diversos recursos possíveis na luta pela equilibração psicomentesomática. Tudo isto participaria do paradigma amoroso/ecológico.

Tendo percorrido com este texto um caminho que ainda está sendo andarilhado por borderlines, neuróticos e h@mens transicionais, não seria melhor atualizar o título desta conferência para “O Homem Criativo: subjetividades em transformação”?
                                        Nahman Armony
Esta conferência foi pronunciado em setembro de 2016 durante os Encontros Winnicottianos Brasileiros anuais e será publicada na revista RABISCO em algum momento do primeiro semestre de 2017. 

 
    

 

 

     

O VAZIO PARA LACAN E WINNICOTT: DIFERENÇAS

       

Para Lacan o vazio é estrutural. A linguagem opera um corte entre o real e o imaginário. Só o simbólico é capaz de fazer uma aproximação entre real e imaginário. Mas esta separação não pode ser feita à custa de uma negação de um vazio que opera entre real e imaginário. Para que o simbólico tenha a sua efetividade é preciso primeiro encarar o vazio. É preciso abandonar todas as máscaras que ocultam o vazio e chegar até ele para então retornar ao simbólico tendo já encarado e elaborado o vazio. Trata-se portanto de um vazio estrutural inerente à constituição do ser humano. Winnicott tem uma visão diferente: o vazio aparece não por pertencer à estrutura ôntica do ser, mas por contingências que inevitavelmente aparecerão com maior ou menor força. Um bebê mal atendido pela mãe sentirá com frequência as ansiedades indizíveis das quais a mais assustadora é o “cair para sempre”. Um bebê bem atendido dificilmente passa por uma vivência tão terrível. Então para Lacan o vazio é estrutural e para Winnicott é contingente, uma contingência que sempre ameaça se realizar. Para Winnicott não há um corte separando o objetivo do subjetivo. O subjetivo aos poucos vai admitindo a existência de um objetivo que não renega o subjetivo. Estou falando de objeto transicional e de espaço potencial. O objeto transicional carrega em si o subjetivo e o objetivo. Com isto se evitaria o vazio. Um bebê bem acolhido mal sente o vazio. O bebê mal acolhido sente-se só e desamparado, jogado no vazio. Então, a maneira de evitar o sentimento de vazio é viver no espaço transicional onde a capacidade de sentir e amar estão preservados.

                                                Nahman Armony

                                   

 

PAIXÃO VISCERAL



 

 

 

 

 

Paixão visceral

Após algum tempo de relacionamento amoroso eventualmente acontece de um dos parceiros começar a reclamar: “Você já não é o mesmo. Me escondeu muita coisa de sua personalidade. Me enganou para me conquistar. Antes, parecia adivinhar os meus desejos e mesmo se antecipar a eles. Agora você já não me entende, não tem consideração por mim.” E por aí vai. Às vezes a briga esquenta. Um chama o outro de mentiroso, farsante, fingido. Uma carga de adjetivos negativos transforma o companheiro num canalha, num ser desprezível. Mas será ele realmente um mau-caráter? Pode ser que sim. Também é possível, no entanto, que seja uma vítima da “síndrome de apaixonamento visceral”.

Esse tipo de apaixonamento toca o mais fundo do ser e estabelece uma relação na qual o único que conta é o outro, com seus desejos, melindres, peculiaridades. A atenção é inteiramente desviada de si mesmo e dirigida para o amado. O apagamento pessoal faz do amante um serviçal, quase um escravo. As questões pessoais, as próprias necessidades, suscetibilidades e desejos deixam de ter importância, são postos de lado. O único objetivo é fazer o outro feliz. Cada membro do casal, ao esmerar-se em comprazer ao parceiro, surge como um ente caído do céu, destinado a torná-lo venturoso para todo o sempre.

É uma relação que lembra a dupla mãe-bebê, em que a primeira deixa de lado os dissabores, as questões pessoais, os outros amores e interesses para se dedicar exclusivamente ao seu rebento, àquele ser visceral gestado na intimidade de sua barriga.  Em se tratando de casal amoroso, ambos são, metaforicamente, bebê e mãe. Um procura agradar e servir ao outro em detrimento de si próprio. 

O apaixonamento visceral tornará o casal tão amalgamado que podemos compará-lo a irmãos siameses, unidos por vísceras comuns. Quero aqui recordar o filme O Segredo de Brockeback Mountain (2005), vencedor de três Oscars, no qual vemos que nada, nem mesmo a morte puderam separar os amantes. Eis aí o problema desse tipo de relação. Quando o mútuo fascínio declina, surgem as individualidades e as diferenças pessoais. Muitas variáveis entram então em jogo: se as diferenças forem tão grandes que tornem impossível a convivência, a relação de apaixonamento visceral fará com que a necessária separação, se puder acontecer, seja extremamente dolorosa, provocando muito sofrimento psíquico e físico. Se as diferenças não ultrapassarem o limite das possibilidades de entrosamento, a força da relação visceral ajudará a superar o desconforto causado pelas dessemelhanças facilitando a renúncia ao desejo impossível de entendimento perfeito. 

Como surge esse tipo de amor que estou chamando de apaixonamento visceral? Para explicar, vou me valer novamente do cinema. Existem alguns filmes que apresentam um tema recorrente. O namorado morre e retorna posteriormente no corpo de outra pessoa. A antiga namorada que permaneceu viva, ao encontrar-se por acaso com o antigo namorado em um novo corpo evidentemente não o reconhece, mas sente que existe algo de familiar nele. Essa mistura de estranho e familiar faz daquela pessoa um ser misterioso que surpreende, intriga e atrai. Algo antigo, vindo do passado remoto, vibra e ela se sente pronta a se aproximar daquele estranho/familiar para um apaixonamento visceral. Esses filmes são alegorias de encontros em que um enxerga no outro algo de seu passado mais longínquo vivido com a mãe ou outra figura poderosa. Um tipo de amor que pode ser uma bênção -- quando não há uma incompatibilidade essencial e o casal ultrapassa a idéia de encaixe exato, aceitando as imperfeições, individualidades e diferenças -- ou uma maldição -- quando acontece o contrário: modos de ser irreconciliáveis ou impossibilidade de renunciar à perfeição dos primeiros tempos da relação.

                  

             Nahman Armony

 

Primeira publicação na revista CARAS

           

 

 

INICIAÇÃO (de meu livro "O anverso e o verso")

Galo cantando
Angústia da madrugada
Tonitruante canhão
Esfera túrgida
Rolando no espaço
Cabeceando, cabeceando
A procura do Nada
Em Algum Lugar
Onde não se acha
A História.

Tonitruante canhão
Cantando vitória
Galo capão
Respeito à senhora
Recados que vêm
Recados que vão
Discretos conluios
Se fazem e são,
Acordos, discordos
Convênios, concordos
Por conta do Dão
Mais alto que as nuvens
E abaixo do chão
Lá dentro bem fundo
E acima do mundo
Juntando os pedaços
Já vai
Já vai
Vitória!!
Soam os sinos
Espocam foguetes
Ilumina-se a noite
Repete-se o silêncio
Mas cheio de graça
A vida não anda
Mas a menina passa
Balançando cadências.

Cadeira de balanço
Buscando o espaço.
                  
       Nahman Armony







PODER E TRANSGRESSÃO NA RELAÇÃO ANALÍTICA


                                                                               
         Do século XX ao XXI as relações de poder se transformam e o que era transgressão aos poucos vai sendo culturalmente assimilado como forma de relacionamento. Só para refrescar nossa memória: as relações hierárquicas no século XIX e parte do século XX caracterizavam-se por um respeito venerando pelas figuras escalonares superiores que, de início, se aproximavam de uma submissão total, mal disfarçada por regras rígidas e estritas, principalmente para aqueles colocados em posição de menor graduação. Foi a época do Herr Professor, o dono absoluto e vitalício da sua cátedra, o professor emérito de aula sempre magistral, aula que deveria ser ouvida com uma quase veneração e que não comportava questionamentos. Um temor reverencial tolhia a manifestação dos jovens estudantes que ainda não haviam passado pelos anos 60 do século XX quando se livrariam dos grilhões da subjugação. O mesmo acontecia na relação médico-paciente; este último aceitava, sem questionamentos, as prescrições divinas de um ser superior e intocável. Nas outras áreas das relações humanas encontrava-se o mesmo padrão; é claro que a psicanálise não poderia ser exceção. O médico psicanalista tentava manter sua autoridade intocada. Freud:  ...se, porém, nada mais se desenvolve, podemos concluir que cometemos algum equívoco, e admitiremos isso para o paciente em alguma oportunidade apropriada, sem nada sacrificar de nossa autoridade.[1]
Mas, especialmente na psicanálise, a manutenção de uma autoridade – em última instância - inquestionável tornava-se cada vez mais difícil: o estímulo à associação livre, os fenômenos da transferência e contratransferência, as defesas e resistências levavam analisando e analista a enfrentar a situação de autoridade do analista. Ao mesmo tempo as transformações tecnológicas e econômicas passaram a exigir uma maior independência de pensamento, uma irreverência, uma capacidade transgressora que se refletiram em todos os relacionamentos humanos. As relações hierárquicas modificaram-se, tornando-se socialmente aceitável, e - mais que aceitável - imperativo questionar-se as autoridades. O que era transgressão passou a ser norma. Tínhamos agora um mundo em que a hierarquia não protegia os detentores do poder de questionamentos. Instalou-se uma situação tendente à equalização nas relações escalonadas. Isso tanto do lado do superior quanto do inferior. Portanto essa nova subjetividade atravessa tanto o analisando quanto o analista.

         Quero focalizar outra característica do ainda denominado homem pós-moderno e que se imbrica com a questão igualitária. Refiro-me ao narcisismo. Esse termo que durante décadas foi visto como um indesejável resquício infantil, ou como uma patologia, foi reabilitado por alguns autores, especialmente por Kohut que fala de um narcisismo imaturo e de um narcisismo maduro. No excerto clínico que apresentarei, estaremos lidando com um narcisismo defensivo, cuja função é negar a insegurança e precariedade humana. Um escudo narcísico tão sólido, denso, maciço e cerrado que parecia não haver brecha para o seu atenuamento. 

         Ferenczi  foi um dos autores que propugnou por uma maior igualdade na relação analítica, especialmente com pacientes narcísicos. Searles segue essa mesma orientação:

Segundo minha experiência, para tornar possível a resolução do autismo do paciente é preciso que o analista seja mais do que uma melhor “barreira protetora” para o paciente do que foi a mãe biológica durante a infância e primeira meninice, como Khan descreveu. É preciso que antes o analista a torne crescentemente livre para poder aceitar o paciente na função de mãe-protetora do analista. Eu concebo as coisas da seguinte maneira: na medida em que o analista torna-se capaz de livre e confortavelmente de imergir dentro do paciente autista que deve tornar-se seu universo (do analista) o paciente pode então utilizar o analista como modelo de identificação no que diz respeito à aceitação de suas necessidades de dependência infantil primitiva, e ele  pode mudar, pouco a pouco seu antigo universo autístico pelo universo constituído e personificado pelo analista (....) Uma vez que o paciente pôde maternalizar, com sucesso, o seu analista, como se o analista fosse um bebê ou um feto, já agora o paciente não se humilha ao se tornar crescentemente consciente de suas próprias necessidades infantis, tendo agora o analista como mãe.[2]

 

Essa citação nos remete tanto à questão das relações hierárquicas quanto à do narcisismo. Sinto-me agora preparado para trazer minha vinheta clínica.

    Flávia está há 6 anos comigo. Inteligente e criativa sofria de angústias e inibições. Procurou-me muito mais pelas angústias que pelas inibições. Gosta de curtir a vida e tem uma veia artística que se manifesta nas atividades de seu tempo de lazer, no cuidado sensível com que presenteia pessoas e prepara festas. O episódio que será narrado ocorreu há aproximadamente quatro anos após cerca de um ano e meio de tratamento. Naquela época fiz aproximadamente o seguinte registro: "Flávia é controladora e onipotente. Tudo tem de acontecer segundo os seus desejos. Isto já tinha lhe sido verbalmente apontado sem qualquer efeito aparente. Alguns cuidadosos ensaios de tangenciamento de aspectos infantis de Flávia tinham resultado em veladas ameaças de pesadas críticas a certos comportamentos meus, provocando a damocliniana sensação de que qualquer mínimo deslize seria cuidadosamente armazenado como falha a oportunamente se tornar falta grave e imperdoável numa futura possível ocasião de perigo à sua dinâmica psíquica. Este sentimento de estar sendo submetido a um escrutínio crítico secreto provocava em mim uma certa tensão. Eu a achava uma pessoa interessante, apreciava trabalhar com ela, posso mesmo dizer (que os deuses da psicanálise me perdoem) que gostava dela e, no entanto, por ocasião da despedida, freqüentemente anunciava erradamente a data da sessão seguinte, adiando-a, revelando minha ambivalência em um ato falho recalcitrante e incômodo. Estes atos falhos eram por ela levados "numa boa", e dariam a impressão de não afetá-la não fosse o aparecimento, na sessão seguinte, de uma lentificação no fluxo verbal e de um maior distanciamento em relação a mim. Ao invés de tentar controlar meu comportamento de despedida, evitando o ato falho, resolvi analisá-lo para a díade terapêutica. Que pensamentos me levaram a esta decisão?

    Flávia era refratária a interpretações que, centradas na sua pessoa, revelassem certos aspectos de sua dinâmica psíquica; o apontamento de  seu desejo de controle do outro não só não tinha produzido nenhum efeito de transformação como também provocara distanciamento e dificuldade de verbalização. Ferenczi nos diz que não existem pessoas não analisáveis, mas sim inadequações técnicas e teóricas. Searles propõe uma análise "feeling orientation". Sullivan nos fala que não existe uma entidade isolada chamada paciente (ou analisando); o que existe, sim, é uma relação na qual o analista se coloca como observador-participante. Meu engano ao falar "até tal dia" fazia parte da dinâmica analista/analisando que havíamos construído durante nossa  experiência/vivência de relação analítica. Meu ato contratransferencial apontava para uma vivência transferencial da analisanda, ou, dito de outra maneira, meu comportamento acontecia como uma resposta a atitudes enraizadas na sua dinâmica psíquica potencial. Para ser ainda mais preciso em referência à minha decisão, posso dizer que meu comportamento, como reflexo de seu comportamento era parte de seu próprio comportamento; interpretar meu comportamento e minhas fantasias era, ao mesmo tempo, interpretá-la. Não podendo a relação ser analisada pelo pólo analisando tentar-se-ia analisá-la pelo pólo analista; as vantagens desta abordagem é que, em não afetando o seu narcisismo, minhas palavras não encontrariam a barreira de um ego ansioso e defendido. Creio também que ao deslocar o acento interpretativo para mim e para a relação ela sentiu-se menos ameaçada na sua continuidade (ou estrutura) pessoal; a mudança, se viesse a ser realizada, dar-se-ia a partir de um plano relacional estando pois eu mesmo incluído nesta mudança o que a acalmava no seu narcisismo e na sua solidão: havia alguém que era o seu duplo homólogo e complementar, com quem ela se identificava e que ao mudar mudava à ela e à relação, e que certamente  não se disporia a mudanças se uma catástrofe estivesse à vista.

    Por outro lado, em não me dividindo em pessoa que sente e terapeuta que fala, em não me dicotomizando em intelecto e emoção, facilitava-se a permeabilização das barreiras que a separavam de seus sentimentos e emoções, propiciando-lhe um processo de integração. Estou aqui falando de processos de identificação homóloga que jogam um tão importante papel nas modificações do funcionamento psíquico e que habitualmente são pisoteados e desconsiderados, como se ou não existissem, ou não devessem existir, ou como se sua existência não tivesse nenhuma importância nas transformações próprias de um tratamento psicanalítico.

    Foram estes os pensamentos que me levaram a realizar uma análise da relação pela via da análise das emoções e fantasias que haviam surgido em mim a partir da própria relação.

    Voltemos à sessão clínica. Tendo decidido desvelar para a díade as motivações do ato falho senti-me finalmente preparado para fazê-lo: disse-lhe que na despedida anterior havia novamente me enganado quanto à data da sessão próxima e  mais uma vez estranhara tal engano, já que me aprazia tratá-la. Perguntei-me então, continuei falando, do por que do ato falho. Na investigação introspectiva pude perceber que a sessão com ela produzia em mim uma certa tensão, origem provável de meus enganos. Mas, qual a fonte da tensão? foi a pergunta, disse eu, que naturalmente se apresentou. Pude então perceber, continuei, que em minha mente ela aparecia como extremamente exigente, demandando um comportamento pessoal e psicanalítico não menos que perfeito, o que quer que isso significasse, fazendo-me "pisar em ovos". A esta colocação seguiu-se um silêncio ao mesmo tempo tenso e relaxado, um silêncio de expectativa e assimilação. Finalmente Flávia disse que ela também se sentia controlada por mim no sentido de ter de dizer sempre coisas psicanaliticamente interessantes para me comprazer, pois se assim não fizesse a mandaria embora. Explicitada a dupla exigência em retroalimentação houve uma descontração e a sessão tornou-se mais leve. (Sua necessidade de me agradar por medo à rejeição já tinha sido interpretada, provocando pouca transformação; tornou-se mais eficiente ao ser dito por ela neste contexto relacional).

Sessão seguinte: Flávia lembrou-se de uma interpretação que eu havia dado em referência à sua relação com o namorado (ele terminara a relação e o fato de não saber qual o motivo fê-la sofrer muito, sofrimento que ainda perdurava dada a proximidade do acontecimento). Eu lhe havia dito, lembra-se ela, de sua exigência de um namorado que correspondesse inteiramente às suas expectativas e de sua tentativa de transformar o namorado nesta personificação ideal. Flávia, após informar que a partir da sessão anterior revalorizara essa  interpretação, quedou-se em silêncio e com um semblante de suave tristeza. Respondendo à minha pergunta disse não estar triste e acrescentou: "não quero me deprimir". Eu pensei que ela estava evitando sentir a culpa que certamente adviria de sua parte de responsabilidade no rompimento da relação.

    Faltou à sessão seguinte. Telefonou-me no dia subsequente pedindo um atendimento extra ao qual não pude atender. Tive de faltar mais duas sessões. Quando finalmente nos reencontramos relatou mudanças na relação com o ex-namorado que voltara a ser seu namorado. Tomando a iniciativa, ela marcara um encontro onde pediu com firmeza que ele dissesse os motivos do rompimento, obtendo, após um lapso de tergiversação, uma colocação firme, segura e direta; o namorado (ex) estava agindo como nunca antes, da maneira como ela sempre desejara; ele havia se modificado. Os encontros seguintes continuaram sendo caixinhas de surpresas: não mais se colocava na atitude de um "menino culpado" quando porventura se atrasava; sensualmente e sexualmente ele também estava diferente; por seu lado, surpreendentemente Flávia passou a aceitar os seus atrasos. Mostrei-lhe que não só ele havia mudado como também ela. Concordou e disse que achava que a sessão responsável por sua transformação tinha sido aquela em que eu dissera de minha tensão, de meu sentimento de estar sendo exigido e controlado por ela. Não sabe como, diz, mas tem certeza que foi aquela sessão o agente de transformação. Eu cá com meus óculos penso que, ao revelar um padrão desprazeroso, vicioso e angustiante de relacionamento estou, ao mesmo tempo, realizando a experiência de outro tipo de relação. Estamos na fronteira de dois modos de funcionamento interpessoal e fantasmático, transitando de um para outro. Momento de desconstrução, de vitalidade, de agitação, momento em que tudo se mexe, se desfaz e refaz; nesta região limítrofe, o estratificado-endurecido se amolece permitindo novas modelagens; aqui, falar e agir se amalgama formando uma poderosa unidade em operação. Ao falar da exigência e controle que está naquele momento acontecendo, libertamo-nos de suas amarras; ou, pelo menos, afrouxam-se seus laços aprisionadores. Porque, como era de se esperar, a exigência e o controle não desapareceram. Sofrem oscilações de intensidade, mas agora gravitam em torno de um ponto de referência vivencial-ideal de inexistência que por vezes se realiza e que tende cada vez mais para a permanência.


    Alguns dos conceitos subsumidos: experiência/vivência compartilhada; identificação homóloga e complementar; unidade fala/ato/emoção; interiorização (surgimento de uma potência) de padrão de relacionamento; ênfase na relação interpessoal e inter-fantasmática; narcisismo; paradoxo hierarquia/igualdade; e outros a serem descobertos pelos ouvintes de paciência e boa vontade. Obrigado.

 

                                                      Nahman Armony

 

                                                   

                                                            

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] FREUD, S. (1937)  “Construções em análise”, p.296. IN: Obras Completas, vol.XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 
[2] SEARLES, H. (1972) “Concerning therapeutic symbiosis: the patient as symbiotic therapist, the phase of ambivalent symbiosis and the role of jealousy in the fragmented ego”, p. 190/1. IN:  Countertransference and related subjects. New York: International University Press, Inc., 1979.
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PRESSÃO X EXPRESSÃO


 

         O convívio humano é complicado. E mais complicada ainda a convivência de casais. Especialmente em períodos de transição como o nosso. De uma época de individualismo em que cada um tinha o seu papel definido, caminhamos, se é que já não lá chegamos, para um tempo de igualdade e confronto de casais. A mulher já não aceita se submeter às determinações do homem. Testemunha inconformada de uma época de submissão feminina, hipersensibilizada pela antiga configuração familiar vivida pela mãe, facilmente sente-se tratada pelo homem como um ser inferior. É uma situação que dificulta o diálogo, pois as colocações que se pretenderiam expositivas, são vivenciadas como impositivas provocando reações exageradas e levando a relação para um terreno emocional exacerbado provocando desde discussões verbais destemperadas até agressões orais e físicas. Porém não devemos esquecer que ainda carregamos conosco resquícios de uma subjetividade que ainda está em processo de se tornar passado. Por isso mesmo, poderá haver no homem uma nota eclipsada de autoritarismo e na mulher uma oculta identificação com a mulher submissa do passado, tornando a situação muito sensível à mínima e inconsciente expressão de autoritarismo e submissão.

         É ainda esta constelação que herdamos de um passado recente que influi em outro aspecto da relação de casal. Mesmo na posição submissa a mulher exercia um poder, maior ou menor, dependendo da dinâmica do casal; um poder que se exercia silenciosamente, sutilmente, refratário à verbalização e que mesmo colocado em palavras mal resistia a uma argumentação racional. Esse poder se exercia nos pontos vulneráveis no homem. Um dos mais comuns era sua mobilização diante da doença feminina, respeitada quase como um tabu. Por mais objetivo que o homem fosse, e por mais que ele encarasse as queixas femininas como frívolas, diante de uma doença ele se mobilizava possibilitando à mulher podia exercer um poder. Mas havia outras formas de exercício de poder. A recusa ao sexo mediante pretextos (dos quais o mais conhecido é a dor de cabeça), a negação de um apoio afetivo consistente, e outras. Mas, diríamos, este tempo passou. Hoje em dia as relações homem-mulher são igualitárias, os direitos são equivalentes e, ao invés de domínio e imposição temos entendimento, respeito e acordo a satisfazer os interessados, de tal forma que eles possam conviver com as diferenças. Mas, será tão diferente assim? A vontade de fazer prevalecer os próprios pontos de vista e desejos é um dos impulsos dos seres humanos. A isso se acresce a recente herança advinda das relações verticais que obrigava o lado submetido a agir sub-repticiamente. O que muitas vezes parece e poderia ser uma ponderação sobre as diferenças individuais para se chegar a um acordo descamba com facilidade para uma tentativa de manipulação do outro. Um tom de voz impositivo, ameaças veladas, reiteradas repetições, sutis culpabilizações, um persistente tom queixoso de vitimização, todas estas são formas conscientes ou inconscientes de pressionar o parceiro para além de seu desejo e ajuizamento, provocando mal-estar e conflito. Existe aqui uma dificuldade e complicação. Sem dúvida certos comportamentos seriam classificados como comportamentos de pressão. Já outros, porém, não apresentam essa clareza. Dependerão da susceptibilidade de quem ouve, do significado que as comunicações adquiriram ao longo da convivência. Expressão ou pressão? O parceiro está apenas expressando seus desejos e pontos de vista ou o está pressionando? Às vezes a pressão é evidente. Outras vezes ela é sutil, quase indiscernível e, finalmente há situações em que a pressão depende de um estado de receptividade. Estamos em um terreno pantanoso, fluido, repleto de idas e vindas e de variações infinitesimais. Importante que os casais percebam a complexidade das situações relacionais para não se deixarem levar ingenuamente pela sensação de manipulação e controle nem ingenuamente esconder de si próprios a possibilidade de isto estar acontecendo.    

 

                                                           Nahman Armony

     Primeira publicação na revista Caras em 2007.