Paixão visceral
Após algum tempo de relacionamento amoroso
eventualmente acontece de um dos parceiros começar a reclamar: “Você já não
é o mesmo. Me escondeu muita coisa de sua personalidade. Me enganou para me
conquistar. Antes, parecia adivinhar os meus desejos e mesmo se antecipar a
eles. Agora você já não me entende, não tem consideração por mim.” E por aí
vai. Às vezes a briga esquenta. Um chama o outro de mentiroso, farsante,
fingido. Uma carga de adjetivos negativos transforma o companheiro num canalha,
num ser desprezível. Mas será ele realmente um mau-caráter? Pode ser que sim.
Também é possível, no entanto, que seja uma vítima da “síndrome de
apaixonamento visceral”.
Esse tipo de apaixonamento toca o mais
fundo do ser e estabelece uma relação na qual o único que conta é o outro, com
seus desejos, melindres, peculiaridades. A atenção é inteiramente desviada de
si mesmo e dirigida para o amado. O apagamento pessoal faz do amante um serviçal,
quase um escravo. As questões pessoais, as próprias necessidades, suscetibilidades
e desejos deixam de ter importância, são postos de lado. O único objetivo é
fazer o outro feliz. Cada membro do casal, ao esmerar-se em comprazer ao
parceiro, surge como um ente caído do céu, destinado a torná-lo venturoso para
todo o sempre.
É uma relação que lembra a dupla
mãe-bebê, em que a primeira deixa de lado os dissabores, as questões pessoais,
os outros amores e interesses para se dedicar exclusivamente ao seu rebento,
àquele ser visceral gestado na intimidade de sua barriga. Em se tratando de casal amoroso, ambos são,
metaforicamente, bebê e mãe. Um procura agradar e servir ao outro em detrimento
de si próprio.
O apaixonamento visceral tornará o
casal tão amalgamado que podemos compará-lo a irmãos siameses, unidos por
vísceras comuns. Quero aqui recordar o filme O Segredo de Brockeback
Mountain (2005), vencedor de três Oscars, no qual vemos que nada, nem mesmo
a morte puderam separar os amantes. Eis aí o problema desse tipo de relação.
Quando o mútuo fascínio declina, surgem as individualidades e as diferenças
pessoais. Muitas variáveis entram então em jogo: se as diferenças forem tão
grandes que tornem impossível a convivência, a relação de apaixonamento
visceral fará com que a necessária separação, se puder acontecer, seja
extremamente dolorosa, provocando muito sofrimento psíquico e físico. Se as
diferenças não ultrapassarem o limite das possibilidades de entrosamento, a
força da relação visceral ajudará a superar o desconforto causado pelas dessemelhanças
facilitando a renúncia ao desejo impossível de entendimento perfeito.
Como surge esse tipo de amor que estou
chamando de apaixonamento visceral? Para explicar, vou me valer novamente do
cinema. Existem alguns filmes que apresentam um tema recorrente. O namorado
morre e retorna posteriormente no corpo de outra pessoa. A antiga namorada que
permaneceu viva, ao encontrar-se por acaso com o antigo namorado em um novo
corpo evidentemente não o reconhece, mas sente que existe algo de familiar
nele. Essa mistura de estranho e familiar faz daquela pessoa um ser misterioso
que surpreende, intriga e atrai. Algo antigo, vindo do passado remoto, vibra e
ela se sente pronta a se aproximar daquele estranho/familiar para um
apaixonamento visceral. Esses filmes são alegorias de encontros em que um
enxerga no outro algo de seu passado mais longínquo vivido com a mãe ou outra
figura poderosa. Um tipo de amor que pode ser uma bênção -- quando não há uma
incompatibilidade essencial e o casal ultrapassa a idéia de encaixe exato,
aceitando as imperfeições, individualidades e diferenças -- ou uma maldição --
quando acontece o contrário: modos de ser irreconciliáveis ou impossibilidade
de renunciar à perfeição dos primeiros tempos da relação.
Nahman Armony
Primeira publicação na revista CARAS
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