PODER E TRANSGRESSÃO NA RELAÇÃO ANALÍTICA


                                                                               
         Do século XX ao XXI as relações de poder se transformam e o que era transgressão aos poucos vai sendo culturalmente assimilado como forma de relacionamento. Só para refrescar nossa memória: as relações hierárquicas no século XIX e parte do século XX caracterizavam-se por um respeito venerando pelas figuras escalonares superiores que, de início, se aproximavam de uma submissão total, mal disfarçada por regras rígidas e estritas, principalmente para aqueles colocados em posição de menor graduação. Foi a época do Herr Professor, o dono absoluto e vitalício da sua cátedra, o professor emérito de aula sempre magistral, aula que deveria ser ouvida com uma quase veneração e que não comportava questionamentos. Um temor reverencial tolhia a manifestação dos jovens estudantes que ainda não haviam passado pelos anos 60 do século XX quando se livrariam dos grilhões da subjugação. O mesmo acontecia na relação médico-paciente; este último aceitava, sem questionamentos, as prescrições divinas de um ser superior e intocável. Nas outras áreas das relações humanas encontrava-se o mesmo padrão; é claro que a psicanálise não poderia ser exceção. O médico psicanalista tentava manter sua autoridade intocada. Freud:  ...se, porém, nada mais se desenvolve, podemos concluir que cometemos algum equívoco, e admitiremos isso para o paciente em alguma oportunidade apropriada, sem nada sacrificar de nossa autoridade.[1]
Mas, especialmente na psicanálise, a manutenção de uma autoridade – em última instância - inquestionável tornava-se cada vez mais difícil: o estímulo à associação livre, os fenômenos da transferência e contratransferência, as defesas e resistências levavam analisando e analista a enfrentar a situação de autoridade do analista. Ao mesmo tempo as transformações tecnológicas e econômicas passaram a exigir uma maior independência de pensamento, uma irreverência, uma capacidade transgressora que se refletiram em todos os relacionamentos humanos. As relações hierárquicas modificaram-se, tornando-se socialmente aceitável, e - mais que aceitável - imperativo questionar-se as autoridades. O que era transgressão passou a ser norma. Tínhamos agora um mundo em que a hierarquia não protegia os detentores do poder de questionamentos. Instalou-se uma situação tendente à equalização nas relações escalonadas. Isso tanto do lado do superior quanto do inferior. Portanto essa nova subjetividade atravessa tanto o analisando quanto o analista.

         Quero focalizar outra característica do ainda denominado homem pós-moderno e que se imbrica com a questão igualitária. Refiro-me ao narcisismo. Esse termo que durante décadas foi visto como um indesejável resquício infantil, ou como uma patologia, foi reabilitado por alguns autores, especialmente por Kohut que fala de um narcisismo imaturo e de um narcisismo maduro. No excerto clínico que apresentarei, estaremos lidando com um narcisismo defensivo, cuja função é negar a insegurança e precariedade humana. Um escudo narcísico tão sólido, denso, maciço e cerrado que parecia não haver brecha para o seu atenuamento. 

         Ferenczi  foi um dos autores que propugnou por uma maior igualdade na relação analítica, especialmente com pacientes narcísicos. Searles segue essa mesma orientação:

Segundo minha experiência, para tornar possível a resolução do autismo do paciente é preciso que o analista seja mais do que uma melhor “barreira protetora” para o paciente do que foi a mãe biológica durante a infância e primeira meninice, como Khan descreveu. É preciso que antes o analista a torne crescentemente livre para poder aceitar o paciente na função de mãe-protetora do analista. Eu concebo as coisas da seguinte maneira: na medida em que o analista torna-se capaz de livre e confortavelmente de imergir dentro do paciente autista que deve tornar-se seu universo (do analista) o paciente pode então utilizar o analista como modelo de identificação no que diz respeito à aceitação de suas necessidades de dependência infantil primitiva, e ele  pode mudar, pouco a pouco seu antigo universo autístico pelo universo constituído e personificado pelo analista (....) Uma vez que o paciente pôde maternalizar, com sucesso, o seu analista, como se o analista fosse um bebê ou um feto, já agora o paciente não se humilha ao se tornar crescentemente consciente de suas próprias necessidades infantis, tendo agora o analista como mãe.[2]

 

Essa citação nos remete tanto à questão das relações hierárquicas quanto à do narcisismo. Sinto-me agora preparado para trazer minha vinheta clínica.

    Flávia está há 6 anos comigo. Inteligente e criativa sofria de angústias e inibições. Procurou-me muito mais pelas angústias que pelas inibições. Gosta de curtir a vida e tem uma veia artística que se manifesta nas atividades de seu tempo de lazer, no cuidado sensível com que presenteia pessoas e prepara festas. O episódio que será narrado ocorreu há aproximadamente quatro anos após cerca de um ano e meio de tratamento. Naquela época fiz aproximadamente o seguinte registro: "Flávia é controladora e onipotente. Tudo tem de acontecer segundo os seus desejos. Isto já tinha lhe sido verbalmente apontado sem qualquer efeito aparente. Alguns cuidadosos ensaios de tangenciamento de aspectos infantis de Flávia tinham resultado em veladas ameaças de pesadas críticas a certos comportamentos meus, provocando a damocliniana sensação de que qualquer mínimo deslize seria cuidadosamente armazenado como falha a oportunamente se tornar falta grave e imperdoável numa futura possível ocasião de perigo à sua dinâmica psíquica. Este sentimento de estar sendo submetido a um escrutínio crítico secreto provocava em mim uma certa tensão. Eu a achava uma pessoa interessante, apreciava trabalhar com ela, posso mesmo dizer (que os deuses da psicanálise me perdoem) que gostava dela e, no entanto, por ocasião da despedida, freqüentemente anunciava erradamente a data da sessão seguinte, adiando-a, revelando minha ambivalência em um ato falho recalcitrante e incômodo. Estes atos falhos eram por ela levados "numa boa", e dariam a impressão de não afetá-la não fosse o aparecimento, na sessão seguinte, de uma lentificação no fluxo verbal e de um maior distanciamento em relação a mim. Ao invés de tentar controlar meu comportamento de despedida, evitando o ato falho, resolvi analisá-lo para a díade terapêutica. Que pensamentos me levaram a esta decisão?

    Flávia era refratária a interpretações que, centradas na sua pessoa, revelassem certos aspectos de sua dinâmica psíquica; o apontamento de  seu desejo de controle do outro não só não tinha produzido nenhum efeito de transformação como também provocara distanciamento e dificuldade de verbalização. Ferenczi nos diz que não existem pessoas não analisáveis, mas sim inadequações técnicas e teóricas. Searles propõe uma análise "feeling orientation". Sullivan nos fala que não existe uma entidade isolada chamada paciente (ou analisando); o que existe, sim, é uma relação na qual o analista se coloca como observador-participante. Meu engano ao falar "até tal dia" fazia parte da dinâmica analista/analisando que havíamos construído durante nossa  experiência/vivência de relação analítica. Meu ato contratransferencial apontava para uma vivência transferencial da analisanda, ou, dito de outra maneira, meu comportamento acontecia como uma resposta a atitudes enraizadas na sua dinâmica psíquica potencial. Para ser ainda mais preciso em referência à minha decisão, posso dizer que meu comportamento, como reflexo de seu comportamento era parte de seu próprio comportamento; interpretar meu comportamento e minhas fantasias era, ao mesmo tempo, interpretá-la. Não podendo a relação ser analisada pelo pólo analisando tentar-se-ia analisá-la pelo pólo analista; as vantagens desta abordagem é que, em não afetando o seu narcisismo, minhas palavras não encontrariam a barreira de um ego ansioso e defendido. Creio também que ao deslocar o acento interpretativo para mim e para a relação ela sentiu-se menos ameaçada na sua continuidade (ou estrutura) pessoal; a mudança, se viesse a ser realizada, dar-se-ia a partir de um plano relacional estando pois eu mesmo incluído nesta mudança o que a acalmava no seu narcisismo e na sua solidão: havia alguém que era o seu duplo homólogo e complementar, com quem ela se identificava e que ao mudar mudava à ela e à relação, e que certamente  não se disporia a mudanças se uma catástrofe estivesse à vista.

    Por outro lado, em não me dividindo em pessoa que sente e terapeuta que fala, em não me dicotomizando em intelecto e emoção, facilitava-se a permeabilização das barreiras que a separavam de seus sentimentos e emoções, propiciando-lhe um processo de integração. Estou aqui falando de processos de identificação homóloga que jogam um tão importante papel nas modificações do funcionamento psíquico e que habitualmente são pisoteados e desconsiderados, como se ou não existissem, ou não devessem existir, ou como se sua existência não tivesse nenhuma importância nas transformações próprias de um tratamento psicanalítico.

    Foram estes os pensamentos que me levaram a realizar uma análise da relação pela via da análise das emoções e fantasias que haviam surgido em mim a partir da própria relação.

    Voltemos à sessão clínica. Tendo decidido desvelar para a díade as motivações do ato falho senti-me finalmente preparado para fazê-lo: disse-lhe que na despedida anterior havia novamente me enganado quanto à data da sessão próxima e  mais uma vez estranhara tal engano, já que me aprazia tratá-la. Perguntei-me então, continuei falando, do por que do ato falho. Na investigação introspectiva pude perceber que a sessão com ela produzia em mim uma certa tensão, origem provável de meus enganos. Mas, qual a fonte da tensão? foi a pergunta, disse eu, que naturalmente se apresentou. Pude então perceber, continuei, que em minha mente ela aparecia como extremamente exigente, demandando um comportamento pessoal e psicanalítico não menos que perfeito, o que quer que isso significasse, fazendo-me "pisar em ovos". A esta colocação seguiu-se um silêncio ao mesmo tempo tenso e relaxado, um silêncio de expectativa e assimilação. Finalmente Flávia disse que ela também se sentia controlada por mim no sentido de ter de dizer sempre coisas psicanaliticamente interessantes para me comprazer, pois se assim não fizesse a mandaria embora. Explicitada a dupla exigência em retroalimentação houve uma descontração e a sessão tornou-se mais leve. (Sua necessidade de me agradar por medo à rejeição já tinha sido interpretada, provocando pouca transformação; tornou-se mais eficiente ao ser dito por ela neste contexto relacional).

Sessão seguinte: Flávia lembrou-se de uma interpretação que eu havia dado em referência à sua relação com o namorado (ele terminara a relação e o fato de não saber qual o motivo fê-la sofrer muito, sofrimento que ainda perdurava dada a proximidade do acontecimento). Eu lhe havia dito, lembra-se ela, de sua exigência de um namorado que correspondesse inteiramente às suas expectativas e de sua tentativa de transformar o namorado nesta personificação ideal. Flávia, após informar que a partir da sessão anterior revalorizara essa  interpretação, quedou-se em silêncio e com um semblante de suave tristeza. Respondendo à minha pergunta disse não estar triste e acrescentou: "não quero me deprimir". Eu pensei que ela estava evitando sentir a culpa que certamente adviria de sua parte de responsabilidade no rompimento da relação.

    Faltou à sessão seguinte. Telefonou-me no dia subsequente pedindo um atendimento extra ao qual não pude atender. Tive de faltar mais duas sessões. Quando finalmente nos reencontramos relatou mudanças na relação com o ex-namorado que voltara a ser seu namorado. Tomando a iniciativa, ela marcara um encontro onde pediu com firmeza que ele dissesse os motivos do rompimento, obtendo, após um lapso de tergiversação, uma colocação firme, segura e direta; o namorado (ex) estava agindo como nunca antes, da maneira como ela sempre desejara; ele havia se modificado. Os encontros seguintes continuaram sendo caixinhas de surpresas: não mais se colocava na atitude de um "menino culpado" quando porventura se atrasava; sensualmente e sexualmente ele também estava diferente; por seu lado, surpreendentemente Flávia passou a aceitar os seus atrasos. Mostrei-lhe que não só ele havia mudado como também ela. Concordou e disse que achava que a sessão responsável por sua transformação tinha sido aquela em que eu dissera de minha tensão, de meu sentimento de estar sendo exigido e controlado por ela. Não sabe como, diz, mas tem certeza que foi aquela sessão o agente de transformação. Eu cá com meus óculos penso que, ao revelar um padrão desprazeroso, vicioso e angustiante de relacionamento estou, ao mesmo tempo, realizando a experiência de outro tipo de relação. Estamos na fronteira de dois modos de funcionamento interpessoal e fantasmático, transitando de um para outro. Momento de desconstrução, de vitalidade, de agitação, momento em que tudo se mexe, se desfaz e refaz; nesta região limítrofe, o estratificado-endurecido se amolece permitindo novas modelagens; aqui, falar e agir se amalgama formando uma poderosa unidade em operação. Ao falar da exigência e controle que está naquele momento acontecendo, libertamo-nos de suas amarras; ou, pelo menos, afrouxam-se seus laços aprisionadores. Porque, como era de se esperar, a exigência e o controle não desapareceram. Sofrem oscilações de intensidade, mas agora gravitam em torno de um ponto de referência vivencial-ideal de inexistência que por vezes se realiza e que tende cada vez mais para a permanência.


    Alguns dos conceitos subsumidos: experiência/vivência compartilhada; identificação homóloga e complementar; unidade fala/ato/emoção; interiorização (surgimento de uma potência) de padrão de relacionamento; ênfase na relação interpessoal e inter-fantasmática; narcisismo; paradoxo hierarquia/igualdade; e outros a serem descobertos pelos ouvintes de paciência e boa vontade. Obrigado.

 

                                                      Nahman Armony

 

                                                   

                                                            

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] FREUD, S. (1937)  “Construções em análise”, p.296. IN: Obras Completas, vol.XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 
[2] SEARLES, H. (1972) “Concerning therapeutic symbiosis: the patient as symbiotic therapist, the phase of ambivalent symbiosis and the role of jealousy in the fragmented ego”, p. 190/1. IN:  Countertransference and related subjects. New York: International University Press, Inc., 1979.
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