. A questão moral está em
pauta no Brasil e no mundo. As transgressões, não só as grandes como também as
pequenas, multiplicam-se, proliferam cancerigenamente, ameaçando a
sobrevivência da sociedade. Roubo, corrupção, suborno, tráfico de influência,
assassinatos, impunidade, e mais, vemos e lemos diariamente nos jornais. E tudo
isto com a maior desfaçatez, com uma espécie de orgulhosa arrogância onipotente
de estar acima dos homens e além da lei. Chegamos ao requinte de corromper a
própria corrupção: os políticos fisiológicos de tal maneira se deixaram imbuir
pela corrupção que corromperam a própria. Foram comprados e não pagaram a
conta. Foram infiéis à própria corrupção. Absoluto pioneirismo. Brasil à frente
do mundo. Também as pequenas transgressões estão diariamente ao alcance de
nossa vista: trânsito, imposto de renda, apropriação de livros, depositação de
fezes de animais domésticos nas calçadas, horários, faltas, etc. Não vou me
estender naquilo que é percepção e pensamento comum. Está em curso um processo
de dissolução da moral e alguma coisa deverá ser feita para que as relações
humanas não cheguem ao nível do insuportável. Este trabalho coloca-se na linha
das tentativas de compreensão/contribuição a este problema.
Os termos ética e moral,
usados de formas múltiplas, muitas vezes se confundem. Aqui, por necessidade
metodológica, vou distingui-los atribuindo-lhes significados distintos se bem
que próximos. Chamarei de moral às normas de conduta estabelecidas por cada
grupo social; modelo a ser seguido. Chamarei de ética os princípios gerais que
sustentam as relações sociais; cada situação deverá ser esquadrinhada, sentida
e examinada à luz destes princípios gerais.
Tanto Freud quanto Winnicott
usam o termo moral para falar da ação reguladora do superego. Porém, dentro das
definições de ética e moral por mim escolhidas cabe falar de moral quando se trata
do superego freudiano e de ética quando estiver em pauta o superego
winnicottiano.
Se não distinguirmos moral
de ética, então abandonar a moral será ao mesmo tempo abandonar a ética. Em
outras palavras: se confundirmos modelos orientadores com princípios
moduladores, a desmoralização da moral acarretará a perda de princípios
ordenadores de valor. Por isso mesmo é preciso muito bem distinguir moral de
ética. O estudo do superego moral freudiano e do superego ético winnicottiano
ajudar-nos-á a realizar esta distinção.
O superego freudiano é
teorizado colocando-o no período edípico. A referência principal de
identificação é o pai, ou mais precisamente, o superego do pai. O superego
winnicottiano é teorizado tendo como figura de interlocução intersubjetiva a
mãe. Mais adiante voltaremos a examinar as diferenças e as conseqüências destas
duas concepções de superego. Chamarei por enquanto a atenção para o seguinte: a
concepção superegóica freudiana tem o pai como referência principal e a
winnicottiana a mãe.
As dificuldades nas relações
identificatórias com a função materna e no processo de identificação com a
função paterna repercutem nos campos ético e moral. Há uma imbricação e
interação entre uma sociedade capitalista que dificulta as identificações maternas
e paternas e as modificações sofridas pela ética e pela moral portada pelas
pessoas. Houve uma mudança na subjetividade que permitiu o aparecimento de
questionamentos em áreas antes vedadas por uma moral que reinava absoluta. O
antigo programa "Você decide" nos punha diante de dilemas
ético-morais antes inconcebíveis. Em um deles a decisão a ser tomada implicava
em uma relação extraconjugal consentida e estimulada por um marido estéril para
que sua esposa pudesse ter um filho de seu melhor amigo; este amigo se
predispunha à relação sexual com a esposa do amigo para que o casal pudesse ter
um filho. Um programa desses, há menos de duas décadas, seria absolutamente
inconcebível.
Vemo-nos, pois,
explicitamente colocados diante de dilemas morais-éticos. Um exemplo de minha
clínica ocorrido já há algum tempo, quando a moral/ética estava ainda em
moderado processo de dissolução: o marido de uma analisanda minha vivia em
conflito em sua empresa. Para ascender na hierarquia teria de aceitar entrar
nas "mamatas" existentes. Caso contrário marcaria passo, jamais
ultrapassando a posição em que se encontrava. Esta situação tornou-se comum nos
dias atuais e Sérgio Belmont nos traz um belo exemplo em seu trabalho "A
moral e o superego. O quê hoje nos diria Winnicott?".
No tempo em que dominavam,
soberanas, a representação, a metanarrativa, o desejo de unicidade, o desejo de
um conhecimento absoluto, a sociedade oferecia uma moral, um conjunto de regras
morais que deveriam ser obedecidas. É claro que, em tempo algum puderam ser
inteiramente domadas a pulsão, o desejo, as intensidades, mas por um certo
período a moral serviu para tentar manter disciplinada a massa dos deserdados,
enquanto a elite a transgredia na surdina. Aqui, no Brasil, esta situação
tornou-se socialmente desmascarada com o slogan
"levar vantagem" deste grande jogador de futebol que foi Gerson.
Ele trouxe para os despossuídos uma palavra de ordem que minou a barreira da
dupla moral, dando a oportunidade de, neste terreno, diminuir o desvantajoso
desequilíbrio em relação à elite. Reparem que ainda não estou falando da classe
média, a última a ser atingida pela dissolução da moralidade. Uso Gerson como
exemplo paradigmático pois o que era oculto tornou-se aparente. O esqueleto
exógeno moral começou a se desfazer de uma tal maneira que hoje praticamente
tudo se tornou permitido desde que se tenha suficiente habilidade e recursos
para contornar a lei.
Na época de Freud a
sociedade apresentava uma face moral rígida com regras a serem cumpridas. Mesmo
transgredidas por alguns, elas permaneciam como pilares consensualmente aceitos
pela sociedade. A idéia prevalecente era de que a lei era para ser cumprida, e
não contornada que é como hoje geralmente se pensa. A elaboração do superego
freudiano fez-se dentro desta subjetividade. Freud nos disse que a resolução do
complexo de Édipo se dava através da identificação do menino com o superego do
pai, formando, num corte súbito e brutal seu próprio superego. A partir de
então este superego servia de modelo para o ego, dirigindo rígida e
implacavelmente a vida da pessoa. Freud desvalorizava o superego em formação
permanente do feminino, valorizando a estabilidade e firmeza de caráter e de
princípios do masculino. Citação: "Não
posso fugir à noção (embora hesite em lhe dar expressão) de que, para as
mulheres, o nível daquilo que é eticamente normal, é diferente dos homens. Seu
superego nunca é tão inexorável, tão impessoal, tão independente de suas
origens emocionais como exigimos que o seja nos homens. Os traços de caráter que
críticos de todas as épocas erigiram contra as mulheres - que demonstram menor
senso de justiça que os homens, que estão menos aptas a submeter-se às grandes
exigências da vida, que são mais amiúde influenciadas em seus julgamentos por
sentimentos de afeição e hostilidade - todos eles seriam amplamente explicados
pela modificação na formação de seu superego que acima inferimos. Não devemos
nos permitir ser desviados de tais conclusões pelas negações dos feministas,
que estão ansiosos por nos forçar a encarar os dois sexos como completamente
iguais em posição e valor"[1].
O superego feminino, como participante do feminino em geral era, naquela
subjetividade, desvalorizado e reprimido. O superego freudiano, masculino,
edípico, é um superego inexorável, inflexível, viril, guiando-se
inabalavelmente por um consistente ideal de ego. É claro que manter uma tal
retidão no cotidiano é extremamente problemático, mas este era o discurso e a
meta ideal. Naturalizando-se a moral modelar facilita-se a indiferenciação moral-ética.
A ética deixa de ser criativa e passa a ser a repetição - diferencial que seja
- das regras morais adquiridas por identificação com os pais. Portanto ser
ético é repetir regras, é ser moral. Ética e moralidade se confundem. Quando as
transformações da sociedade exigem mudanças nos códigos morais, se a moral está
confundida com a ética, a derrocada das regras morais arrasta consigo a ética.
É preciso pois encontrar,
dentro da psicanálise, uma outra abordagem para a questão do superego, da moral
e da ética, uma abordagem que acentue a distinção entre moral e ética. Nós
podemos encontrá-la na concepção ética de Winnicott. No livro "O ambiente
e os processo de maturação" existe um artigo de 1958 intitulado
"Psicanálise do sentimento de culpa" onde Winnicott escreve: "Aqueles que sustentam o ponto de vista
de que a moralidade precisa ser inculcada ensinam as crianças pequenas de
acordo com essa idéia, e renunciam ao prazer de observar a moralidade [leia-se
ética] se desenvolver naturalmente em seus filhos, que estão se desenvolvendo
em um bom ambiente, proporcionado de um modo pessoal"[2](p.19).
Para Winnicott a moralidade depende da capacidade de sentir culpa e de reparar
o objeto cuja danificação provocou culpa. Para Freud a culpa surge na relação
do superego com o ego. O superego (ou uma dependência sua - o ideal do ego)
prescreve mandatos que o ego não consegue realizar, sendo então castigado pelo
superego através do sentimento de culpa. Winnicott tem uma concepção mais
positiva do superego em suas relações teóricas com o sentimento de culpa. Diz
ele: "Um sentimento de culpa,
portanto, implica que o ego está se reconciliando com o superego"[3](p.22). Freud fala de repressão maciça
relacionada ao superego, estabelecendo-se então um ideal de ego calcado no modelo
fornecido pelo superego dos pais. Chamaríamos a este superego de superego
modelar e o distinguiríamos do superego winnicottiano que se forma
gradativamente na relação com a mãe e que chamaríamos de superego experiencial.
Quando a perspectiva é
moral, (seguir as regras morais da sociedade) ficamos amarrados em nossa
criatividade, em nossa capacidade de encontrar soluções para situações limites.
E a teoria freudiana do superego nos coloca justamente nessa perspectiva. A
criança se identifica com o superego do pai e passa a reprimir o ego em função
de um modelo. Lida-se então mal com situações vitais ambíguas que a todo
momento encontramos. Situações ambíguas que na subjetividade clássica e moderna
não eram postas em questão pois o padrão moral deveria prevalecer a qualquer
custo. Hoje o padrão moral já pode ser questionado. Foi o que aconteceu no
programa "Você decide" em que o espectador era colocado em dilemas
ético/morais. Este programa seria inconcebível há duas décadas atrás, o que dá
uma medida das transformações da subjetividade. Alguns exemplos de Marilena
Chauí em seu livro "Convite à filosofia" apresentam dilemas
semelhantes. Tomarei aqui dois deles "Um
pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente,
recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa
irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá
sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego,
mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deverá recusá-lo e ver os filhos com
fome e a mulher morrendo?” (p.334/5) Houve um tempo em que a subjetividade
circulante exigia uma honestidade absoluta, uma honestidade modelar, condenando
in limine qualquer desonestidade. Era
o princípio moral, ferindo princípios éticos. É claro que, como já vimos,
tratava-se na realidade de uma dupla moral, aquela desmascarada por Gerson.
Outro exemplo da mesma autora: "Um
rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela
correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido.
Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos ou estará
traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo com
uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser
múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou
deverá mentir para ambas?” (p.335) . Estas indagações só são possíveis se
adotamos uma atitude ética e não moral. Estas indagações só se tornaram
possíveis, como investigação ética, na subjetividade pós-moderna. A
subjetividade clássica e mesmo a moderna exigiam a honestidade e fidelidade a
qualquer preço (vide Jean Valjean e Javert de "Os Miseráveis" de
Victor Hugo), embora, como todos nós sabemos, a intensidade afetiva freqüentemente
atropelava a representação modelar.
Na perspectiva ética -
insinuâncias que atravessam o psiquismo - estamos mais aptos a considerar as
questões que se apresentam para tomar uma decisão, sem que esta decisão tenha
de estar amarrada a um modelo. Como o superego winnicottiano forma-se
gradativamente na relação com a mãe, ele apresenta uma flexibilidade capaz de
ajustar-se às situações sem deixar de ser ético. A criança preserva a mãe
apesar de seus desejos egoístas. A criança poderá atacar em um momento a mãe,
mas no momento seguinte irá reparar o mal feito. Tem medo de perder a mãe
ambiente atacando a mãe objeto. O precursor de seu princípio ético seria não
destruir a mãe objeto pois assim estaria destruindo a mãe ambiente. É um
princípio ético, digamos assim, egoísta, mas, sem dúvida, o precursor afetivo
de um pensamento ético mais amplo e intelectualizado. Um pensamento ético
amplo, raciocinado, mas que se apoia em afetos primitivos, em um devir
existencial. Ele encontra uma conciliação entre os seus desejos/necessidades e
os desejos/necessidades da mãe. Uma conciliação que, mais que conciliação, é
vivência de uma unidade múltipla proporcionada pela identificação dual-porosa.
Ao manter a capacidade e disponibilidade para a identificação dual-porosa a
criança tornar-se-á um adulto capaz de estender a experiência primitiva de
unidade múltipla ao mundo e ao cosmos. Diante de uma situação ele não terá de
seguir uma conduta determinada, não terá de copiar um modelo. Ele não terá
modelos, mas insinuâncias resultantes de suas experiências relacionais, mais
especialmente na sua relação com a figuras materna.
Este superego que se forma
desde o início na relação com a mãe nos aponta para uma flexibilidade capaz de
separar ética de moral. O fato de não seguirmos os modelos de conduta impostos
pelo social não nos torna não éticos na medida em que nossa conduta se baseará
em princípios afetivo-intelectuais que têm como precursor o não destruir a
mãe-ambiente, a empatia, a identificação dual-porosa, a unidade múltipla, a
identificação cruzada.
Na moral freudiana, uma
moral edípica triádica, mesmo considerando-se o fantasma originário da
castração, o mandato vem de fora. O pai/sociedade dirá ao filho: "Você não
poderá realizar o incesto com a sua mãe" cujo outro sentido é "Você
terá de recalcar a atmosfera materna", ou ainda "Você tem de ser
macho". Isto significa recalcar a sensibilidade, a capacidade de
empatizar, de se identificar, o livre fluxo dos afetos, etc. Trata-se de um
mandato externo, imposto ao filho pelos pais. E mandato externo lembra-nos o
falso self.
Já a ética winnicottiana
provém do interior, do medo que a criança tem de destruir a mãe boa ao destruir
a mãe má, ou em termos mais winnicottianos, o medo de destruir a mãe ambiente
ao destruir a mãe objeto. Não é o medo de ser castrado por um pai primeiramente
externo (posteriormente internalizado), mas um medo que já desde o início surge
de dentro da criança. Está aí em jogo o verdadeiro self de tal maneira que se
as regras impostas do exterior tiverem de ser transgredidas, elas não afetarão
o sentimento ético mais profundo de preservação da mãe, mais tarde estendido à
humanidade. O menino edípico freudiano poderá se rebelar contra a imposição do
pai relativa ao incesto, pois é algo que vem de fora. Se este algo que vem de
fora é tudo o que existe, rebelar-se contra o superego modelar paterno-materno
faz-se sobre a esteira de um imenso vazio. Já a criança no seu aspecto
pré-edípico ou não-edípico winnicottiano não poderá se rebelar contra um princípio
que ela própria criou que é o da preservação da mãe. Se mãe e bebê formam uma
unidade, preservar a mãe é preservar a si mesma. Abandonar o princípio ético
seria abandonar-se. Esta unidade mãe-bebê poderá ser, posteriormente estendida
ao social e ao ambiente planetário. Portanto, o movimento primitivo espontâneo
de preservação da mãe, de preservação da unidade relacional mãe-filho, pode
estender-se à humanidade, ao planeta e ao cosmos. Esse sentimento primitivo,
surgido na relação com a mãe, se preservado e desenvolvido desemboca numa
consciência ecológica, não modelar, não um modelo a ser seguido, mas exemplar,
isto é, uma experiência a ser vivida de cada vez dentro do sentimento holístico
que se criou, se preservou e se desenvolveu. Cada situação será examinada de per se em referência a insinuâncias
éticas e não em relação a modelos morais.
O modelo moral tende à
inflexibilidade dificultando o embarque na velocidade das transformações que se
operam na sociedade e na cultura. A alternativa é ou abandonar o modelo moral
perdendo os pontos de referência - o mais freqüente -, ou referenciar-se à
ética.
As insinuâncias éticas
produzem uma flexibilidade capaz de lidar com situações ambíguas sem ter de
lançar mão de modelos; a moral é relativizada e a ética preservada.
Nas vicissitudes da relação
pré-edípica mãe-bebê predomina o desejo de preservação da díada; predomina,
portanto, o amor.
Nas vicissitudes da
repressão edípica a agressão e a raiva, têm um papel relevante. O recalque se
consegue mediante a agressão do superego modelar contra o ego experiencial. A
instalação do superego é súbita. O aspecto modelar do superego freudiano em
contraste com a singularidade experiencial do indivíduo fica clara na seguinte
citação: "...pode-se conceber a
catástrofe do complexo de Édipo - o exílio (desterro) do incesto, a instituição
da consciência moral e da moral mesma - como um triunfo da espécie sobre o
indivíduo"[4]
("Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos,
p. 275). A subitaneidade da instalação (e também a agressividade) nos é
revelada por uma outra citação de Freud: "O
superego conservará o caráter do pai, e quanto mais intenso foi o complexo de
Édipo e mais rapidamente se produziu a sua repressão (pela influência da
autoridade, a doutrina religiosa, a educação, a leitura), tanto mais rigoroso
será depois o império do superego como consciência moral, talvez também como
sentimento inconsciente de culpa, sobre o ego"(Freud, "O ego e o
id" p. 36).
Enquanto Freud fala da
instalação rápida de um superego para que ele seja forte, cruel, implacável,
Winniccot fala-nos da "evolução de
um superego pessoal" (p.112 do livro "Os processos de
maturação", artigo "A moral e a educação"), uma evolução
conectada ao "funcionamento dos
processos internos do indivíduo" (idem). Diz mais: "Na realidade, a educação moral não dá
resultados a não ser que o menino tenha criado, seguindo um processo natural de
desenvolvimento, em si mesmo aquele que, colocado no céu, chamamos
Deus".(ibidem, p.113). Aquilo que chamamos de Deus nada mais é que a "projeção da bondade que é parte do
menino e de sua experiência real de vida."(idem).
Winnicott fala de uma
evolução do superego ligada à bondade, ao desejo de preservação da díada
mãe-filho, ao amor, diferentemente de Freud que nos apresenta um superego
cruel, implacável. "Agora o
superego, a consciência moral eficaz dentro dele, pode tornar-se duro, cruel,
inexorável para com o ego a quem tutela. Desse modo, o Imperativo Categórico de
Kant é a herança direta do Complexo de Édipo”[5]("El
problema econômico del masoquismo", v. XIX, p.173). O Imperativo
Categórico implica em uma obrigação, um dever imediato, absoluto e
incondicionado, excluindo portanto qualquer outro sentimento ou inclinação.
Exclui, portanto o amor e a bondade.
Winnicott, em seu artigo
"A moral e a educação" recorre à figura de Deus para falar de ética: "o bebê e a criança pequena costumam
ser cuidados de uma maneira estável, digna de confiança, a qual vai nela
crescendo até formar uma crença na estabilidade; nesta está contida a percepção
infantil da mãe ou do pai, a avó ou a babá. A idéia de bondade e de um pai ou
Deus pessoal e estável aparece de forma natural no menino que tenha começado a
vida deste modo" (p.116, ibidem).
A ética winnicottiana se
constrói desde o nascimento; ela não é uma súbita aquisição edípica. A ética
está ligada ao amor e não à agressão (embora haja amor e agressão tanto na
ética winnicottiana quanto na moral freudiana). A ética é singular, individual
e não modelar, da espécie. A ética é flexível e não rígida. Estamos aqui
falando de duas subjetividades, uma pertencente ao clássico e ao moderno e
outra pertencendo ao moderno e pós-moderno. A moral rígida - o que significa o
mesmo que dupla moralidade - serviu para o capitalismo manipular as massas
pobres. Enquanto à elite econômica e social tudo era permitido, as classes
média e pobre aceitavam as normas morais modelares rígidas, procurando se
conformar a elas.
A teoria psicanalítica
ligada a esta subjetividade é a do superego edípico. Estamos em outra época. As
classes média e pobre, por inúmeras razões (condições sócio-econômicas,
desequilíbrio nas identificações maternas e paternas, transformações da
subjetividade, identificações midiáticas, etc.) não mais aceitam as regras
morais. É preciso então batalhar por um superego capaz de se viabilizar nas
condições sociais da atualidade e não divulgar vídeos sobre a
implacabilidade/crueldade da luta pela sobrevivência no mundo selvagem. Esse
superego flexível poderia ser o pré-edípico (ou não-edípico) da teoria
winnicottiana, aquele que começa a vigorar a partir da interação intensiva da
mãe com o infante.
Nahman Armony
×
Publicado nos “Cadernos de
Psicanálise do CPRJ” n.11, 1997, ano 19. Editora Revinter, Rio de Janeiro.
[1]
FREUD, S. (1925) “Algumas conseqüências
psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” In : Edição Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud,
vol XIX, p.303. Imago: Rio de Janeiro, 1976.
[2]
WINNICOTT, D.W. (1958)
“Psicanálise do sentimento de culpa” In: “O ambiente e os processos de maturação”. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1982.
[4] FREUD, S. (1925) “Algunas consecuencias psíquicas de la diferencia
anatómica entre los sexos” In: Obras
Completas, vol. XIX,
pag. 172/3. Amorrortu editores, Buenos Aires, 1989.
[5] FREUD, S. (1924)- “El problema
económico del masoquismo”. Obras Completas, vol. XIX, pag. 172/3. Amorrortu
editores, Buenos Aires, 1989.