PODERIAM FREUD E WINNICOTT NOS AJUDAR A COMPREENDER AS TRANSFORMAÇÕES MORAIS E ÉTICAS DE NOSSOS TEMPOS?


.                                                         A questão moral está em pauta no Brasil e no mundo. As transgressões, não só as grandes como também as pequenas, multiplicam-se, proliferam cancerigenamente, ameaçando a sobrevivência da sociedade. Roubo, corrupção, suborno, tráfico de influência, assassinatos, impunidade, e mais, vemos e lemos diariamente nos jornais. E tudo isto com a maior desfaçatez, com uma espécie de orgulhosa arrogância onipotente de estar acima dos homens e além da lei. Chegamos ao requinte de corromper a própria corrupção: os políticos fisiológicos de tal maneira se deixaram imbuir pela corrupção que corromperam a própria. Foram comprados e não pagaram a conta. Foram infiéis à própria corrupção. Absoluto pioneirismo. Brasil à frente do mundo. Também as pequenas transgressões estão diariamente ao alcance de nossa vista: trânsito, imposto de renda, apropriação de livros, depositação de fezes de animais domésticos nas calçadas, horários, faltas, etc. Não vou me estender naquilo que é percepção e pensamento comum. Está em curso um processo de dissolução da moral e alguma coisa deverá ser feita para que as relações humanas não cheguem ao nível do insuportável. Este trabalho coloca-se na linha das tentativas de compreensão/contribuição a este problema.

Os termos ética e moral, usados de formas múltiplas, muitas vezes se confundem. Aqui, por necessidade metodológica, vou distingui-los atribuindo-lhes significados distintos se bem que próximos. Chamarei de moral às normas de conduta estabelecidas por cada grupo social; modelo a ser seguido. Chamarei de ética os princípios gerais que sustentam as relações sociais; cada situação deverá ser esquadrinhada, sentida e examinada à luz destes princípios gerais.

Tanto Freud quanto Winnicott usam o termo moral para falar da ação reguladora do superego. Porém, dentro das definições de ética e moral por mim escolhidas cabe falar de moral quando se trata do superego freudiano e de ética quando estiver em pauta o superego winnicottiano.

Se não distinguirmos moral de ética, então abandonar a moral será ao mesmo tempo abandonar a ética. Em outras palavras: se confundirmos modelos orientadores com princípios moduladores, a desmoralização da moral acarretará a perda de princípios ordenadores de valor. Por isso mesmo é preciso muito bem distinguir moral de ética. O estudo do superego moral freudiano e do superego ético winnicottiano ajudar-nos-á a realizar esta distinção.

O superego freudiano é teorizado colocando-o no período edípico. A referência principal de identificação é o pai, ou mais precisamente, o superego do pai. O superego winnicottiano é teorizado tendo como figura de interlocução intersubjetiva a mãe. Mais adiante voltaremos a examinar as diferenças e as conseqüências destas duas concepções de superego. Chamarei por enquanto a atenção para o seguinte: a concepção superegóica freudiana tem o pai como referência principal e a winnicottiana a mãe.

As dificuldades nas relações identificatórias com a função materna e no processo de identificação com a função paterna repercutem nos campos ético e moral. Há uma imbricação e interação entre uma sociedade capitalista que dificulta as identificações maternas e paternas e as modificações sofridas pela ética e pela moral portada pelas pessoas. Houve uma mudança na subjetividade que permitiu o aparecimento de questionamentos em áreas antes vedadas por uma moral que reinava absoluta. O antigo programa "Você decide" nos punha diante de dilemas ético-morais antes inconcebíveis. Em um deles a decisão a ser tomada implicava em uma relação extraconjugal consentida e estimulada por um marido estéril para que sua esposa pudesse ter um filho de seu melhor amigo; este amigo se predispunha à relação sexual com a esposa do amigo para que o casal pudesse ter um filho. Um programa desses, há menos de duas décadas, seria absolutamente inconcebível.

Vemo-nos, pois, explicitamente colocados diante de dilemas morais-éticos. Um exemplo de minha clínica ocorrido já há algum tempo, quando a moral/ética estava ainda em moderado processo de dissolução: o marido de uma analisanda minha vivia em conflito em sua empresa. Para ascender na hierarquia teria de aceitar entrar nas "mamatas" existentes. Caso contrário marcaria passo, jamais ultrapassando a posição em que se encontrava. Esta situação tornou-se comum nos dias atuais e Sérgio Belmont nos traz um belo exemplo em seu trabalho "A moral e o superego. O quê hoje nos diria Winnicott?".

No tempo em que dominavam, soberanas, a representação, a metanarrativa, o desejo de unicidade, o desejo de um conhecimento absoluto, a sociedade oferecia uma moral, um conjunto de regras morais que deveriam ser obedecidas. É claro que, em tempo algum puderam ser inteiramente domadas a pulsão, o desejo, as intensidades, mas por um certo período a moral serviu para tentar manter disciplinada a massa dos deserdados, enquanto a elite a transgredia na surdina. Aqui, no Brasil, esta situação tornou-se socialmente desmascarada com o slogan "levar vantagem" deste grande jogador de futebol que foi Gerson. Ele trouxe para os despossuídos uma palavra de ordem que minou a barreira da dupla moral, dando a oportunidade de, neste terreno, diminuir o desvantajoso desequilíbrio em relação à elite. Reparem que ainda não estou falando da classe média, a última a ser atingida pela dissolução da moralidade. Uso Gerson como exemplo paradigmático pois o que era oculto tornou-se aparente. O esqueleto exógeno moral começou a se desfazer de uma tal maneira que hoje praticamente tudo se tornou permitido desde que se tenha suficiente habilidade e recursos para contornar a lei.

Na época de Freud a sociedade apresentava uma face moral rígida com regras a serem cumpridas. Mesmo transgredidas por alguns, elas permaneciam como pilares consensualmente aceitos pela sociedade. A idéia prevalecente era de que a lei era para ser cumprida, e não contornada que é como hoje geralmente se pensa. A elaboração do superego freudiano fez-se dentro desta subjetividade. Freud nos disse que a resolução do complexo de Édipo se dava através da identificação do menino com o superego do pai, formando, num corte súbito e brutal seu próprio superego. A partir de então este superego servia de modelo para o ego, dirigindo rígida e implacavelmente a vida da pessoa. Freud desvalorizava o superego em formação permanente do feminino, valorizando a estabilidade e firmeza de caráter e de princípios do masculino. Citação: "Não posso fugir à noção (embora hesite em lhe dar expressão) de que, para as mulheres, o nível daquilo que é eticamente normal, é diferente dos homens. Seu superego nunca é tão inexorável, tão impessoal, tão independente de suas origens emocionais como exigimos que o seja nos homens. Os traços de caráter que críticos de todas as épocas erigiram contra as mulheres - que demonstram menor senso de justiça que os homens, que estão menos aptas a submeter-se às grandes exigências da vida, que são mais amiúde influenciadas em seus julgamentos por sentimentos de afeição e hostilidade - todos eles seriam amplamente explicados pela modificação na formação de seu superego que acima inferimos. Não devemos nos permitir ser desviados de tais conclusões pelas negações dos feministas, que estão ansiosos por nos forçar a encarar os dois sexos como completamente iguais em posição e valor"[1]. O superego feminino, como participante do feminino em geral era, naquela subjetividade, desvalorizado e reprimido. O superego freudiano, masculino, edípico, é um superego inexorável, inflexível, viril, guiando-se inabalavelmente por um consistente ideal de ego. É claro que manter uma tal retidão no cotidiano é extremamente problemático, mas este era o discurso e a meta ideal. Naturalizando-se a moral modelar facilita-se a indiferenciação moral-ética. A ética deixa de ser criativa e passa a ser a repetição - diferencial que seja - das regras morais adquiridas por identificação com os pais. Portanto ser ético é repetir regras, é ser moral. Ética e moralidade se confundem. Quando as transformações da sociedade exigem mudanças nos códigos morais, se a moral está confundida com a ética, a derrocada das regras morais arrasta consigo a ética.

É preciso pois encontrar, dentro da psicanálise, uma outra abordagem para a questão do superego, da moral e da ética, uma abordagem que acentue a distinção entre moral e ética. Nós podemos encontrá-la na concepção ética de Winnicott. No livro "O ambiente e os processo de maturação" existe um artigo de 1958 intitulado "Psicanálise do sentimento de culpa" onde Winnicott escreve: "Aqueles que sustentam o ponto de vista de que a moralidade precisa ser inculcada ensinam as crianças pequenas de acordo com essa idéia, e renunciam ao prazer de observar a moralidade [leia-se ética] se desenvolver naturalmente em seus filhos, que estão se desenvolvendo em um bom ambiente, proporcionado de um modo pessoal"[2](p.19). Para Winnicott a moralidade depende da capacidade de sentir culpa e de reparar o objeto cuja danificação provocou culpa. Para Freud a culpa surge na relação do superego com o ego. O superego (ou uma dependência sua - o ideal do ego) prescreve mandatos que o ego não consegue realizar, sendo então castigado pelo superego através do sentimento de culpa. Winnicott tem uma concepção mais positiva do superego em suas relações teóricas com o sentimento de culpa. Diz ele: "Um sentimento de culpa, portanto, implica que o ego está se reconciliando com o superego"[3](p.22). Freud fala de repressão maciça relacionada ao superego, estabelecendo-se então um ideal de ego calcado no modelo fornecido pelo superego dos pais. Chamaríamos a este superego de superego modelar e o distinguiríamos do superego winnicottiano que se forma gradativamente na relação com a mãe e que chamaríamos de superego experiencial.

Quando a perspectiva é moral, (seguir as regras morais da sociedade) ficamos amarrados em nossa criatividade, em nossa capacidade de encontrar soluções para situações limites. E a teoria freudiana do superego nos coloca justamente nessa perspectiva. A criança se identifica com o superego do pai e passa a reprimir o ego em função de um modelo. Lida-se então mal com situações vitais ambíguas que a todo momento encontramos. Situações ambíguas que na subjetividade clássica e moderna não eram postas em questão pois o padrão moral deveria prevalecer a qualquer custo. Hoje o padrão moral já pode ser questionado. Foi o que aconteceu no programa "Você decide" em que o espectador era colocado em dilemas ético/morais. Este programa seria inconcebível há duas décadas atrás, o que dá uma medida das transformações da subjetividade. Alguns exemplos de Marilena Chauí em seu livro "Convite à filosofia" apresentam dilemas semelhantes. Tomarei aqui dois deles "Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deverá recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo?” (p.334/5) Houve um tempo em que a subjetividade circulante exigia uma honestidade absoluta, uma honestidade modelar, condenando in limine qualquer desonestidade. Era o princípio moral, ferindo princípios éticos. É claro que, como já vimos, tratava-se na realidade de uma dupla moral, aquela desmascarada por Gerson. Outro exemplo da mesma autora: "Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido. Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos ou estará traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou deverá mentir para ambas?” (p.335) . Estas indagações só são possíveis se adotamos uma atitude ética e não moral. Estas indagações só se tornaram possíveis, como investigação ética, na subjetividade pós-moderna. A subjetividade clássica e mesmo a moderna exigiam a honestidade e fidelidade a qualquer preço (vide Jean Valjean e Javert de "Os Miseráveis" de Victor Hugo), embora, como todos nós sabemos, a intensidade afetiva freqüentemente atropelava a representação modelar.

Na perspectiva ética - insinuâncias que atravessam o psiquismo - estamos mais aptos a considerar as questões que se apresentam para tomar uma decisão, sem que esta decisão tenha de estar amarrada a um modelo. Como o superego winnicottiano forma-se gradativamente na relação com a mãe, ele apresenta uma flexibilidade capaz de ajustar-se às situações sem deixar de ser ético. A criança preserva a mãe apesar de seus desejos egoístas. A criança poderá atacar em um momento a mãe, mas no momento seguinte irá reparar o mal feito. Tem medo de perder a mãe ambiente atacando a mãe objeto. O precursor de seu princípio ético seria não destruir a mãe objeto pois assim estaria destruindo a mãe ambiente. É um princípio ético, digamos assim, egoísta, mas, sem dúvida, o precursor afetivo de um pensamento ético mais amplo e intelectualizado. Um pensamento ético amplo, raciocinado, mas que se apoia em afetos primitivos, em um devir existencial. Ele encontra uma conciliação entre os seus desejos/necessidades e os desejos/necessidades da mãe. Uma conciliação que, mais que conciliação, é vivência de uma unidade múltipla proporcionada pela identificação dual-porosa. Ao manter a capacidade e disponibilidade para a identificação dual-porosa a criança tornar-se-á um adulto capaz de estender a experiência primitiva de unidade múltipla ao mundo e ao cosmos. Diante de uma situação ele não terá de seguir uma conduta determinada, não terá de copiar um modelo. Ele não terá modelos, mas insinuâncias resultantes de suas experiências relacionais, mais especialmente na sua relação com a figuras materna.

Este superego que se forma desde o início na relação com a mãe nos aponta para uma flexibilidade capaz de separar ética de moral. O fato de não seguirmos os modelos de conduta impostos pelo social não nos torna não éticos na medida em que nossa conduta se baseará em princípios afetivo-intelectuais que têm como precursor o não destruir a mãe-ambiente, a empatia, a identificação dual-porosa, a unidade múltipla, a identificação cruzada.

Na moral freudiana, uma moral edípica triádica, mesmo considerando-se o fantasma originário da castração, o mandato vem de fora. O pai/sociedade dirá ao filho: "Você não poderá realizar o incesto com a sua mãe" cujo outro sentido é "Você terá de recalcar a atmosfera materna", ou ainda "Você tem de ser macho". Isto significa recalcar a sensibilidade, a capacidade de empatizar, de se identificar, o livre fluxo dos afetos, etc. Trata-se de um mandato externo, imposto ao filho pelos pais. E mandato externo lembra-nos o falso self.

Já a ética winnicottiana provém do interior, do medo que a criança tem de destruir a mãe boa ao destruir a mãe má, ou em termos mais winnicottianos, o medo de destruir a mãe ambiente ao destruir a mãe objeto. Não é o medo de ser castrado por um pai primeiramente externo (posteriormente internalizado), mas um medo que já desde o início surge de dentro da criança. Está aí em jogo o verdadeiro self de tal maneira que se as regras impostas do exterior tiverem de ser transgredidas, elas não afetarão o sentimento ético mais profundo de preservação da mãe, mais tarde estendido à humanidade. O menino edípico freudiano poderá se rebelar contra a imposição do pai relativa ao incesto, pois é algo que vem de fora. Se este algo que vem de fora é tudo o que existe, rebelar-se contra o superego modelar paterno-materno faz-se sobre a esteira de um imenso vazio. Já a criança no seu aspecto pré-edípico ou não-edípico winnicottiano não poderá se rebelar contra um princípio que ela própria criou que é o da preservação da mãe. Se mãe e bebê formam uma unidade, preservar a mãe é preservar a si mesma. Abandonar o princípio ético seria abandonar-se. Esta unidade mãe-bebê poderá ser, posteriormente estendida ao social e ao ambiente planetário. Portanto, o movimento primitivo espontâneo de preservação da mãe, de preservação da unidade relacional mãe-filho, pode estender-se à humanidade, ao planeta e ao cosmos. Esse sentimento primitivo, surgido na relação com a mãe, se preservado e desenvolvido desemboca numa consciência ecológica, não modelar, não um modelo a ser seguido, mas exemplar, isto é, uma experiência a ser vivida de cada vez dentro do sentimento holístico que se criou, se preservou e se desenvolveu. Cada situação será examinada de per se em referência a insinuâncias éticas e não em relação a modelos morais.

O modelo moral tende à inflexibilidade dificultando o embarque na velocidade das transformações que se operam na sociedade e na cultura. A alternativa é ou abandonar o modelo moral perdendo os pontos de referência - o mais freqüente -, ou referenciar-se à ética.

As insinuâncias éticas produzem uma flexibilidade capaz de lidar com situações ambíguas sem ter de lançar mão de modelos; a moral é relativizada e a ética preservada.

Nas vicissitudes da relação pré-edípica mãe-bebê predomina o desejo de preservação da díada; predomina, portanto, o amor.

Nas vicissitudes da repressão edípica a agressão e a raiva, têm um papel relevante. O recalque se consegue mediante a agressão do superego modelar contra o ego experiencial. A instalação do superego é súbita. O aspecto modelar do superego freudiano em contraste com a singularidade experiencial do indivíduo fica clara na seguinte citação: "...pode-se conceber a catástrofe do complexo de Édipo - o exílio (desterro) do incesto, a instituição da consciência moral e da moral mesma - como um triunfo da espécie sobre o indivíduo"[4] ("Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, p. 275). A subitaneidade da instalação (e também a agressividade) nos é revelada por uma outra citação de Freud: "O superego conservará o caráter do pai, e quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rapidamente se produziu a sua repressão (pela influência da autoridade, a doutrina religiosa, a educação, a leitura), tanto mais rigoroso será depois o império do superego como consciência moral, talvez também como sentimento inconsciente de culpa, sobre o ego"(Freud, "O ego e o id" p. 36).

Enquanto Freud fala da instalação rápida de um superego para que ele seja forte, cruel, implacável, Winniccot fala-nos da "evolução de um superego pessoal" (p.112 do livro "Os processos de maturação", artigo "A moral e a educação"), uma evolução conectada ao "funcionamento dos processos internos do indivíduo" (idem). Diz mais: "Na realidade, a educação moral não dá resultados a não ser que o menino tenha criado, seguindo um processo natural de desenvolvimento, em si mesmo aquele que, colocado no céu, chamamos Deus".(ibidem, p.113). Aquilo que chamamos de Deus nada mais é que a "projeção da bondade que é parte do menino e de sua experiência real de vida."(idem).

Winnicott fala de uma evolução do superego ligada à bondade, ao desejo de preservação da díada mãe-filho, ao amor, diferentemente de Freud que nos apresenta um superego cruel, implacável. "Agora o superego, a consciência moral eficaz dentro dele, pode tornar-se duro, cruel, inexorável para com o ego a quem tutela. Desse modo, o Imperativo Categórico de Kant é a herança direta do Complexo de Édipo”[5]("El problema econômico del masoquismo", v. XIX, p.173). O Imperativo Categórico implica em uma obrigação, um dever imediato, absoluto e incondicionado, excluindo portanto qualquer outro sentimento ou inclinação. Exclui, portanto o amor e a bondade.

Winnicott, em seu artigo "A moral e a educação" recorre à figura de Deus para falar de ética: "o bebê e a criança pequena costumam ser cuidados de uma maneira estável, digna de confiança, a qual vai nela crescendo até formar uma crença na estabilidade; nesta está contida a percepção infantil da mãe ou do pai, a avó ou a babá. A idéia de bondade e de um pai ou Deus pessoal e estável aparece de forma natural no menino que tenha começado a vida deste modo" (p.116, ibidem).

A ética winnicottiana se constrói desde o nascimento; ela não é uma súbita aquisição edípica. A ética está ligada ao amor e não à agressão (embora haja amor e agressão tanto na ética winnicottiana quanto na moral freudiana). A ética é singular, individual e não modelar, da espécie. A ética é flexível e não rígida. Estamos aqui falando de duas subjetividades, uma pertencente ao clássico e ao moderno e outra pertencendo ao moderno e pós-moderno. A moral rígida - o que significa o mesmo que dupla moralidade - serviu para o capitalismo manipular as massas pobres. Enquanto à elite econômica e social tudo era permitido, as classes média e pobre aceitavam as normas morais modelares rígidas, procurando se conformar a elas.

A teoria psicanalítica ligada a esta subjetividade é a do superego edípico. Estamos em outra época. As classes média e pobre, por inúmeras razões (condições sócio-econômicas, desequilíbrio nas identificações maternas e paternas, transformações da subjetividade, identificações midiáticas, etc.) não mais aceitam as regras morais. É preciso então batalhar por um superego capaz de se viabilizar nas condições sociais da atualidade e não divulgar vídeos sobre a implacabilidade/crueldade da luta pela sobrevivência no mundo selvagem. Esse superego flexível poderia ser o pré-edípico (ou não-edípico) da teoria winnicottiana, aquele que começa a vigorar a partir da interação intensiva da mãe com o infante.
                              Nahman Armony        

 

 

      



× Publicado nos “Cadernos de Psicanálise do CPRJ” n.11, 1997, ano 19. Editora Revinter, Rio de Janeiro.
[1] FREUD, S. (1925) “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” In : Edição Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol XIX, p.303. Imago: Rio de Janeiro, 1976.
[2] WINNICOTT, D.W. (1958) “Psicanálise do sentimento de culpa” In: “O ambiente e os processos de maturação”. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
[3] Ibid.
[4] FREUD, S. (1925) “Algunas consecuencias psíquicas de la diferencia anatómica entre los sexos” In: Obras Completas, vol. XIX, pag. 172/3. Amorrortu editores, Buenos Aires, 1989.
[5] FREUD, S.  (1924)- “El problema económico del masoquismo”. Obras Completas, vol. XIX, pag. 172/3. Amorrortu editores, Buenos Aires, 1989.

QUEM PROCURA QUEM?

      
A questão de quem costuma procurar quem, aparece freqüentemente na relação entre namorados -- e, na maior parte das vezes, esconde uma disputa de poder. Se eu procuro, então preciso dela (ou dele) e, assim sendo, ficarei em posição de inferioridade para discutir o estilo de vida e os valores do casal e terei de ceder mais que o outro.
Todos desejamos ter poder, pois isso nos dá uma sensação de segurança, de sermos intocáveis e podermos impor nosso modo de vida. Estar em uma posição superior, seja materialmente, seja psicologicamente, dá poder. E nas relações amorosas o poder muitas vezes se manifesta em questões como “quem precisa mais de quem”, “quem procura quem”. Os namorados seguram o impulso de procurar o parceiro não só pelo medo de rejeição, mas por medo de ficar “por baixo” e ter de ceder aos desejos do outro. “Ele tem de telefonar primeiro”, “não vou procurá-lo”, fazem parte desta síndrome. Muitas vezes uma relação promissora não vai adiante em função desse comportamento -- que pode ser chamado de orgulho.
Numa relação saudável os parceiros deveriam sentir-se como iguais e, em lugar de impor a sua vontade, negociar as diferenças, sabendo que cada um terá de ceder um pouco, como em toda negociação. Na relação de poder, sempre haverá um dominador e um submetido, mesmo que o casal não perceba a situação. A pessoa dominada sentir-se-á desvalorizada e sofrerá com isso, podendo vir a adoecer psíquica e fisicamente o que recairá sobre o dominador, que terá um problema em suas mãos. Ou então o submetido, ressentido com a situação, vingar-se-á de seu opressor de muitos modos sutis, podendo tornar a vida do casal muito desagradável.
Como já foi dito, todos desejamos ter poder. Por vários motivos. Um deles – e esse interessa particularmente à situação de casal – tem a ver com a tendência a sermos influenciados. A afirmação dos valores próprios é uma maneira de manter a identidade. Mas não basta. Sendo o ser humano sujeito a influências, poderá não conseguir defender o seu modo de ser e de viver adotando apenas uma atitude de suficiência. A imposição de nossos valores a outros tem a ver (embora não só) com um velho ditado: “A melhor defesa é o ataque”. Convencendo o outro e trazendo-o para o nosso campo, somos nós quem o influenciamos e estamos, assim, a salvo de sua influência. Se não formos proativos, corremos risco maior de sermos sugestionados. No casal, a questão mais séria e assustadora é o medo de perder a personalidade. Ao trabalhar sobre este medo, diminuindo-o ou neutralizando-o, evitam-se certas situações de disputa. A questão de quem procura quem, então, deixa de ser um termômetro de poder e passa a ser um sinal de interesse. Se eu o procuro é porque o amo e espero que ele retribua meu amor procurando-me sempre que sentir falta de mim. Estamos aí no registro da troca, da mutualidade, do amor, da confiança mútua, e não no registro do orgulho, da teimosia, da competição, da luta por um poder duvidoso.
Pela mesma razão, isto é, para não se enfraquecer diante do companheiro, aspectos de nossa personalidade ou de nossa vida que poderiam desvalorizar-nos são escondidos. O pretexto para tal atitude é o direito à privacidade. Não há dúvida de que temos direito à privacidade, mas é preciso entendê-la bem. Quando ela está a serviço da manutenção da superioridade psicológica e do poder psicológico pode levar a uma relação afetiva problemática. Pergunte-se: “Por que estou escondendo tal coisa dele ou dela?” Se a resposta for: “Porque quero me manter poderoso”, algum trabalho psíquico deverá ser realizado.
 
              Nahman Armony
Primeira publicação na revista CARAS.

POEMA DA INTEGRAÇÃO (do livro "O Anverso e o Verso")

Há uma longa distância percorrida
Entre o Tudo e o Nada
Onde Tudo se esvazia e se transforma em Nada
E o Nada se completa e se transforma em Tudo.

Esta distância
Ene vezes percorrida
Acaba por confundir o Tudo e o Nada
Que se transcendem em Construções Conceituais
E em Sonhos Candentes.

--- Aí encontra-se o segredo ---

Primeiro é preciso viver o sonho
Depois, sabe-lo sonho
E vive-lo ainda assim.

Mas é preciso também
Saber o oposto do sonho
Viver o oposto do sonho.

E reunindo sonho e não-sonho
Em um instante de vida
Ter aquele Momento Único
Que será singular
Tantas vezes quantas acontecer.

            Nahman Armony                            

A INTEGRAÇÃO DA PESSOA: SAÚDE NA HIPER-MODERNIDADE

                                                                  (capítulo de meu livro "O Homem Transicional")
   Aparentemente o futuro, em relação à saúde e ao corpo se apresenta brilhante. Pelo andar da carruagem teremos cada vez mais recursos para tratar de nossa saúde física e mental. As psicoterapias se aperfeiçoam adequando-se à subjetividade em curso, as pesquisas farmacológicas são intensas e antigas doenças são alcançadas por novos medicamentos, as células-tronco pluripotenciais trazem esperança e alento para muitos que sofrem de doenças degenerativas), os transplantes são cada vez mais seguros, a confecção de órgãos artificiais para substituição dos danificados está em pleno andamento, as doenças mentais ganham novos medicamentos, a neurociência promete exoesqueletos para paralíticos poderem se movimentar, a qualidade de vida melhora, a longevidade aumenta. Tudo azul no horizonte não fossem a luta pelo lucro que desconsidera o ser humano, e aquilo que será objeto de minha palestra: a dissociação corpo/mente.

         A dissociação corpo-mente foi se impondo à civilização ocidental, tendo Platão e posteriormente Descartes como seus grandes marcos. Desde então ela nos acompanha Só ultimamente vem-se desfazendo permitindo caminhar da dissociação para a integração holística.

         A dissociação, como Nietzsche mostrou, nos afasta da vida o que provoca transtornos tanto para o corpo quanto para a mente, corpo e mente que de acordo com Spinoza são dois aspectos de uma mesma substância, de uma mesma realidade. O homem, com sua atividade intelectual, referendou a dissociação corpo-mente.  O corpo dissociado da mente é levado a perturbadores excessos ou insuficiências assim como a mente dissociada do corpo ganha uma exagerada ou deficiente dimensão. Ambos participam no aparecimento dos distúrbios psicossomáticos. Na atualidade percebe-se uma maior freqüência destes distúrbios considerados característicos da época atual, embora tenham existido em épocas passadas, talvez em menor grau, talvez com menos reconhecimento ou menor grau de importância. Ao estudar estes distúrbios Winnicott traz uma contribuição original pouco citada, mas que considero de extrema importância não só para a Clínica como também para a filosofia, epistemologia e antropologia. 

         Vejamos o que Winnicott propõe: o corpo biológico vem em primeiro lugar. Este corpo está sujeito tanto a estímulos internos (dor de barriga, fome, sede, processos de estabilização de funções, etc.) quanto externos (sons, cheiros, cores, etc.) Ambos provocam sensações no corpo. Essas sensações sofrem, na concepção de Winnicott, uma “elaboração imaginativa” O psiquismo advém desta elaboração ( a dor de barriga pode ser sentida como uma cor, ou como uma ameaça, etc). Corpo e psique ficam intimamente ligados o que eu represento pela agregação corpopsique. A elaboração imaginativa é um destino a ser cumprido. Mas este magno acontecimento, como tudo o que acontece com o bebê depende de uma maternagem suficientemente boa, mais especialmente de uma mãe que dê importância a um bom handling e holding, a um acolhimento ao mesmo tempo físico e psicológico, a um segurar com amor e a um cuidar das necessidades do bebê (dar banho, trocar fralda) respeitando a sua sensibilidade.

         O corpopsique compõe-se de sensações, sentimentos e emoções e de uma inteligência emocional. Existe, pois um pensamento psicocorporal. Esta inteligência emocional conecta-se diretamente à realidade, sem mediações. Podemos dizer que ela raciocina intuitivamente, tendo por base as emoções e sentimentos apreciando alternativas, fazendo escolhas, entendendo afetivamente os acontecimentos. Trata-se de uma inteligência espontânea e imediata, diretamente ligada à percepção e ação, ao que está ocorrendo. Uma inteligência em devir. Mesmo a palavra é uma palavra psicocorporal diferente da palavra mental que pára o fluxo dos acontecimentos criando um distanciamento propiciador de um pensamento mais consciente e abstrato.  

         A mente é uma instância diferente do corpopsique. Ela é intelectual, racional, reflexiva. Na saúde está integrada ao corpopsique MODERANDO E MEDIANDO a relação da psique com o corpo e do psiquecorpo com a realidade. Ex.: o músico de orquestra absorvido pela melodia que está tocando, mergulhado nas ondas sonoras, de tempos em tempos olha o maestro para se orientar acrescentando, de forma integrada, um elemento mental ao devir psíquico. O maestro, embora possuído pela música é ao mesmo tempo o principal cuidador da orquestra, é  a sensibilidade e a mente da orquestra. Mas uma mente integrada ao devir da música, uma música que ele, maestro, sente em seus ossos e vísceras.  Se o maestro tivesse uma mente dissociada do corpopsique, se ele não dançasse a musica que rege, enfrentaria uma situação semelhante a apresentada no filme de Felini “Ensaio de Orquestra”. Uma mente dissociada do corpopsique provoca distúrbios psicossomáticos, com sintomas psicológicos e físicos em proporções variáveis.

         A mente media e modula as relações entre a subjetividade e objetividade, integrando-as. Segundo Winnicott é o encontro do subjetivamente concebido com o objetivamente percebido que nos dá a realidade do mundo. Seu exemplo paradigmático é o de um recém-nascido com fome que alucina um seio e este seio é colocado pela mãe no lócus da fome. Para o bebê foi ele quem criou um seio que já existia. É claro que o bebê não sabe da existência objetiva do seio, mas, poderá já adulto admitir, após passar por um período de objetificação total, que os objetos são ao mesmo tempo subjetivos e objetivos. A lua, por exemplo, é um objeto objetivo, mas será vivida subjetivamente quando um casal de namorados, em êxtase, estiver-na contemplando. A mente lhes diz que se trata de um objeto objetivo que está sendo vivido subjetivamente. Sem a mente a lua perde sua objetividade permanecendo no sensorial e na emoção. A racionalidade mental exerce a importante função de consenso social, mas será danosa se por um excesso de desenvolvimento, fizer desaparecer a subjetividade retirando a poesia, a intuição, o encantamento do mundo. Podemos ver isto claramente no excerto do romance “Homo Faber” de Max Frish: “Sou técnico e estou acostumado a ver as coisas como elas são. Vejo muito bem tudo o que descrevem. Vejo a lua sobre o deserto de Tamaupilas, mais nítida do que nunca, talvez, mas continuando a ser uma massa calculável, a girar ao redor do nosso planeta, um fenômeno da gravitação, certamente interessante. Mas por que me causaria uma experiência sensacional? Vejo os rochedos pontiagudos ao clarão da lua, e pode ser que se pareça com os dorsos bizarros de animais pré-históricos, mas sei que são rochas, pedras, provavelmente vulcânicas, o que seria necessário pesquisar e constatar. Por que me assustaria? Já não existem animais pré-históricos. Para que deveria imaginá-los? Tampouco vejo anjos petrificados nem demônios. Vejo o que vejo: as costumeiras formas da erosão, além da minha sombra comprida, projetada sobre a areia, porém nada de fantasmas. Por que me deveria acovardar que nem uma mulher? Montanhas são montanhas, mesmo que, sob certa iluminação, assumam qualquer outra aparência. Um avião é para mim um avião, e não imagino ver nele nenhuma ave de uma espécie extinta. Por que experimentaria eu o que não existe?” (pgs. 31/33). É evidente aqui a dicotomia mente-corpo/afeto e a perda do encantamento do mundo.

         O surgimento da mente é explicado por Winnicott da seguinte maneira: no período inicial da vida de um bebê a mãe atende imediatamente a todas as suas necessidades (exagero teórico). Mais adiante a mãe deixa de responder com a mesma presteza e em outras ocasiões se afasta do bebê para cuidar da própria vida. Quebra-se a continuidade de ser do bebê, pois de repente lhe falta a mãe que é fiadora desta continuidade. Então o bebê usa de vários recursos para preencher este “gap”, esta fissura. Um deles é o surgimento da mente que tenta entender o que está acontecendo, o motivo da descontinuidade, ficando atento ao ambiente, interpretando a movimentação visual e sonora que precede a aproximação da mãe ou a feitura da mamadeira. Isto mantém a continuidade da relação e de ser do bebê. Se a mãe se demora em demasia a mente se desenvolve excessivamente tentando dar conta da ansiedade provocada pela prolongada quebra de continuidade.

         Temos assim três instâncias: o corpo, a psique e a mente. Quando integradas temos a saúde. Quando mente e corpo se dissociam aparecem as doenças psicossomáticas, pois, na dissociação, a mente procura atrair a psique para si, e o corpo ao tentar recuperá-la o faz sob a forma de sintomas psicossomáticos.

         Winnicott apresenta uma situação exemplar: nas sessões analíticas uma pessoa de mente e corpo dissociados, fala intelectualmente de seus sentimentos e emoções, ao invés de vivê-los na sessão. Ela não confia em cuidadores e usa sua mente como cuidador de seu psiquesoma. Ela não vive os seus sentimentos. Fala deles como se estivesse falando de uma 3ª pessoa. Ao abordar intelectualmente seus sentimentos coloca a psique na esfera do racional, isto é, aproxima-a da mente e afasta-a do soma. “O resultado é uma mente-psique patológica”. O soma tenta recuperar a psique o que provoca sintomas somáticos. Ex. da Sra. X: relação extraconjugal do marido. A mente dava-lhe boas razões justificando o comportamento do cônjuge, o ciúme sentido por ela era intelectualizado (absorvido pela mente), o corpo não sentia a emoção do ciúme (“eu sei que tenho ciúme, mas não sinto”). O corpo ao tentar recuperar a psique fazia com que a Sra. tivesse vômitos e dor de cabeça.

 

CONCEPÇÕES HISTÓRICAMENTE DATADAS SOBRE CORPO, PSIQUE    E MENTE

        

         A mente não aparece nas transcrições da fala rimada (ou poesia) do aedo Homero do século VIII a.C. A concepção sobre esta questão era: um corpo animado por um sopro vital (pneuma) adquiria vida. A morte ocorria com o desaparecimento do sopro vital. O corpo não sendo mais vivificado pelo pneuma tornava-se uma sombra, um eidelon, uma espécie de robô incapaz de sentir/pensar, isto é, de pensamento intuitivo que era o único então em evidência. Não se falava do destino da alma (da mente), pois este conceito ainda não estava formado. Havia um corpo que enquanto vivo sentia e reagia ao ambiente com uma inteligência emocional, uma psique inteligente, um pensamento da sensibilidade (vide Dustin Hoffman no filme “Herói por acidente” quando percebe na corporalidade da advogada suas hesitações). Tendo perdido seu sopro vital, seu pneuma, o corpo passava a habitar o Hades, local para onde iam todas as almas quaisquer que tivessem sido em vida suas virtudes e seus pecados. Só excepcionalmente, mediante rituais poderosos, um eidolon voltava a ser capaz de, por momentos, recuperar sua inteligência emocional. Se olharmos sob a ótica de Winnicott não existia então a mente, somente o corpopsique. Não se fala, pois, de uma inteligência racional, mas de uma inteligência emocional.   

         Com a escola jônica de filosofia a mente entra em cena. Seus filósofos tentam encontrar a substância ou as substâncias primordiais das quais se derivariam todas as outras por transformações. Temos aqui um raciocínio abstrato e, portanto na perspectiva winnicottiana já estaríamos na área da racionalidade mental que se acrescentaria à racionalidade emocional. Esta mente está integrada ao corpopsique.

         A dicotomia e a dissociação aparecem em Platão que separa corpo e alma colocando-as como duas substâncias diferentes.  O corpo pertence ao mundo sensível e a alma, que é uma alma racional, pertence ao mundo inteligível. Para Platão o mundo sensível é um mundo instável, um mundo de opiniões e não de verdades. E Platão deseja um mundo estável onde verdades absolutas possam ser estabelecidas. O corpo inconstante e mutável é desvalorizado. Em termos de Winnicott o psiquesoma é forçado a se separar da mente dando ensejo ao aparecimento de patologias.

         Esta desvalorização se acentua com Descartes que também separa corpo e mente e vê o corpo funcionando como um relógio mecânico, uma máquina independente precariamente ligada à mente pela glândula pineal.

         Esta dicotomia é concomitante à retomada da observação da natureza já agora por um viés matemático que tornaram as observações precisas. Estamos no paradigma da cientificidade dicotômica extremamente útil para o desenvolvimento do pensamento racional, da lógica clássica utilizada pela física newtoniana com enormes ganhos no que diz respeito ao conhecimento e utilização da natureza. Descartes com a sua filosofia antecedeu Newton, dividindo o homem em res extensa e res cogitans onde a res extensa --- e o corpo faz parte da res extensa --- funcionando mecanicamente pode ser estudada com precisão usando-se a matemática e a lógica de causa e efeito. Separada do contexto geral da vida a física ganhou status de onipotência e onisciência tornando-se modelo para todas as atividades humanas, arrebatando da religião a aura de sacralidade intocável. O homem arrogantemente acreditava poder domar e dominar a natureza. Certamente formavam-se detritos, restos indesejáveis, mas por muito tempo o progresso que a ciência trouxe ultrapassava os malefícios causados ao ambiente e ao homem. Estes detritos foram, porém se acumulando até que se percebeu que a exploração ilimitada da natureza no seu sentido mais amplo (física, social, humana) acabaria por destruir a espécie humana.  Esta se tornou uma preocupação para muitos: Bauman, Lipovetsky e pensadores em geral. Criou-se o “Novo Clube de Paris” formado por pessoas das mais diversas atividades – matemáticos, ministros, presidentes de Bancos, etc. – preocupados com os rumos tomados pela sociedade acreditando que estamos chegando a um limite muito perigoso. Seria preciso que aparecesse outro paradigma que se difundisse pelo corpo social, alterando as relações com o ambiente, com o homem e a sociedade. Seria preciso ultrapassar o paradigma dicotômico.

         Um subproduto do paradigma dicotômico se consolidou na época vitoriana, com o dever, a disciplina e a repressão dominando as relações humanas. Embora eu não ignore os trabalhos de Foucault que acentua a importância da proliferação dos discursos e da implantação da disciplina, falando inclusive de poder disciplinar, manterei meu foco em aspecto mais restrito: a repressão. Considerarei então a existência de um paradigma da repressão e vou colocá-lo como tese de uma dialética cuja antítese é o paradigma da permissividade. Estas tese e antítese estão pedindo uma síntese que está em processo de elaboração. Os conceitos de Winnicott podem contribuir para a elaboração desta síntese que já está em curso e que por sua vez está se transformando em nova tese inaugurando um novo ciclo. Neste ponto trarei uma contribuição que apresentarei no fim de minha fala, buscando inspiração em Nietzsche e Deleuze.     

         O estudo dos paradigmas é importante, pois eles são parte daquilo que chamamos de “espírito do tempo” tendo influência sobre cada ser humano da sociedade à qual pertence. As pessoas de nossa época, das quais falaremos mais adiante, estão penetradas pelos paradigmas em curso e pelos avatares dele. A concepção de corpo, doença e saúde é diferente em cada paradigma.

 

PARADIGMA REPRESSIVO

         Já vimos que na época homérica ainda não estava consolidada a idéia de alma e que nas primeiras tentativas de explicar o mundo intelectualmente havia uma integração da mente com o psiquecorpo. Com Platão a alma racional (a mente) ganha supremacia sobre o psiquecorpo criando-se uma dicotomia. A partir daí o espaço ocupado pela mente cresce até que com o surgimento da ciência moderna e posteriormente, com a subjetividade vitoriana ela se torna soberana relegando o corpopsique, o sensível, para um segundo plano. Isto fica muito claro com o tratamento dado pela ciência à palavra que é um tratamento repressivo.  

         REPRESSÃO DA PALAVRA - Até a época cientificista a palavra tinha uma imprecisão que permitia usá-la poeticamente, paradoxalmente, metaforicamente. A palavra estava integrada no conjunto corpopsiquemente. Havia então uma liberdade no seu uso e ela podia ser ouvida em sua polissemia permitindo ao ouvinte dar uma interpretação singular acorde à sua subjetividade. A denotação era uma parte mínima da palavra, cercada que estava por todos os lados pela conotação, permitindo seu amplo uso, uma grande liberdade de interpretação. Com a ciência aboliu-se a conotação. A palavra tinha de ser precisa e designar exata e conceitualmente o objeto, não permitindo nenhum devaneio. A palavra passou a ser um produto da mente dissociada do corpopsique. Acabava-se com a poesia e a diversidade da fala. Passou a haver a preocupação de se dizer a palavra precisa, exata, o que tirava a espontaneidade do discurso tornando-o esquemático e desinteressante. A palavra perdeu o seu encanto, sua liberdade, seu potencial poético. Todos deveriam entender as coisas exatamente da mesma maneira. Isto é que era ser científico. A riqueza da diversidade humana se perdia. Aquilo que na física clássica era útil, necessário, eficiente, tornou-se uma camisa de força para a manifestação da complexidade, diversidade e sutileza da alma humana. Eliminava-se parte do mundo, simplificando-o através da ciência. Tudo poderia ser explicado por cálculo. Mas para isso a palavra tinha de ser rigorosamente exata, rigorosamente intelectual, rigorosamente mental reprimindo-se o psiquecorpo e conseqüentemente as conotações das palavras. E a poesia perdida nos faz falta. Ela está ligada ao encantamento do mundo, ao afeto, ao sentimento oceânico, à criatividade, condições necessárias para um viver integrado e saudável, onde corpopsique e mente formam uma unidade.

REPRESSÃO DOS ASPECTOS FEMININOS DO SER HUMANO-  Numa sociedade machista, patriarcal, a mente é valorizada em detrimento do corpopsique. A objetividade, o intelecto, o poder, a riqueza material ficam em um patamar muito superior à sensibilidade, empatia, compaixão, amor. O corpopsique é ignorado, negado, colocado em segundo plano. As características femininas são vistas como fraquezas, necessárias sim, mas que devem ficar confinadas ao lar. E mesmo aí elas são desvalorizadas, servindo para realçar a força da racionalidade (isenta de sentimentos) do homem. Há uma clara dicotomia. Homem é homem, mulher é mulher. À mulher, de constituição inferior, se permitem fraquezas que vêm de seu sentimentalismo, de seu exercício da empatia, identificação, compaixão, espírito de conciliação. Já o homem não pode ter fraquezas. Tem de ser duro, não se deixar atrapalhar pelos sentimentos para poder enxergar a realidade crua, a realidade egoísta que então lhe permite oprimir, castigar, dominar os seus oponentes garantindo o sustento e quiçá o luxo de sua família. Os sentimentos reprimidos, no entanto reapareciam na forma de sintomas neuróticos, enquanto que nas mulheres a sua desvalorização e o seu confinamento provocavam distúrbios dos quais o mais freqüente era a histeria. O rapaz para poder sobreviver nesta sociedade rígida tinha de recalcar todas as suas potencialidades só permitindo o afloramento de uma delas. Com isso sua vida tinha um caráter retilíneo com um único objetivo em vista que para ser alcançado deveria sacrificar as suas outras potencialidades. Os desejos múltiplos infantis tinham de ser duramente reprimidos para que um único objetivo prevalecesse. Desta forma seu ego tornava-se inteiriço, unitário, determinado, não se desviando do caminho traçado. A dupla moral vitoriana permitia-lhe manter a unidade do ego, pois lhe dava a oportunidade de evadir-se em noitadas clandestinas que eram dissociadas da vida correta e civilizada o que em parte aliviava seu mal-estar. Assim como o ego tinha contornos nitidamente delimitados também os quadros neuróticos o tinham recebendo nomes específicos de acordo com seus sintomas e psicopatologia: neurose obsessiva, neurose fóbica, neurose de ansiedade, neurose conversiva (histeria). O corpo manifestamente sofria com a ansiedade e com a conversão. Aparentemente não havia sofrimento corporal quando certas condições se cumpriam na neurose obsessiva e fóbica.

CONSUMO: O primitivo capitalismo de acumulação estimulava a poupança o que significa que não estimulava o consumo. A mente moderava o desejo de consumo. Uma abstinência moderada e, portanto um consumo moderado pode advir de uma boa integração corpopsiquemente.  Contrasta com o paradigma seguinte, o da permissividade, em que predomina o consumo imoderado, um consumo em que o corpopsique está solto sem a modulação da mente.

REPRESSÃO DOS MÚLTIPLOS DESEJOS E PEQUENOS EUS- As muitas potencialidades do ser humano são reprimidas em prol de uma vida retilínea com um modelo único pré-determinado. Também aqui a mente domina o psiquecorpo direcionando o sujeito para uma só profissão, para um único amor, para uma única forma de vida: trabalho, família e diversão convencional. Quando não há repressão encontramos pessoas que não têm um direcionamento e que se deixam levar pelos seus múltiplos desejos/eus, isto é, pelo seu corpopsique. Querem ao mesmo tempo vários tipos de vida, vários tipos de atividade, fazem experiências até que a mente intervém como moduladora e não como ditadora permitindo que encontrem o seu modo de viver e amar singulares. 

REPRESSÃO DA ESPONTANEIDADE E CRIATIVIDADE: tendo de seguir modelos de comportamento e funcionamento a espontaneidade e a criatividade ficam prejudicadas.

DICOTOMIZAÇÃO DA UNIDADE CORPO-MENTE: No paradigma repressivo predominam as relações dominador-dominado. Na divisão corpo-espírito quem manda é a mente e o corpo obedece. Isto se repete no relacionamento professor/aluno, marido/esposa, médico/paciente, patrão/empregado, pai/filho, etc. A mente que deveria estar integrada ao corpo, exercendo seu papel de mediadora entre o corpo/afeto e realidade, e entre o corpo e o psíquico deixa de ter esta função e passa a exercer uma tirania sobre o corpo/afeto. Ela obriga o corpoafeto a ultrapassar limites até a exaustão, não dando importância aos sinais de desequilíbrio enviados pelo soma. Assim como a mente tiraniza o corpo, desconsiderando-o, as pessoas se tornam dominadoras desconsiderando os sentimentos e a humanidade da outra. Na luta pelo poder só a mente funciona; o psíquico (as emoções e sentimentos corporais) desaparece para que a impiedade, a crueldade, a implacabilidade possam funcionar livre de freios.

RELAÇÃO CUIDADOR-SERCUIDADO – a rígida hierarquia própria do paradigma cartesiano impede a colaboração do paciente na condução de sua trajetória curativa. O cuidador não ouve as informações daquele que está sendo cuidado e, autoritariamente, dita normas a serem seguidas. A não participação do que está sendo cuidado dificulta a conduta terapêutica, pois o estado de submissão, diante de uma instância autoritária, inferioriza, inibe e dificulta ou impede a indispensável informação e colaboração do dominado. 

RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE -- O médico possuído pelo paradigma dicotômico tratará o órgão doente sem se importar com a pessoa que porta este órgão. Com isto ele estará dando uma assistência incompleta, pois não levará em consideração a unidade psique/corpo nem a importância da mente que participa desta unidade. Mesmo as pessoa em coma se beneficiam de um contato afetivo.  

RELAÇÃO MÃE-FILHO – do complexo conjunto da relação mãe-filho focalizarei, no momento, a dicotomia corpo/psique - mente.

Uma mãe que favoreça o desenvolvimento da mente do bebê e da criança em detrimento do corpo/afeto facilitará o aparecimento de um adulto intelectualizado que dará pouca ou nenhuma importância à rica e variada vida de sentimentos. São pessoas frias, sem sensibilidade para a vida subjetiva, capazes de impiedade. Têm uma mente matemática, apta a exercer maquinações implacáveis, infensa a sentimentos de simpatia e compaixão. São capazes de tramar intelectualmente sua ascensão pessoal e profissional sem a menor consideração pelos outros que só lhes servem como degraus de uma escada a ser percorrida até o topo. Teremos um ser humano perfeitamente adaptado à feroz luta competitiva do capitalismo. Esta luta feroz é artisticamente alegorizada por Costa-Gavras em seu filme “O corte” (“Le couperet”) lançado em 2005 onde o protagonista, um homem perfeitamente “normal” segundo os critérios sociais, grande especialista em sua área, mata 3 ou 4 outros especialistas da mesma área para não ter concorrentes na busca de emprego.

         Para que haja uma integração corpopsiquemente é preciso firmeza na sustentação (holding), cuidado psíquico e corporal. O toque amoroso é fundamental para a vida. Temos um exemplo disto em espécies diferentes da nossa como nos mamíferos que lambem suas crias recém-nascidas para que se estabeleçam as funções corporais fisiológicas e sociais. Uma experiência de 1997 do neurocientista Michael J.Meaney e colegas da Universidade McGill demonstra a importância do toque: “... compararam a resposta ao estresse em ratos cuja mãe os lambeu com vigor e cuidou bastante deles durante os primeiros dez dias de vida com roedores cuja mãe raramente os lambia quando eram recém-nascidos. Meaney e seus colegas descobriram que a prole das fêmeas mais carinhosas e cuidadosas apresentava menos ansiedade e estresse que os outros animais quando eram confinados em um pequeno tubo de plástico durante 20 minutos – os níveis do hormônio de estresse dos ratos, a corticosterona, subiam bem menos e permaneciam elevado por pouco tempo.” (Fonte: Revista MENTE E CÉREBRO, ano XVII n. 207 – abril 2010)

         Uma mãe consciente ou inconscientemente preconceituosa, reprimida e repressiva, ao tocar a zona genital o faz com dificuldade, com reserva, com desgosto, com aflição, às vezes com nojo, transmitindo ao bebê o sentimento de que aquela parte é diferente das outras do corpo levando à dissociação da zona genital que é como se não existisse ou existisse de uma maneira autônoma ou como se fosse uma parte demoníaca.

         Quando a mãe está ausente por um tempo demasiado, (o que pode acontecer mesmo estando fisicamente presente) a mente do bebê, tentando entender o que está acontecendo, sofre um desenvolvimento exagerado dissociando-se do corpo.

Uma mãe que saiba dar carinho e estímulo, mas que não cuide do corpo do bebê estará passando a mensagem de que o corpo não é importante. A criança ao se tornar adulto tenderá a negligenciá-lo recusando-se, por exemplo, a fazer check-up, a ir ao médico para prevenção e tratamento. Também ignorará os sinais que o corpo envia quando começa a adoecer ou quando começa a ultrapassar sua capacidade de trabalho. A má alimentação é também uma negligência com o corpo assim como a obesidade. Evidentemente não só a negligência entra em pauta; há outros fatores dinâmicos influenciando os transtornos corporais.       

         A mãe que cuida só do corpo de seu bebê (dando-lhe comida na hora certa, mantendo-a limpa e seca, seguindo os preceitos higiênicos) estará prejudicando-a se não a tratar com carinho, se não perceber e/ou não responder às suas demandas afetivas, se não se identificar com ela para atender às suas necessidades que são ao mesmo tempo físicas e psicológicas. Ela a deixará em estado de carência afetiva que repercutirá em sua vida futura.

         Uma mãe que tenha um corpo/psique/mente integrados criará condições favoráveis para o desenvolvimento saudável de seu filho, mesmo pertencendo a um grupo social dicotômico e dissociativo que, no entanto, não deixa de exercer alguma influência em ambos.    

 

PARADIGMA DA PERMISSIVIDADE

         Neste paradigma o corpo/psique predomina sobre a mente. Com isto o corpo recebe uma atenção especial seja para a saúde seja para a beleza podendo ficar nos limites do saudável e do belo ou ultrapassá-los criando maiores ou menores problemas. Por outro lado o corpopsique assume uma liberdade sem limites. Cada um faz o que manda o seu desejo. É proibido proibir. O corpopsique tem a mais absoluta liberdade de se manifestar. A mente, que no paradigma repressivo inibia o comportamento com violência, se ausenta no paradigma permissivo deixando de exercer a sua função mediadora e moderadora em relação à realidade social e em relação à integração psique/corpo. Diría mesmo que o ego não tem estrutura para conciliar a realidade com os impulsos, não tendo condições de indicar caminhos viáveis de realização do self. Poderemos entender isto melhor se formos à origem quando as coisas se apresentam de uma forma mais simples: o bebê é puro impulso: impulso instintivo de satisfação de necessidades (fome, sede, carinho, etc.) e impulso narcísico do self (eu) de auto-conservação, auto-realização, expansão. É a mãe quem complementa a mente do bebê protegendo o self da realidade externa (cuidando, por exemplo, de que não haja um excesso de estímulos) e dos impulsos internos (evitando, por exemplo, que a curiosidade exploratória --- desejo de expansão ---- faça-o cair de uma grande altura, ou que tome um choque elétrico, ou que se perca na rua). Tendo uma mãe suficientemente boa o bebê assimila e adquire uma mente e um ego pessoais tornando-se capaz de adequar o self à realidade. Uma mãe suficientemente boa e um ego suficientemente bom darão limites, liberdade e permissão para uma transgressão centrípeta (está sempre chamado para um comportamento ético). Caso contrário o self se alargará excessivamente e a pessoa sentir-se-á com direito de realizar todos seus desejos e vontades. Então: se a mãe não consegue colocar limites para a criança, se não consegue saudavelmente frustrá-la, submetendo-se aos seus desejos e permitindo-lhe um comportamento transgressivo anti-social centrífugo estará estimulando um narcisismo exagerado. A criança que cresceu dentro desse clima sente-se no direito de ter tudo para si. Os outros só existem para servi-lo em suas necessidades materiais e psíquicas. Qualquer limite que lhe é anteposto é sentido como um crime de lesa-majestade já que ele continua se sentindo como “Sua Majestade o Bebê” que por direito divino terá a aprovação e a submissão de todos que terão o sagrado dever e privilégio  de servi-lo. Também o corpo é vivido como não tendo limites. A morte e a doença não existem e a pessoa ficará desatenta, não levando em consideração os pequenos sinais de que algo não vai bem com o seu corpo, só tomando providencias quando a situação evoluiu de uma tal maneira que a reversão torna-se mais problemática.

Na medida em que a mente deixa de exercer o seu papel regulador, os exageros em relação ao corpo, à alimentação, à beleza, acabam por afetar negativamente a saúde psicofísica. Excesso de exercício, excesso de emagrecimento, excessos gastronômicos, dietas exóticas inadequadas, bombas, vigorexia, anorexia, uso abusivo de psicofármacos, conduta social inadequada.  Quando a mente, no paradigma em formação (que em outro artigo chamei de paradigma ecológico)  é reincorporada ao psiquesoma o cuidado com o corpo, com a beleza, com a alimentação permitem que a pessoa se torne mais saudável, prevenindo doenças, melhorando a qualidade de vida, a longevidade, as relações pessoais, familiares e sociais.

A recuperação da espontaneidade é um dos aspectos positivos do paradigma da permissividade; mas se usada sem freios fará perder a sensibilidade para o outro e para as situações. A experiência do holding no paradigma em formação (ecológico) facilitará uma espontaneidade saudável, aquela que não invade o outro nem dele abusa. O mesmo acontece com a criatividade. Ela depende de um clima permissivo que, se exagerado, propiciará excessos no sentido de um predomínio autístico da subjetividade com produções e fantasias sem sentido social; se centripetamente usada (e aqui já estamos no paradigma em formação) será de enorme utilidade para o desenvolvimento do pensamento humano com todas as suas conseqüências.

ESCOLA – Quando aplicada à escola, a passagem do paradigma repressivo para o paradigma da permissividade implica em caminhar do dever para a criação, da uniformidade para a singularidade, da disciplina para a liberdade. Mas isso só será possível num estado de integração corpo/psique/mente dos educadores e da sociedade. Quando a mente não exerce o seu papel de mediadora e moderadora predomina a busca do excesso de prazer e gozo.

FAMÍLIA- pais pusilânimes, de conduta incerta e indecisa, incapazes de dizer não a seus filhos, que precisam da aprovação deles, que têm medo de perder seu amor se lhes colocarem quaisquer obstáculos, não oferecerão um exemplo de firmeza de personalidade que possa ser assimilado pelos filhos. Sem pontos internos de referência os jovens púberes e adolescentes de conduta desordenada acabam por se apoiar nos modelos que a sociedade de seus pares oferece. Cabelos exóticos, piercings, tatuagens, anorexia, corpo sarado, barriga tanquinho, vigorexia, uso de anabolizantes para corresponder ao modelo de homem. Na tentativa de corresponder a estes estereótipos o jovem poderá ter uma conduta prejudicial a sua saúde: dietas inconvenientes, excesso de exercícios, ingestão de substâncias que afetam o equilíbrio hormonal, etc. Estas condutas têm também a ver com afirmação de identidade e sentimento de baixa auto-estima. Certamente não apenas os fatores sociais influem. A história de cada um tem um importante papel e é o cruzamento das dificuldades decorrentes de um desenvolvimento precário com uma sociedade do excesso que provocará o descomedimento. Se a criança foi durante anos seguidos desvalorizada pela família ela poderá, futuramente, procurar na beleza física um antídoto para sua baixa-estima. Ela procurará estar dentro dos padrões que o grupo social que a cerca valoriza. A influência social e os problemas pessoais convergem para produzir os comportamentos juvenis.

         Quero retomar e acentuar o seguinte aspecto: não tendo adquirido uma sólida identidade interna o jovem tentará afirmar externamente a sua identidade: a tatuagem, o piercing, a vigorexia, e mesmo a anorexia, entram neste tópico. Existem sites de anoréxicas que formam uma comunidade solidária e que se afirmam através de uma anorexia desejada, desafiando os pais e a sociedade.

 

ENTÃO NÃO TEMOS SAÍDA? NEM A REPRESSÃO NEM A PERMISSIVIDADE PERMITEM UMA VIDA SAUDÁVEL? Rapidamente falamos acima da reintegração da mente ao psiquecorpo, do holding e da criatividade e de seus efeitos positivos para a vida. Estamos em plena formação de um novo paradigma. Um paradigma que se encaminha para o holístico e, portanto para o ecológico ou vice-versa. O pensamento de Winnicott nos oferece elementos para este paradigma: o conceito de “concern” – preocupação e zelo com a mãe que é parte dele e que surge espontaneamente num certo momento do seu desenvolvimento --- por extensão preocupação e zelo com o mundo; o de criatividade – a pessoa cria o que já existe e, portanto o que existe ---- as pessoas e o ambiente ---- são parte dela; o holding – sustentação que ao mesmo tempo une, libera e dá limites e cuja situação exemplar é uma mãe segurando firmemente o bebê nos seus braços fornecendo-lhe segurança, confiança e liberdade de expressão. Winnicott tem uma frase que é a síntese desta atitude: “... a criança busca a quantidade de estabilidade ambiental necessária para suportar o embate do comportamento impulsivo. Trata-se da busca por uma provisão ambiental perdida, uma atitude humana que, por ser confiável, proporciona ao indivíduo a liberdade de mover-se e agir e excitar-se. É principalmente na direção da segunda vertente que a criança provoca as reações totais do ambiente, como se buscasse uma moldura cada vez mais ampla, um círculo que teria como seu primeiro exemplo os braços ou o corpo da mãe. É possível perceber aqui uma série – o corpo da mãe, seus braços, o relacionamento dos pais, o lar, a família, incluindo os parentes próximos, a escola, o bairro com a sua delegacia, o país e suas leis” (p.411).

         As idéias de Winnicott (holding, espontaneidade, concern, criatividade, auto-realização, fruição) nos ajudam na elaboração de uma síntese que se encaminha ao holismo e equilíbrio ecológico.  Mas novos problemas sempre surgem. As noções citadas acima (criatividade, fruição, auto-realização, etc.) e outras como multi-atividade, conservação da juventude, jovialidade obstinada, corpo belo e sarado, vida saudável (exercício, alimentação, prevenção de doenças através de exames muitos deles invasivos) acabaram por se banalizar perdendo seu sentido original e tornando-se modelos sociais e, portanto mandatos a serem seguidos. O que havia surgido espontaneamente como parte do desenvolvimento da subjetividade humana tornaram-se comandos, influindo no sentimento, pensamento e comportamento humanos. Isso é o que acontece incessantemente quando o ser humano na ânsia de pertencimento, adaptação, aceitação deixa-se levar pelos modelos imperantes. Repetindo: a subjetividade social contemporânea exige do homem criatividade original, auto-multi-realização singular, corpo belo, saúde perfeita, juventude eterna, jovialidade obstinada tudo elevado à máxima potência. Estes mandatos subjetivos convivem com uma extrema permissividade criando uma situação paradoxal que exige do homem um esforço hercúleo para dar conta de suas escolhas semi-voluntárias e involuntárias. Esforço que o sujeita a deformações e que o aproxima de colapsos psicossomáticos. Estas situações fizeram com que idéias que estavam em mim latentes surgissem com uma força luminosa, certamente para manter meu otimismo em relação ao futuro da humanidade. Que idéias? 1- aceitação plena dos limites pessoais (amor fati de Nietzsche) que só adquire seu máximo sentido quando acompanhado da noção de 2- diferença radical, uma diferença intransitiva (noção inspirada na diferença de Deleuze). Teríamos então não um conjunto modelar, mas uma orquestração exemplar que impregnaria a sociedade e seus membros influindo na subjetividade de cada um. Tentarei inventar situações diversas com o objetivo de esclarecer este pensamento. Imaginemos um homem que deseja voar como um pássaro. Logo diremos: é um pensamento impossível, pois o pássaro pertence a uma espécie e o homem a outra. Existe uma diferença radical entre ambos. Se o homem, em se crendo semelhante a um pássaro, tentar voar, terá o destino de Ícaro. Admitindo uma diferença radical entre homem e pássaro e por isso mesmo desistindo de voar como uma ave, poderá pôr suas potencialidades para trabalhar e então inventará um avião, uma asa delta, um helicóptero, etc. Imaginemos agora um cadeirante que goste de jogar basquete e que esteja assistindo a um jogo de profissionais. Se ele se comparar com os atletas ficará ressentido pensando no que poderia ter sido se não tivesse sofrido um acidente. Se, porém ele se perceber como radicalmente diferente do atleta profissional, sem a menor possibilidade ontológica de com ele se comparar, viverá não o que poderia ter sido, mas o que poderá vir a ser dentro de suas limitações, dentro de seu singular jogo de forças. (Citando Deleuze: “A diferença é que é explicativa da própria coisa, e não suas causas”). De deprimido passa a esperançoso; de conformado a criativo; de doente a saudável. Para isso é preciso que sinta o amor fati, o amor por aquilo que é e que não pode ser mudado. (Citando Nietzsche: “Minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo, mas amá-lo...”.) O nosso cadeirante, embora mais limitado que a maioria dos homens está saudável porque consegue viver criativa e alegremente as suas verdadeiras potencialidades. Ele está para além da idéia de um corpo separado da mente. Num regime dicotômico ele certamente se veria doente, pois a mente estaria separada do corpo. No caso hipotetizado ele é saudável como uma pessoa completa, que não se fixa em apenas uma parte de si mesmo. Esta é uma concepção holística de saúde onde mente, corpo estão integrados. Uma concepção próxima da de Grande Saúde de Nietzsche e que pode ser estendida a todos os homens. Ela atualmente não está presente na subjetividade social como está, por exemplo, a criatividade. Mas ela pode vir a estar presente desde que a sociedade que procura caminhos de evolução ache nela uma possibilidade de transformação positiva. Por enquanto é uma utopia que lanço em circulação no âmbito das idéias. Uma utopia que, quem sabe, poderá ser uma das referências do homem hipermoderno na busca de um caminho.  

  Nahman Armony

                  Maio/2010