Aparentemente
o futuro, em relação à saúde e ao corpo se apresenta brilhante. Pelo andar da
carruagem teremos cada vez mais recursos para tratar de nossa saúde física e
mental. As psicoterapias se aperfeiçoam adequando-se à subjetividade em curso,
as pesquisas farmacológicas são intensas e antigas doenças são alcançadas por
novos medicamentos, as células-tronco pluripotenciais trazem esperança e alento
para muitos que sofrem de doenças degenerativas), os transplantes são cada vez
mais seguros, a confecção de órgãos artificiais para substituição dos
danificados está em pleno andamento, as doenças mentais ganham novos
medicamentos, a neurociência promete exoesqueletos para paralíticos poderem se
movimentar, a qualidade de vida melhora, a longevidade aumenta. Tudo azul no
horizonte não fossem a luta pelo lucro que desconsidera o ser humano, e aquilo
que será objeto de minha palestra: a dissociação corpo/mente.
A
dissociação corpo-mente foi se impondo à civilização ocidental, tendo Platão e
posteriormente Descartes como seus grandes marcos. Desde então ela nos
acompanha Só ultimamente vem-se desfazendo permitindo caminhar da dissociação
para a integração holística.
A
dissociação, como Nietzsche mostrou, nos afasta da vida o que provoca
transtornos tanto para o corpo quanto para a mente, corpo e mente que de acordo
com Spinoza são dois aspectos de uma mesma substância, de uma mesma realidade. O
homem, com sua atividade intelectual, referendou a dissociação corpo-mente. O corpo dissociado da mente é levado a perturbadores
excessos ou insuficiências assim como a mente dissociada do corpo ganha uma
exagerada ou deficiente dimensão. Ambos participam no aparecimento dos
distúrbios psicossomáticos. Na atualidade percebe-se uma maior freqüência destes
distúrbios considerados característicos da época atual, embora tenham existido
em épocas passadas, talvez em menor grau, talvez com menos reconhecimento ou
menor grau de importância. Ao estudar estes distúrbios Winnicott traz uma
contribuição original pouco citada, mas que considero de extrema importância
não só para a Clínica como também para a filosofia, epistemologia e
antropologia.
Vejamos
o que Winnicott propõe: o corpo biológico vem em primeiro lugar. Este corpo está
sujeito tanto a estímulos internos (dor de barriga, fome, sede, processos de
estabilização de funções, etc.) quanto externos (sons, cheiros, cores, etc.) Ambos
provocam sensações no corpo. Essas sensações sofrem, na concepção de Winnicott,
uma “elaboração imaginativa” O psiquismo advém desta elaboração ( a dor de
barriga pode ser sentida como uma cor, ou como uma ameaça, etc). Corpo e psique
ficam intimamente ligados o que eu represento pela agregação corpopsique. A
elaboração imaginativa é um destino a ser cumprido. Mas este magno
acontecimento, como tudo o que acontece com o bebê depende de uma maternagem
suficientemente boa, mais especialmente de uma mãe que dê importância a um bom
handling e holding, a um acolhimento ao mesmo tempo físico e psicológico, a um
segurar com amor e a um cuidar das necessidades do bebê (dar banho, trocar
fralda) respeitando a sua sensibilidade.
O
corpopsique compõe-se de sensações, sentimentos e emoções e de uma inteligência
emocional. Existe, pois um pensamento psicocorporal. Esta inteligência
emocional conecta-se diretamente à realidade, sem mediações. Podemos dizer que
ela raciocina intuitivamente, tendo por base as emoções e sentimentos apreciando
alternativas, fazendo escolhas, entendendo afetivamente os acontecimentos. Trata-se
de uma inteligência espontânea e imediata, diretamente ligada à percepção e
ação, ao que está ocorrendo. Uma inteligência em devir. Mesmo a palavra é uma
palavra psicocorporal diferente da palavra mental que pára o fluxo dos
acontecimentos criando um distanciamento propiciador de um pensamento mais
consciente e abstrato.
A
mente é uma instância diferente do corpopsique. Ela é intelectual, racional,
reflexiva. Na saúde está integrada ao corpopsique MODERANDO E MEDIANDO a relação
da psique com o corpo e do psiquecorpo com a realidade. Ex.: o músico de
orquestra absorvido pela melodia que está tocando, mergulhado nas ondas
sonoras, de tempos em tempos olha o maestro para se orientar acrescentando, de
forma integrada, um elemento mental ao devir psíquico. O maestro, embora
possuído pela música é ao mesmo tempo o principal cuidador da orquestra, é a sensibilidade e a mente da orquestra. Mas
uma mente integrada ao devir da música, uma música que ele, maestro, sente em
seus ossos e vísceras. Se o maestro
tivesse uma mente dissociada do corpopsique, se ele não dançasse a musica que
rege, enfrentaria uma situação semelhante a apresentada no filme de Felini
“Ensaio de Orquestra”. Uma mente dissociada do corpopsique provoca distúrbios
psicossomáticos, com sintomas psicológicos e físicos em proporções variáveis.
A
mente media e modula as relações entre a subjetividade e objetividade,
integrando-as. Segundo Winnicott é o encontro do subjetivamente concebido com o
objetivamente percebido que nos dá a realidade do mundo. Seu exemplo
paradigmático é o de um recém-nascido com fome que alucina um seio e este seio
é colocado pela mãe no lócus da fome. Para o bebê foi ele quem criou um seio
que já existia. É claro que o bebê não sabe da existência objetiva do seio,
mas, poderá já adulto admitir, após passar por um período de objetificação
total, que os objetos são ao mesmo tempo subjetivos e objetivos. A lua, por
exemplo, é um objeto objetivo, mas será vivida subjetivamente quando um casal
de namorados, em êxtase, estiver-na contemplando. A mente lhes diz que se trata
de um objeto objetivo que está sendo vivido subjetivamente. Sem a mente a lua
perde sua objetividade permanecendo no sensorial e na emoção. A racionalidade
mental exerce a importante função de consenso social, mas será danosa se por um
excesso de desenvolvimento, fizer desaparecer a subjetividade retirando a
poesia, a intuição, o encantamento do mundo. Podemos ver isto claramente no
excerto do romance “Homo Faber” de Max Frish: “Sou técnico e estou acostumado a ver as coisas como elas são. Vejo
muito bem tudo o que descrevem. Vejo a lua sobre o deserto de Tamaupilas, mais
nítida do que nunca, talvez, mas continuando a ser uma massa calculável, a
girar ao redor do nosso planeta, um fenômeno da gravitação, certamente
interessante. Mas por que me causaria uma experiência sensacional? Vejo os
rochedos pontiagudos ao clarão da lua, e pode ser que se pareça com os dorsos
bizarros de animais pré-históricos, mas sei que são rochas, pedras,
provavelmente vulcânicas, o que seria necessário pesquisar e constatar. Por que
me assustaria? Já não existem animais pré-históricos. Para que deveria
imaginá-los? Tampouco vejo anjos petrificados nem demônios. Vejo o que vejo: as
costumeiras formas da erosão, além da minha sombra comprida, projetada sobre a
areia, porém nada de fantasmas. Por que me deveria acovardar que nem uma
mulher? Montanhas são montanhas, mesmo que, sob certa iluminação, assumam
qualquer outra aparência. Um avião é para mim um avião, e não imagino ver nele
nenhuma ave de uma espécie extinta. Por que experimentaria eu o que não existe?”
(pgs. 31/33). É evidente aqui a dicotomia mente-corpo/afeto e a perda do
encantamento do mundo.
O
surgimento da mente é explicado por Winnicott da seguinte maneira: no período
inicial da vida de um bebê a mãe atende imediatamente a todas as suas
necessidades (exagero teórico). Mais adiante a mãe deixa de responder com a
mesma presteza e em outras ocasiões se afasta do bebê para cuidar da própria
vida. Quebra-se a continuidade de ser do bebê, pois de repente lhe falta a mãe
que é fiadora desta continuidade. Então o bebê usa de vários recursos para
preencher este “gap”, esta fissura. Um deles é o surgimento da mente que tenta
entender o que está acontecendo, o motivo da descontinuidade, ficando atento ao
ambiente, interpretando a movimentação visual e sonora que precede a
aproximação da mãe ou a feitura da mamadeira. Isto mantém a continuidade da
relação e de ser do bebê. Se a mãe se demora em demasia a mente se desenvolve
excessivamente tentando dar conta da ansiedade provocada pela prolongada quebra
de continuidade.
Temos
assim três instâncias: o corpo, a psique e a mente. Quando integradas temos a
saúde. Quando mente e corpo se dissociam aparecem as doenças psicossomáticas,
pois, na dissociação, a mente procura atrair a psique para si, e o corpo ao
tentar recuperá-la o faz sob a forma de sintomas psicossomáticos.
Winnicott
apresenta uma situação exemplar: nas sessões analíticas uma pessoa de mente e corpo
dissociados, fala intelectualmente de seus sentimentos e emoções, ao invés de
vivê-los na sessão. Ela não confia em cuidadores e usa sua mente como cuidador
de seu psiquesoma. Ela não vive os seus sentimentos. Fala deles como se
estivesse falando de uma 3ª pessoa. Ao abordar intelectualmente seus
sentimentos coloca a psique na esfera do racional, isto é, aproxima-a da mente
e afasta-a do soma. “O resultado é uma mente-psique patológica”. O soma tenta
recuperar a psique o que provoca sintomas somáticos. Ex. da Sra. X: relação extraconjugal
do marido. A mente dava-lhe boas razões justificando o comportamento do
cônjuge, o ciúme sentido por ela era intelectualizado (absorvido pela mente), o
corpo não sentia a emoção do ciúme (“eu sei que tenho ciúme, mas não sinto”). O
corpo ao tentar recuperar a psique fazia com que a Sra. tivesse vômitos e dor
de cabeça.
CONCEPÇÕES HISTÓRICAMENTE
DATADAS SOBRE CORPO, PSIQUE E MENTE
A
mente não aparece nas transcrições da fala rimada (ou poesia) do aedo Homero do
século VIII a.C. A concepção sobre esta questão era: um corpo animado por um
sopro vital (pneuma) adquiria vida. A morte ocorria com o desaparecimento do sopro
vital. O corpo não sendo mais vivificado pelo pneuma tornava-se uma sombra, um
eidelon, uma espécie de robô incapaz de sentir/pensar, isto é, de pensamento
intuitivo que era o único então em evidência. Não se falava do destino da alma
(da mente), pois este conceito ainda não estava formado. Havia um corpo que
enquanto vivo sentia e reagia ao ambiente com uma inteligência emocional, uma
psique inteligente, um pensamento da sensibilidade (vide Dustin Hoffman no
filme “Herói por acidente” quando percebe na corporalidade da advogada suas
hesitações). Tendo perdido seu sopro vital, seu pneuma, o corpo passava a
habitar o Hades, local para onde iam todas as almas quaisquer que tivessem sido
em vida suas virtudes e seus pecados. Só excepcionalmente, mediante rituais
poderosos, um eidolon voltava a ser capaz de, por momentos, recuperar sua
inteligência emocional. Se olharmos sob a ótica de Winnicott não existia então
a mente, somente o corpopsique. Não se fala, pois, de uma inteligência racional,
mas de uma inteligência emocional.
Com
a escola jônica de filosofia a mente entra em cena. Seus filósofos tentam encontrar
a substância ou as substâncias primordiais das quais se derivariam todas as
outras por transformações. Temos aqui um raciocínio abstrato e, portanto na perspectiva
winnicottiana já estaríamos na área da racionalidade mental que se
acrescentaria à racionalidade emocional. Esta mente está integrada ao
corpopsique.
A
dicotomia e a dissociação aparecem em Platão que separa corpo e alma
colocando-as como duas substâncias diferentes. O corpo pertence ao mundo sensível e a alma,
que é uma alma racional, pertence ao mundo inteligível. Para Platão o mundo
sensível é um mundo instável, um mundo de opiniões e não de verdades. E Platão
deseja um mundo estável onde verdades absolutas possam ser estabelecidas. O
corpo inconstante e mutável é desvalorizado. Em termos de Winnicott o
psiquesoma é forçado a se separar da mente dando ensejo ao aparecimento de
patologias.
Esta
desvalorização se acentua com Descartes que também separa corpo e mente e vê o
corpo funcionando como um relógio mecânico, uma máquina independente precariamente
ligada à mente pela glândula pineal.
Esta
dicotomia é concomitante à retomada da observação da natureza já agora por um
viés matemático que tornaram as observações precisas. Estamos no paradigma da
cientificidade dicotômica extremamente útil para o desenvolvimento do
pensamento racional, da lógica clássica utilizada pela física newtoniana com
enormes ganhos no que diz respeito ao conhecimento e utilização da natureza. Descartes
com a sua filosofia antecedeu Newton, dividindo o homem em res extensa e res
cogitans onde a res extensa --- e o corpo faz parte da res extensa --- funcionando
mecanicamente pode ser estudada com precisão usando-se a matemática e a lógica
de causa e efeito. Separada do contexto geral da vida a física ganhou status de
onipotência e onisciência tornando-se modelo para todas as atividades humanas,
arrebatando da religião a aura de sacralidade intocável. O homem arrogantemente
acreditava poder domar e dominar a natureza. Certamente formavam-se detritos,
restos indesejáveis, mas por muito tempo o progresso que a ciência trouxe
ultrapassava os malefícios causados ao ambiente e ao homem. Estes detritos foram,
porém se acumulando até que se percebeu que a exploração ilimitada da natureza
no seu sentido mais amplo (física, social, humana) acabaria por destruir a
espécie humana. Esta se tornou uma
preocupação para muitos: Bauman, Lipovetsky e pensadores em geral. Criou-se o
“Novo Clube de Paris” formado por pessoas das mais diversas atividades –
matemáticos, ministros, presidentes de Bancos, etc. – preocupados com os rumos
tomados pela sociedade acreditando que estamos chegando a um limite muito
perigoso. Seria preciso que aparecesse outro paradigma que se difundisse pelo
corpo social, alterando as relações com o ambiente, com o homem e a sociedade. Seria
preciso ultrapassar o paradigma dicotômico.
Um
subproduto do paradigma dicotômico se consolidou na época vitoriana, com o
dever, a disciplina e a repressão dominando as relações humanas. Embora eu não
ignore os trabalhos de Foucault que acentua a importância da proliferação dos
discursos e da implantação da disciplina, falando inclusive de poder
disciplinar, manterei meu foco em aspecto mais restrito: a repressão.
Considerarei então a existência de um paradigma da repressão e vou colocá-lo
como tese de uma dialética cuja antítese é o paradigma da permissividade. Estas
tese e antítese estão pedindo uma síntese que está em processo de elaboração.
Os conceitos de Winnicott podem contribuir para a elaboração desta síntese que
já está em curso e que por sua vez está se transformando em nova tese inaugurando
um novo ciclo. Neste ponto trarei uma contribuição que apresentarei no fim de
minha fala, buscando inspiração em Nietzsche e Deleuze.
O
estudo dos paradigmas é importante, pois eles são parte daquilo que chamamos de
“espírito do tempo” tendo influência sobre cada ser humano da sociedade à qual
pertence. As pessoas de nossa época, das quais falaremos mais adiante, estão
penetradas pelos paradigmas em curso e pelos avatares dele. A concepção de
corpo, doença e saúde é diferente em cada paradigma.
PARADIGMA REPRESSIVO
Já
vimos que na época homérica ainda não estava consolidada a idéia de alma e que
nas primeiras tentativas de explicar o mundo intelectualmente havia uma integração
da mente com o psiquecorpo. Com Platão a alma racional (a mente) ganha
supremacia sobre o psiquecorpo criando-se uma dicotomia. A partir daí o espaço
ocupado pela mente cresce até que com o surgimento da ciência moderna e
posteriormente, com a subjetividade vitoriana ela se torna soberana relegando o
corpopsique, o sensível, para um segundo plano. Isto fica muito claro com o
tratamento dado pela ciência à palavra que é um tratamento repressivo.
REPRESSÃO
DA PALAVRA - Até a época cientificista a palavra tinha uma imprecisão que
permitia usá-la poeticamente, paradoxalmente, metaforicamente. A palavra estava
integrada no conjunto corpopsiquemente. Havia então uma liberdade no seu uso e
ela podia ser ouvida em sua polissemia permitindo ao ouvinte dar uma interpretação
singular acorde à sua subjetividade. A denotação era uma parte mínima da
palavra, cercada que estava por todos os lados pela conotação, permitindo seu amplo
uso, uma grande liberdade de interpretação. Com a ciência aboliu-se a
conotação. A palavra tinha de ser precisa e designar exata e conceitualmente o
objeto, não permitindo nenhum devaneio. A palavra passou a ser um produto da
mente dissociada do corpopsique. Acabava-se com a poesia e a diversidade da
fala. Passou a haver a preocupação de se dizer a palavra precisa, exata, o que tirava
a espontaneidade do discurso tornando-o esquemático e desinteressante. A
palavra perdeu o seu encanto, sua liberdade, seu potencial poético. Todos
deveriam entender as coisas exatamente da mesma maneira. Isto é que era ser
científico. A riqueza da diversidade humana se perdia. Aquilo que na física
clássica era útil, necessário, eficiente, tornou-se uma camisa de força para a
manifestação da complexidade, diversidade e sutileza da alma humana.
Eliminava-se parte do mundo, simplificando-o através da ciência. Tudo poderia
ser explicado por cálculo. Mas para isso a palavra tinha de ser rigorosamente exata,
rigorosamente intelectual, rigorosamente mental reprimindo-se o psiquecorpo e
conseqüentemente as conotações das palavras. E a poesia perdida nos faz falta.
Ela está ligada ao encantamento do mundo, ao afeto, ao sentimento oceânico, à
criatividade, condições necessárias para um viver integrado e saudável, onde
corpopsique e mente formam uma unidade.
REPRESSÃO DOS ASPECTOS FEMININOS
DO SER HUMANO- Numa sociedade machista,
patriarcal, a mente é valorizada em detrimento do corpopsique. A objetividade, o
intelecto, o poder, a riqueza material ficam em um patamar muito superior à
sensibilidade, empatia, compaixão, amor. O corpopsique é ignorado, negado,
colocado em segundo plano. As características femininas são vistas como
fraquezas, necessárias sim, mas que devem ficar confinadas ao lar. E mesmo aí
elas são desvalorizadas, servindo para realçar a força da racionalidade (isenta
de sentimentos) do homem. Há uma clara dicotomia. Homem é homem, mulher é
mulher. À mulher, de constituição inferior, se permitem fraquezas que vêm de
seu sentimentalismo, de seu exercício da empatia, identificação, compaixão,
espírito de conciliação. Já o homem não pode ter fraquezas. Tem de ser duro,
não se deixar atrapalhar pelos sentimentos para poder enxergar a realidade
crua, a realidade egoísta que então lhe permite oprimir, castigar, dominar os
seus oponentes garantindo o sustento e quiçá o luxo de sua família. Os
sentimentos reprimidos, no entanto reapareciam na forma de sintomas neuróticos,
enquanto que nas mulheres a sua desvalorização e o seu confinamento provocavam
distúrbios dos quais o mais freqüente era a histeria. O rapaz para poder
sobreviver nesta sociedade rígida tinha de recalcar todas as suas
potencialidades só permitindo o afloramento de uma delas. Com isso sua vida
tinha um caráter retilíneo com um único objetivo em vista que para ser
alcançado deveria sacrificar as suas outras potencialidades. Os desejos
múltiplos infantis tinham de ser duramente reprimidos para que um único
objetivo prevalecesse. Desta forma seu ego tornava-se inteiriço, unitário, determinado,
não se desviando do caminho traçado. A dupla moral vitoriana permitia-lhe
manter a unidade do ego, pois lhe dava a oportunidade de evadir-se em noitadas
clandestinas que eram dissociadas da vida correta e civilizada o que em parte
aliviava seu mal-estar. Assim como o ego tinha contornos nitidamente
delimitados também os quadros neuróticos o tinham recebendo nomes específicos
de acordo com seus sintomas e psicopatologia: neurose obsessiva, neurose fóbica,
neurose de ansiedade, neurose conversiva (histeria). O corpo manifestamente
sofria com a ansiedade e com a conversão. Aparentemente não havia sofrimento
corporal quando certas condições se cumpriam na neurose obsessiva e fóbica.
CONSUMO: O primitivo capitalismo
de acumulação estimulava a poupança o que significa que não estimulava o
consumo. A mente moderava o desejo de consumo. Uma abstinência moderada e,
portanto um consumo moderado pode advir de uma boa integração corpopsiquemente. Contrasta com o paradigma seguinte, o da
permissividade, em que predomina o consumo imoderado, um consumo em que o
corpopsique está solto sem a modulação da mente.
REPRESSÃO DOS MÚLTIPLOS DESEJOS
E PEQUENOS EUS- As muitas potencialidades do ser humano são reprimidas em prol
de uma vida retilínea com um modelo único pré-determinado. Também aqui a mente
domina o psiquecorpo direcionando o sujeito para uma só profissão, para um
único amor, para uma única forma de vida: trabalho, família e diversão
convencional. Quando não há repressão encontramos pessoas que não têm um
direcionamento e que se deixam levar pelos seus múltiplos desejos/eus, isto é,
pelo seu corpopsique. Querem ao mesmo tempo vários tipos de vida, vários tipos
de atividade, fazem experiências até que a mente intervém como moduladora e não
como ditadora permitindo que encontrem o seu modo de viver e amar singulares.
REPRESSÃO DA ESPONTANEIDADE E
CRIATIVIDADE: tendo de seguir modelos de comportamento e funcionamento a
espontaneidade e a criatividade ficam prejudicadas.
DICOTOMIZAÇÃO DA UNIDADE CORPO-MENTE:
No paradigma repressivo predominam as relações dominador-dominado. Na divisão corpo-espírito
quem manda é a mente e o corpo obedece. Isto se repete no relacionamento
professor/aluno, marido/esposa, médico/paciente, patrão/empregado, pai/filho,
etc. A mente que deveria estar integrada ao corpo, exercendo seu papel de
mediadora entre o corpo/afeto e realidade, e entre o corpo e o psíquico deixa
de ter esta função e passa a exercer uma tirania sobre o corpo/afeto. Ela
obriga o corpoafeto a ultrapassar limites até a exaustão, não dando importância
aos sinais de desequilíbrio enviados pelo soma. Assim como a mente tiraniza o
corpo, desconsiderando-o, as pessoas se tornam dominadoras desconsiderando os
sentimentos e a humanidade da outra. Na luta pelo poder só a mente funciona; o
psíquico (as emoções e sentimentos corporais) desaparece para que a impiedade,
a crueldade, a implacabilidade possam funcionar livre de freios.
RELAÇÃO CUIDADOR-SERCUIDADO – a
rígida hierarquia própria do paradigma cartesiano impede a colaboração do
paciente na condução de sua trajetória curativa. O cuidador não ouve as
informações daquele que está sendo cuidado e, autoritariamente, dita normas a
serem seguidas. A não participação do que está sendo cuidado dificulta a conduta
terapêutica, pois o estado de submissão, diante de uma instância autoritária,
inferioriza, inibe e dificulta ou impede a indispensável informação e
colaboração do dominado.
RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE -- O
médico possuído pelo paradigma dicotômico tratará o órgão doente sem se
importar com a pessoa que porta este órgão. Com isto ele estará dando uma
assistência incompleta, pois não levará em consideração a unidade psique/corpo
nem a importância da mente que participa desta unidade. Mesmo as pessoa em coma
se beneficiam de um contato afetivo.
RELAÇÃO MÃE-FILHO – do complexo
conjunto da relação mãe-filho focalizarei, no momento, a dicotomia corpo/psique
- mente.
Uma mãe que favoreça
o desenvolvimento da mente do bebê e da criança em detrimento do corpo/afeto
facilitará o aparecimento de um adulto intelectualizado que dará pouca ou
nenhuma importância à rica e variada vida de sentimentos. São pessoas frias,
sem sensibilidade para a vida subjetiva, capazes de impiedade. Têm uma mente
matemática, apta a exercer maquinações implacáveis, infensa a sentimentos de
simpatia e compaixão. São capazes de tramar intelectualmente sua ascensão
pessoal e profissional sem a menor consideração pelos outros que só lhes servem
como degraus de uma escada a ser percorrida até o topo. Teremos um ser humano
perfeitamente adaptado à feroz luta competitiva do capitalismo. Esta luta feroz
é artisticamente alegorizada por Costa-Gavras em seu filme “O corte” (“Le
couperet”) lançado em 2005 onde o protagonista, um homem perfeitamente “normal”
segundo os critérios sociais, grande especialista em sua área, mata 3 ou 4
outros especialistas da mesma área para não ter concorrentes na busca de emprego.
Para
que haja uma integração corpopsiquemente é preciso firmeza na sustentação
(holding), cuidado psíquico e corporal. O toque amoroso é fundamental para a
vida. Temos um exemplo disto em espécies diferentes da nossa como nos mamíferos
que lambem suas crias recém-nascidas para que se estabeleçam as funções
corporais fisiológicas e sociais. Uma experiência de 1997 do neurocientista
Michael J.Meaney e colegas da Universidade McGill demonstra a importância do
toque: “... compararam a resposta ao
estresse em ratos cuja mãe os lambeu com vigor e cuidou bastante deles durante
os primeiros dez dias de vida com roedores cuja mãe raramente os lambia quando
eram recém-nascidos. Meaney e seus colegas descobriram que a prole das fêmeas
mais carinhosas e cuidadosas apresentava menos ansiedade e estresse que os
outros animais quando eram confinados em um pequeno tubo de plástico durante 20
minutos – os níveis do hormônio de estresse dos ratos, a corticosterona, subiam
bem menos e permaneciam elevado por pouco tempo.” (Fonte: Revista MENTE E
CÉREBRO, ano XVII n. 207 – abril 2010)
Uma
mãe consciente ou inconscientemente preconceituosa, reprimida e repressiva, ao
tocar a zona genital o faz com dificuldade, com reserva, com desgosto, com
aflição, às vezes com nojo, transmitindo ao bebê o sentimento de que aquela
parte é diferente das outras do corpo levando à dissociação da zona genital que
é como se não existisse ou existisse de uma maneira autônoma ou como se fosse
uma parte demoníaca.
Quando
a mãe está ausente por um tempo demasiado, (o que pode acontecer mesmo estando
fisicamente presente) a mente do bebê, tentando entender o que está
acontecendo, sofre um desenvolvimento exagerado dissociando-se do corpo.
Uma mãe que saiba dar carinho e
estímulo, mas que não cuide do corpo do bebê estará passando a mensagem de que
o corpo não é importante. A criança ao se tornar adulto tenderá a
negligenciá-lo recusando-se, por exemplo, a fazer check-up, a ir ao médico para
prevenção e tratamento. Também ignorará os sinais que o corpo envia quando
começa a adoecer ou quando começa a ultrapassar sua capacidade de trabalho. A
má alimentação é também uma negligência com o corpo assim como a obesidade. Evidentemente
não só a negligência entra em pauta; há outros fatores dinâmicos influenciando
os transtornos corporais.
A
mãe que cuida só do corpo de seu bebê (dando-lhe comida na hora certa,
mantendo-a limpa e seca, seguindo os preceitos higiênicos) estará prejudicando-a
se não a tratar com carinho, se não perceber e/ou não responder às suas
demandas afetivas, se não se identificar com ela para atender às suas
necessidades que são ao mesmo tempo físicas e psicológicas. Ela a deixará em
estado de carência afetiva que repercutirá em sua vida futura.
Uma
mãe que tenha um corpo/psique/mente integrados criará condições favoráveis para
o desenvolvimento saudável de seu filho, mesmo pertencendo a um grupo social
dicotômico e dissociativo que, no entanto, não deixa de exercer alguma
influência em ambos.
PARADIGMA DA PERMISSIVIDADE
Neste
paradigma o corpo/psique predomina sobre a mente. Com isto o corpo recebe uma
atenção especial seja para a saúde seja para a beleza podendo ficar nos limites
do saudável e do belo ou ultrapassá-los criando maiores ou menores problemas.
Por outro lado o corpopsique assume uma liberdade sem limites. Cada um faz o
que manda o seu desejo. É proibido proibir. O corpopsique tem a mais absoluta
liberdade de se manifestar. A mente, que no paradigma repressivo inibia o
comportamento com violência, se ausenta no paradigma permissivo deixando de
exercer a sua função mediadora e moderadora em relação à realidade social e em
relação à integração psique/corpo. Diría mesmo que o ego não tem estrutura para
conciliar a realidade com os impulsos, não tendo condições de indicar caminhos
viáveis de realização do self. Poderemos entender isto melhor se formos à
origem quando as coisas se apresentam de uma forma mais simples: o bebê é puro
impulso: impulso instintivo de satisfação de necessidades (fome, sede, carinho,
etc.) e impulso narcísico do self (eu) de auto-conservação, auto-realização,
expansão. É a mãe quem complementa a mente do bebê protegendo o self da
realidade externa (cuidando, por exemplo, de que não haja um excesso de
estímulos) e dos impulsos internos (evitando, por exemplo, que a curiosidade
exploratória --- desejo de expansão ---- faça-o cair de uma grande altura, ou
que tome um choque elétrico, ou que se perca na rua). Tendo uma mãe
suficientemente boa o bebê assimila e adquire uma mente e um ego pessoais
tornando-se capaz de adequar o self à realidade. Uma mãe suficientemente boa e
um ego suficientemente bom darão limites, liberdade e permissão para uma transgressão
centrípeta (está sempre chamado para um comportamento ético). Caso contrário o self
se alargará excessivamente e a pessoa sentir-se-á com direito de realizar todos
seus desejos e vontades. Então: se a mãe não consegue colocar limites para a
criança, se não consegue saudavelmente frustrá-la, submetendo-se aos seus
desejos e permitindo-lhe um comportamento transgressivo anti-social centrífugo estará
estimulando um narcisismo exagerado. A criança que cresceu dentro desse clima
sente-se no direito de ter tudo para si. Os outros só existem para servi-lo em suas
necessidades materiais e psíquicas. Qualquer limite que lhe é anteposto é
sentido como um crime de lesa-majestade já que ele continua se sentindo como
“Sua Majestade o Bebê” que por direito divino terá a aprovação e a submissão de
todos que terão o sagrado dever e privilégio de servi-lo. Também o corpo é vivido como não
tendo limites. A morte e a doença não existem e a pessoa ficará desatenta, não
levando em consideração os pequenos sinais de que algo não vai bem com o seu
corpo, só tomando providencias quando a situação evoluiu de uma tal maneira que
a reversão torna-se mais problemática.
Na medida em que a
mente deixa de exercer o seu papel regulador, os exageros em relação ao corpo, à
alimentação, à beleza, acabam por afetar negativamente a saúde psicofísica. Excesso
de exercício, excesso de emagrecimento, excessos gastronômicos, dietas exóticas
inadequadas, bombas, vigorexia, anorexia, uso abusivo de psicofármacos, conduta
social inadequada. Quando a mente, no
paradigma em formação (que em outro artigo chamei de paradigma ecológico) é reincorporada ao psiquesoma o cuidado com o
corpo, com a beleza, com a alimentação permitem que a pessoa se torne mais
saudável, prevenindo doenças, melhorando a qualidade de vida, a longevidade, as
relações pessoais, familiares e sociais.
A recuperação da espontaneidade
é um dos aspectos positivos do paradigma da permissividade; mas se usada sem
freios fará perder a sensibilidade para o outro e para as situações. A experiência
do holding no paradigma em formação (ecológico) facilitará uma espontaneidade
saudável, aquela que não invade o outro nem dele abusa. O mesmo acontece com a
criatividade. Ela depende de um clima permissivo que, se exagerado, propiciará
excessos no sentido de um predomínio autístico da subjetividade com produções e
fantasias sem sentido social; se centripetamente usada (e aqui já estamos no
paradigma em formação) será de enorme utilidade para o desenvolvimento do
pensamento humano com todas as suas conseqüências.
ESCOLA – Quando aplicada à
escola, a passagem do paradigma repressivo para o paradigma da permissividade
implica em caminhar do dever para a criação, da uniformidade para a singularidade,
da disciplina para a liberdade. Mas isso só será possível num estado de
integração corpo/psique/mente dos educadores e da sociedade. Quando a mente não
exerce o seu papel de mediadora e moderadora predomina a busca do excesso de
prazer e gozo.
FAMÍLIA- pais pusilânimes, de
conduta incerta e indecisa, incapazes de dizer não a seus filhos, que precisam
da aprovação deles, que têm medo de perder seu amor se lhes colocarem quaisquer
obstáculos, não oferecerão um exemplo de firmeza de personalidade que possa ser
assimilado pelos filhos. Sem pontos internos de referência os jovens púberes e
adolescentes de conduta desordenada acabam por se apoiar nos modelos que a
sociedade de seus pares oferece. Cabelos exóticos, piercings, tatuagens,
anorexia, corpo sarado, barriga tanquinho, vigorexia, uso de anabolizantes para
corresponder ao modelo de homem. Na tentativa de corresponder a estes
estereótipos o jovem poderá ter uma conduta prejudicial a sua saúde: dietas
inconvenientes, excesso de exercícios, ingestão de substâncias que afetam o
equilíbrio hormonal, etc. Estas condutas têm também a ver com afirmação de
identidade e sentimento de baixa auto-estima. Certamente não apenas os fatores
sociais influem. A história de cada um tem um importante papel e é o cruzamento
das dificuldades decorrentes de um desenvolvimento precário com uma sociedade
do excesso que provocará o descomedimento. Se a criança foi durante anos
seguidos desvalorizada pela família ela poderá, futuramente, procurar na beleza
física um antídoto para sua baixa-estima. Ela procurará estar dentro dos
padrões que o grupo social que a cerca valoriza. A influência social e os
problemas pessoais convergem para produzir os comportamentos juvenis.
Quero
retomar e acentuar o seguinte aspecto: não tendo adquirido uma sólida
identidade interna o jovem tentará afirmar externamente a sua identidade: a
tatuagem, o piercing, a vigorexia, e mesmo a anorexia, entram neste tópico. Existem
sites de anoréxicas que formam uma comunidade solidária e que se afirmam
através de uma anorexia desejada, desafiando os pais e a sociedade.
ENTÃO NÃO TEMOS SAÍDA? NEM A
REPRESSÃO NEM A PERMISSIVIDADE PERMITEM UMA VIDA SAUDÁVEL? Rapidamente falamos
acima da reintegração da mente ao psiquecorpo, do holding e da criatividade e
de seus efeitos positivos para a vida. Estamos em plena formação de um novo
paradigma. Um paradigma que se encaminha para o holístico e, portanto para o ecológico
ou vice-versa. O pensamento de Winnicott nos oferece elementos para este
paradigma: o conceito de “concern” – preocupação e zelo com a mãe que é parte
dele e que surge espontaneamente num certo momento do seu desenvolvimento ---
por extensão preocupação e zelo com o mundo; o de criatividade – a pessoa cria
o que já existe e, portanto o que existe ---- as pessoas e o ambiente ---- são
parte dela; o holding – sustentação que ao mesmo tempo une, libera e dá limites
e cuja situação exemplar é uma mãe segurando firmemente o bebê nos seus braços fornecendo-lhe
segurança, confiança e liberdade de expressão. Winnicott tem uma frase que é a
síntese desta atitude: “... a criança
busca a quantidade de estabilidade ambiental necessária para suportar o embate
do comportamento impulsivo. Trata-se da busca por uma provisão ambiental
perdida, uma atitude humana que, por ser confiável, proporciona ao indivíduo a
liberdade de mover-se e agir e excitar-se. É principalmente na direção da
segunda vertente que a criança provoca as reações totais do ambiente, como se
buscasse uma moldura cada vez mais ampla, um círculo que teria como seu
primeiro exemplo os braços ou o corpo da mãe. É possível perceber aqui uma série
– o corpo da mãe, seus braços, o relacionamento dos pais, o lar, a família,
incluindo os parentes próximos, a escola, o bairro com a sua delegacia, o país
e suas leis” (p.411).
As
idéias de Winnicott (holding, espontaneidade, concern, criatividade, auto-realização,
fruição) nos ajudam na elaboração de uma síntese que se encaminha ao holismo e
equilíbrio ecológico. Mas novos
problemas sempre surgem. As noções citadas acima (criatividade, fruição,
auto-realização, etc.) e outras como multi-atividade, conservação da juventude,
jovialidade obstinada, corpo belo e sarado, vida saudável (exercício,
alimentação, prevenção de doenças através de exames muitos deles invasivos) acabaram
por se banalizar perdendo seu sentido original e tornando-se modelos sociais e,
portanto mandatos a serem seguidos. O que havia surgido espontaneamente como
parte do desenvolvimento da subjetividade humana tornaram-se comandos, influindo
no sentimento, pensamento e comportamento humanos. Isso é o que acontece
incessantemente quando o ser humano na ânsia de pertencimento, adaptação,
aceitação deixa-se levar pelos modelos imperantes. Repetindo: a subjetividade
social contemporânea exige do homem criatividade original,
auto-multi-realização singular, corpo belo, saúde perfeita, juventude eterna,
jovialidade obstinada tudo elevado à máxima potência. Estes mandatos subjetivos
convivem com uma extrema permissividade criando uma situação paradoxal que
exige do homem um esforço hercúleo para dar conta de suas escolhas
semi-voluntárias e involuntárias. Esforço que o sujeita a deformações e que o
aproxima de colapsos psicossomáticos. Estas situações fizeram com que idéias
que estavam em mim latentes surgissem com uma força luminosa, certamente para
manter meu otimismo em relação ao futuro da humanidade. Que idéias? 1- aceitação
plena dos limites pessoais (amor fati de Nietzsche) que só adquire seu máximo
sentido quando acompanhado da noção de 2- diferença radical, uma diferença
intransitiva (noção inspirada na diferença de Deleuze). Teríamos então não um conjunto
modelar, mas uma orquestração exemplar que impregnaria a sociedade e seus
membros influindo na subjetividade de cada um. Tentarei inventar situações
diversas com o objetivo de esclarecer este pensamento. Imaginemos um homem que
deseja voar como um pássaro. Logo diremos: é um pensamento impossível, pois o
pássaro pertence a uma espécie e o homem a outra. Existe uma diferença radical
entre ambos. Se o homem, em se crendo semelhante a um pássaro, tentar voar, terá
o destino de Ícaro. Admitindo uma diferença radical entre homem e pássaro e por
isso mesmo desistindo de voar como uma ave, poderá pôr suas potencialidades
para trabalhar e então inventará um avião, uma asa delta, um helicóptero, etc. Imaginemos
agora um cadeirante que goste de jogar basquete e que esteja assistindo a um
jogo de profissionais. Se ele se comparar com os atletas ficará ressentido
pensando no que poderia ter sido se não tivesse sofrido um acidente. Se, porém
ele se perceber como radicalmente diferente do atleta profissional, sem a menor
possibilidade ontológica de com ele se comparar, viverá não o que poderia ter
sido, mas o que poderá vir a ser dentro de suas limitações, dentro de seu
singular jogo de forças. (Citando Deleuze: “A
diferença é que é explicativa da própria coisa, e não suas causas”). De
deprimido passa a esperançoso; de conformado a criativo; de doente a saudável.
Para isso é preciso que sinta o amor fati, o amor por aquilo que é e que não
pode ser mudado. (Citando Nietzsche: “Minha fórmula para a grandeza do homem é
amor fati: não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás,
nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda
dissimulá-lo, mas amá-lo...”.) O nosso cadeirante, embora mais limitado
que a maioria dos homens está saudável porque consegue viver criativa e
alegremente as suas verdadeiras potencialidades. Ele está para além da idéia de
um corpo separado da mente. Num regime dicotômico ele certamente se veria
doente, pois a mente estaria separada do corpo. No caso hipotetizado ele é
saudável como uma pessoa completa, que não se fixa em apenas uma parte de si
mesmo. Esta é uma concepção holística de saúde onde mente, corpo estão
integrados. Uma concepção próxima da de Grande Saúde de Nietzsche e que pode
ser estendida a todos os homens. Ela atualmente não está presente na
subjetividade social como está, por exemplo, a criatividade. Mas ela pode vir a
estar presente desde que a sociedade que procura caminhos de evolução ache nela
uma possibilidade de transformação positiva. Por enquanto é uma utopia que
lanço em circulação no âmbito das idéias. Uma utopia que, quem sabe, poderá ser
uma das referências do homem hipermoderno na busca de um caminho.
Nahman Armony
Maio/2010
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