A ANÁLISE POSSÍVEL

 REFLEXÕES SOBRE O ALCANCE E LIMITES DA TÉCNICA ANALÍTICA.
Embora eu disponha de um tempo limitado não conseguirei ir adiante sem antes confessar que a palavra ‘técnica’, atualmente, gera-me um certo desconforto não obstante eu a use.  Para mim ela transmite a ideia de que se o aprendiz seguir as regras expostas pelo mestre se tornará um bom profissional. Creio que ninguém concorda com este tipo de aprendizado, pois o bom profissional é mais um artista que um técnico. Por isso a análise pessoal e as supervisões são indispensáveis numa formação psicanalítica. E o supervisor sempre deverá estar atento para evitar uma cópia (uma técnica) sem alma. Talvez fosse melhor substituir a expressão ‘técnica analítica’ por techné analítico. Esta antiga palavra grega não separa a arte da técnica. Elas formam uma unidade: uma amalgama-se à outra. 

        Desde que Freud contaminou a sociedade patriarcal com a peste da psicanálise, suas mutações não cessaram de inquietar a sociedade provocando em muitos profissionais um tumulto psíquico que se traduzia numa frase superegóica repetida até a exaustão: “isto não é psicanálise”. Uma frase que, sem agravos, poderia ser substituída por um esconjurativo ‘vade retro Satanás’. Pois é justamente esta capacidade viral de transformação que mantém a psicanálise viva. O Freud da ciência da observação minuciosa sabia disso e fez da psicanálise uma ciência em transformação. Mas aqui se faz necessária uma ressalva. Em relação a alguns conceitos ele era intransigente, acreditando proteger a psicanálise naquilo que acreditava ser constitutivo de sua singularidade. De qualquer maneira, com ou sem a aprovação dos grandes mestres a psicanálise não cessou de ampliar suas fronteiras e nem cessará, pois para permanecer viva terá de participar das aceleradas mudanças de mentalidade, de paradigma, de subjetividade.
Para expor a trajetória da clínica (techné) psicanalítica clássica à clínica da intersubjetividade certamente terei de começar por Freud. Ele viveu num regime vitoriano/patriarcal em que as pessoas em posição de poder colocavam-se em um patamar superior ao das pessoas que deles dependiam. Assim eram as relações pai/família, professor/aluno, médico/paciente, marido/mulher, etc. e naturalmente analista/paciente. Esta posição hierárquica fazia do analista um sujeito de um pretenso saber; uma tentação que tomava várias formas. Também criava um distanciamento impossível de ultrapassar.  
Nas “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” Freud adverte: “O médico deve ser opaco aos seus clientes e como um espelho não mostrar-lhes nada exceto o que lhe é mostrado”. No meu artigo “Posturas terapêuticas na prática clínica” chamei a esta atitude de postura-espelho (modo-espelho).  E mais adiante, neste mesmo artigo: “Não posso aconselhar insistentemente demais os meus colegas a tomarem como modelo, durante o tratamento analítico o cirurgião que põe de lado todos os sentimentos, até mesmo a solidariedade humana, e concentra suas forças mentais no objetivo único de realizar a operação tão competentemente quanto possível...” A clássica liturgia psicanalítica facilita e mantém estas recomendações. O analista, fora do alcance do olhar do analisando não se revela através das expressões faciais, das movimentações do corpo e das atitudes globais facilitando a manutenção de idealização. Ao mesmo tempo cria uma distância entre ele e o analisando. O modo-espelho seria pois acompanhado de uma configuração em que de um lado está o analista, do outro o analisando e entre eles um espaço neutro onde o analista coloca as suas interpretações e de onde o analisando as recolhe. Não há um contato direto, corpo/afetivo entre ambos; o procedimento do analista é verbal/interpretativo. Temos de um lado o sujeito do saber que interpreta e do outro o fulano do não saber cujo inconsciente é interpretado pelo psicanalista. Este era e eventualmente ainda é considerado o estado basilar da relação analítica. O analista revela ao Cs. do analisando o seu Ic. (do analisando) até então não desvendado e aguarda o encontro da representação de palavra consciente dita pelo analista e guardada na mente do analisando, com a representação de objeto inconsciente para que se dê o insight. Nesta configuração o instrumento mais importante (para não dizer o único) da terapia psicanalítica é a interpretação. Creio que aqui cabe uma nota: estou apresentando um esqueleto teórico da clínica de inspiração freudiana (que não é a clínica de Freud). O preenchimento deste esqueleto cabia (e cabe) aos analistas que usam esta teoria. E cada um a preencherá à sua maneira. O que não pode faltar nesse preenchimento é o procedimento interpretativo (comportamento interpretativo).
Para manter o procedimento interpretativo e o modo espelho, o analista necessitava colocar barreiras evitando uma porosidade psíquica generalizada, pois essa propiciaria uma perigosa mistura afetiva que destruiria a possibilidade de um tratamento analítico. Com o conceito de identificação projetiva de Melanie Klein a fobia dos analistas em relação a serem afetados pelos analisandos começa a se desfazer, pois falar de identificação projetiva é falar da afetação provocada pelo analisando no analista. Aparece uma zona de porosidade ampliando-se o escopo da psicanálise. Já é possível tratar de crianças através de brinquedos. Mas a interpretação continua a ser o eixo central da análise. Quanto à porosidade ela é ainda limitada.  Ilustrando através de minha alegoria: as produções dos analisandos pulam o espaço intermediário que separa analista de analisando e forçam sua direta entrada no mundo psíquico do analista ainda refratário a esta invasão. Estou-me referindo à identificação projetiva e introjetiva; elas caem diretamente no mundo psíquico do analista que então tem a tarefa de aproveitá-las para apontar uma dinâmica relacional. A ideia não era mantê-las por um tempo no psiquismo aguardando seu amadurecimento e sim esperar uma oportunidade para, logo que possível, livrar-se daquela carga transferencial perturbadora e transformadora. Há uma abertura porosa para receber o conteúdo, mas não há a preocupação de deixá-lo amadurecer. Ele será usado para uma interpretação transferencial quando as condições estiverem propícias. Melanie Klein não se deu conta de que a identificação projetiva era um cavalo de Troia, pois só pode existir identificação projetiva e introjetiva quando o analista está apto e disposto a receber dentro de sua psique afetiva as fantasias dos analisandos, criando-se um potencial de perturbação relacional. Uma citação preciosa de H.Segal traz um esclarecimento da concepção kleiniana: “A técnica kleiniana baseia-se rígida e psicanaliticamente nos conceitos psicanalíticos freudianos ---- O papel do analista limita-se à interpretação do material do paciente e toda crítica, conselho, encorajamento, tranquilização e coisas semelhantes são rigorosamente evitadas..Poder-se-ia dizer, em consequência disso que não há lugar para o termo ‘técnica’ kleiniana?” Hanna Segal responde que diante de um material até então desconhecido da psicanálise surgiram “novas interpretações, raramente ou nunca utilizadas na técnica clássica”. A novidade que Klein e sua escola não perceberam e que veio a dar uma reviravolta na psicanálise foi o conceito de ‘tempo de maturação’, implícito na sua teoria e que estou explicitando através de um batismo. Este foi o primeiro e imperceptível passo na direção da vivencia compartilhada (covivência) e, portanto, da intersubjetividade.
Bion, a partir dos conceitos de identificação projetiva acrescenta as palavras ‘continente’ e 'conteúdo'. Ao usá-las Bion amplia a área de porosidade. É este continente que receberá a identificação projetiva. Mas este autor parece temer reificar os conceitos e não diz claramente que o continente é aquele locus do analista que acolhe as identificações projetivas do analisando. Por esta mesma razão ele não fala de tempo de maturação embora seu exemplo princeps (bebê que projeta os elementos beta na mãe que após uma elaboração os devolve como elementos alfa) deixe perceber que lá está o conceito.
Bleger se aproxima ainda mais do conceito de tempo de maturação e de modo continente: “Temos de constituir-nos em depositários fiéis da parte psicótica e atuar como pais tolerantes; damos tempo para crescer e não sobrecarregamos com problemas demasiado prematuros para o ego do paciente.” Essa citação refere-se mais particularmente ao que Bleger chama de personalidade ambígua, que nada mais é que o nosso borderline.
A obra de Winnicott tem dado, e cada vez mais, uma fundamental contribuição à difusão do modo covivencial de tratamento, acrescentando ao eixo clínico centrado na interpretação, na transferência e na contratransferência, um outro eixo clínico: a covivência, o modo continente e o tempo de maturação. Tendo vivido, vivenciado e estudado profundamente a relação mãe-filho ele colocava-se poroso na relação, especialmente nas situações em que o analisando solicitava transferencialmente a presença da Personificação da Mãe. Evidentemente esta posição transferencial mantém uma hierarquização ontológica (obs.: que nem sempre está presente na atividade terapêutica de Winnicott.) E mesmo a hierarquização era suavizada por sua sensibilidade à vida emocional dos seus analisandos. Para que se entenda melhor meu pensamento recorrerei a um símile com uma mãe real: seria uma mãe que conseguiria ser amiga sem perder a autoridade hierárquica criativa/educativa. Como todo símile este é também imperfeito, mas útil para efeito de transmissão de uma ideia.
Uma das raízes da intersubjetividade é a psicologia do self de Kohut, especialmente com seus conceitos de introspecção empática, self/objeto, transferências selfobjetais; acrescente-se a ideia de narcisismo como qualidade humana com tendência a amadurecer independentemente da sexualidade e “a ideia de que os únicos dados adequados para a compreensão psicanalítica são aqueles acessíveis por introspecção e empatia”(Peter Lessen).
SEARLES E A SIMBIOSE TERAPÊUTICA
Searles ganhou prestígio como analista de psicóticos e borderlines. Dentre suas muitas contribuições interessa-nos o seu conceito de simbiose terapêutica onde se juntam o procedimento covivencial e o modo simbiótico. O modo espelho é a expressão máxima de afastamento afetivo. O modo simbiótico-fusional é o estado máximo de intimidade e de mutualidade afetiva. O analista está, da mesma maneira que o analisando, envolvido na simbiose; exagerando pode-se dizer que já não se sabe quem está em tratamento. Embora o tratamento seja de mão dupla, a maior experiência afetivo-cognitiva do analista no que diz respeito aos fenômenos intersubjetivos fará dele o principal terapeuta e o responsável pela análise. De qualquer forma os transtornos já não são privilégio do analisando; o analista deles participa. Esta inclusão do analista nas dificuldades do par amplia consideravelmente o alcance da psicanálise tanto em extensão quanto em profundidade.
Estas ideias se coadunam com uma corrente que vem se desenvolvendo nos Estados Unidos com o nome genérico de intersubjetividade. Há muitos pensadores nesta área que concordam no fundamental, mas discordam nos detalhes. A ideia fundamental é a de um encontro de duas pessoas com intenções terapêuticas, cada uma delas trazendo as suas complexidades subjetivas que ao entrarem em relação criam um campo intersubjetivo comum onde não há lugar para hierarquias. A pergunta que se coloca é: até que ponto as duas subjetividades poderão se ajudar? Os obstáculos não podem ser ignorados. Uma ideia que aflora quase instantaneamente é de que, como todos os seres humanos, os analistas têm um inconsciente dinâmico que se vela e desvela; pode ser que na terapia a relação funcione como um modificador de dinâmicas importunas beneficiando os dois participantes; mas pode ser que não; a análise então encontra um limite. Um outro encontro intersubjetivo, com outro analista, de mesma orientação ou não, poderá abrir novas sendas. O limite será, portanto um limite relativo (contingente) que poderá ser considerado intransponível até um eventual momento feliz, que poderá acontecer ou não, em que será ultrapassado. Um recurso que poderá transformar a impossibilidade em possibilidade de ajuda psicanalítica é o uso de medicamentos. Uma adequada diminuição de ansiedade ou de depressão poderá ser o suficiente para o prosseguimento do tratamento psicoterápico psicanalítico. (Aqui fica claro que considero a psicanálise uma forma de psicoterapia. Esta formulação é uma derivação de uma fala de Winnicott: “Faço psicanálise porque é do que o paciente necessita. Se o paciente não necessita análise faço alguma outra coisa”.)
Até aqui tenho falado de limites contingentes. E os limites inerentes às próprias teorias? Eu acredito que se a psicanálise continuar a participar das transformações da subjetividade/mentalidade/cultura certamente ela sobreviverá, certamente com novas diferenças teóricas aparecendo. Chamar a essas novas teorias de psicanálise ou não, é uma questão entre esquecer nossas raízes ou sentirmo-nos como galhos de uma árvore genealógica tão fértil que deu e continuará a dar muitos e muitos frutos.
                                                       Nahman Armony       
  

           

          

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