PULSÃO  DE  MORTE

       

Fico imaginando que o que vou dizer aqui será estranho para a maioria dos ouvintes, já que falarei de uma teoria que não se utiliza da pulsão de morte para a clínica, e mais, falarei daquilo que eu próprio penso da pulsão de morte, que, neste momento, não sei exatamente o que é, embora tenha uma intuição, uma pré-percepção do que seja. Acho, neste momento da vida do CEPCOP, a minha contribuição importante, não por ser minha, mas por introduzir um corpus alienum que não deveria ser eliminado por ser um corpo estranho, mas, pelo contrário, deveria  preferencialmente, utopicamente, vir a fazer parte do acervo de experiências do CEPCOP.

        Freud ao criar o conceito de pulsão de morte o fez de um modo aparentemente titubeante, deixando aos seguidores e a si mesmo a opção de fortalecer o conceito ou deixá-lo sem uso. Nos artigos seguintes Freud, cada vez mais, fez uso do conceito, incorporando-o à teoria psicanalítica. Porém, nem todos os teóricos da psicanálise usam o conceito de pulsão de morte. Alguns preferem trabalhar a agressividade, a destrutividade, a morte, o suicídio, a auto-agressão por outras vias. Dentre estes teóricos, talvez o mais conhecido na atualidade seja Winnicott.

        Devo logo dar aqui minha concepção de teoria na área das disciplinas humanas. A teoria não expressa uma verdade. A teoria é a expressão de uma intuição, de uma filosofia de vida, de uma atitude diante da existência, mas também fruto de acontecimentos. A teoria é também um acaso/necessidade. Nós, seres humanos deste fim de século, precisamos de justificativas/organizações para aquilo que é despertado/modelado em nós pela vida e estas organizações/justificativas são as nossas teorias. Por outro lado, a teoria poderá  ser usada como leito de Procusto, uma repetição não criativa. Na minha opinião é a concepção de fenômenos transicionais, de área intermediária e conceitos afins que dão maior chance de se obter uma teorização criativa em devir na psicanálise.

        Antes de falar de Winnicott apresentarei algumas interpretações e conseqüências do conceito de pulsão de morte.

1.Pulsão de morte como o inverso da vontade de potência de Nietzsche, como desejo de retorno ao inanimado, à indiferenciação. Aqui é preciso distinguir a volta ao inanimado - definitiva e sem retorno à individualidade - do nirvana, onde há possibilidade dessa volta.

2.A pulsão de morte é uma força que perpassa o homem mas que está além do humano. É uma força cósmica que leva à dissipação, uniformização. Segundo princípio da termodinânica. No homem, ela se manifesta por um desejo de paz, de nirvana, de imobilidade e de morte.

1- O conceito acima é freudiano e está em “Além do princípio do prazer”. Em “O princípio econômico do masoquismo”, quando Freud separa prazer de nirvana, ele nos abre um caminho que permite separar o nirvana do inanimado, o nirvana da morte. Assim, dentro de minha concepção, o nirvana, a paz absoluta, a fusão com o universo ou com o outro poderiam ser vistos em seus aspectos renovadores, o que aliás não está distante da concepção de Freud. Por isto é importante distinguir o irremediável da volta ao inanimado - da morte -, do nirvana que mantém latente a individualidade, permitindo uma volta a ela. Freud também nos falou de um masoquismo primário ligado à pulsão de morte, uma vertente auto-destrutiva que só não se realiza por ser direcionada para fora sob a forma de agressividade ou por realizar uma fusão com a pulsão de vida.

2-Neste ponto, para mim, é útil o conceito de pulsão de morte. Direi como: existem pacientes deprimidos que podem ser pensados como portadores de uma pulsão de morte pura ou quase pura, pacientes que precisam da pulsão de vida para neutralizar a pulsão de morte. Pode-se pensar no analista como aquele que, pela diferença, vai introduzir na relação com o analisando a pulsão de vida. Ele poderá em um primeiro movimento se identificar com o analisando e sua depressão, para em um segundo momento sair de tal identificação, trazendo para a relação a diferença mobilizadora da pulsão de vida.

3-A pulsão de morte tem sido pensada como aquela entidade que destrói, que desfaz, para reconstruir. Neste caso a pulsão de morte seria o prelúdio da construção, da complexificação, da pulsão de vida. É preciso desconstruir para re-construir.

 

        Vejamos agora Winnicott. Ele não usa o conceito de pulsão de morte. Por quê? Creio que a teoria e a nomenclatura usadas tenham a ver com intuições, atitudes, finalidades, posicionamentos. O posicionamento de Winnicott é positivo e esperançoso. Ele acredita no homem e no porvir da humanidade. Ele é um otimista. Ele não acha que a vida e o homem possam querer destruir a vida e o homem. Usar uma teoria da pulsão de morte seria admitir um pecado original, uma maldade primordial do homem, um desejo primordial de destruição no âmago da matéria, da natureza, do psiquismo, do ser humano. Isto está em desacordo com aquilo que Winnicott é como psicanalista e como pessoa. Para ele a desesperança não é originária, mas conseqüência de uma perda de esperança.

        Mas como, em termos winnicottianos, pensar a agressividade e a destrutividade do ser humano que já se encontram no bebê?

        Winnicott fala-nos de agressividade de várias maneiras:

1- Como movimento muscular, como um “ir de encontro a”. Assim o mamar é um ato agressivo, um ato muscular, um ato violento de retirar leite de um peito.

2- Conceito de implacabilidade. O bebê quer atingir os seus objetivos e para isto será implacável. Não importa o que aconteça com o outro, mesmo porque o outro ainda não tem uma existência clara para ele. O seio, por exemplo, não é parte de uma mãe completa, mas, inicialmente, existe em si mesmo, como criação sua que ele pode, onipotentemente, destruir e construir. Nesta implacabilidade agressiva o bebê não teme destruir, não tem uma consciência ética em relação ao que seja destruição. Mais tarde ele temerá destruir  a mãe-ambiente com o seu impulso instintivo.

3- O amor porta consigo um aspecto destrutivo, de devoramento.

4- Existe uma agressividade que é conseqüência de frustração.

5- Existe uma destrutividade que é conseqüência de uma deprivação que provoca uma interrupção na continuidade de ser, e cuja finalidade é recuperar tal continuidade. A criança mente, rouba, queima para, em testando os limites, voltar a tê-los, pois voltar a ter limites é voltar a ter os braços acolhedores da mãe, da sociedade e da lei, é voltar a ter uma continuidade de ser.

 

        O ser humano em geral tem impulsos agressivos e impulsos destrutivos. Freud explica estes impulsos pela pulsão de morte. Como? Existem duas forças metabiológicas, forças que pertencem à substância. Uma delas tende à diferenciação e à construção organizada de unidades maiores, à complexificação, e outra tende à indiferenciação à desconstrução do organizado. No ser humano estas forças aparecem como pulsões: duas pulsões. Pulsão de vida e pulsão de morte. A pulsão de morte conduz o ser humano para o inanimado, para a morte. O homem luta contra a morte defletindo a pulsão de vida para fora e também associando-a à pulsão de vida (o nirvana, a paz, seria uma associação da pulsão de morte com a pulsão de vida). A deflexão da pulsão de morte é agressividade e destrutividade. Então Freud explica a agressividade e destrutividade pela pulsão de morte.

 

        De que maneira Winnicott explica a agressividade e destrutividade do ser humano e mais especialmente do bebê?

        1- Como reação à frustração. Raiva. Destruição mágica do outro que, no entanto, se mantém vivo.

        2- Fonte de energia de um indivíduo. Movimento é agressividade. Movimentos bruscos das pernas do bebê. Prazer muscular no movimento e no dar de encontro com alguma coisa. Continuidade entre este tipo de ação e a ação que exprime o ódio e o controle do ódio. Motilidade como raiz da agressividade. Parte da motilidade está associada ao amor primitivo. O restante da motilidade para ser gasto, precisa de uma oposição. Algo contra o qual fazer força “caso contrário permanecerá não experimentado, constituindo-se em uma ameaça ao bem-estar” (p.366). A pessoa busca esta oposição. O princípio da realidade está na esfera deste tipo de oposição. Poderá acontecer que esta motilidade seja gasta como oposição à invasão e não como uma oposição que se buscou. O sadismo é visto como uma erotização dos elementos agressivo-reativos o que é diferente da normalidade onde a agressão já está fundida ao amor e a agressividade manifesta-se numa agressão a uma oposição buscada. É possível concluir que se - ao tentarmos adicionar a agressividade/motilidade que ultrapassa a ligada ao amor, aquela ligada à oposição buscada, mais àquela ligada à frustração - não conseguirmos cobrir todo o quantum de agressividade, isso significa que parte da agressividade permanecerá não-usada, podendo transformar-se em sofrimento propiciador de uma posição masoquista.

        3- A agressão como componente do impulso amoroso. Devorar o seio, Comer o parceiro. Morder o corpo materno. Alimento como símbolo do corpo materno. “A agressão faz parte da expressão primitiva do amor”.

        Importância da agressão

1- Distinção entre o eu e o não-eu.        

2- Diante da destruição mágica a agressão concreta é uma realização positiva, o ódio converte-se em um sinal de civilização.

3- A destruição como necessária para a criação de um objeto percebido objetivamente, portanto fora da área de onipotência.

 

        Desenvolvimento da agressão-destruição

1- Agressão-movimento sem intenção. O prazer do movimento em si. Fase da pré-integração.

2- Na tentativa de satisfazer a necessidade aparece a “implacabilidade”. Intenção de satisfazer as necessidades do id, ou quaisquer outras, levando eventualmente à agressão intencional e à destruição não intencional, subproduto da satisfação instintual.

3- Estádio do concern: a agressão-destruição torna-se uma responsabilidade do indivíduo já que ele pode trazer conseqüências danosas ao indivíduo. Matar a Mãe-objeto é agora, matar, ao mesmo tempo, a Mãe-ambiente, já que essas duas persoficações foram unidas e constituem agora uma só e única pessoa.

 

Caso  Clínico

        Vou agora reportar-me a um tratamento de uma paciente deprimida realizado já há vários anos e do qual eu guardei alguns delineamentos gerais. Não me preocuparei, por enquanto, em  estabelecer articulações entre a teoria e a prática. Como já disse,  embora eu goste da orientação geral da teoria winnicottiana, não me sinto constrangido a referir todos os acontecimentos clínicos a ela. A clínica é muito mais ampla do que qualquer teoria poderia abarcar. Trata-se de uma posição transteórica e transdisciplinar que nem todos aceitam, mas que é a que está mais de acordo com o meu pensamento e ação.

        A paciente tinha aproximadamente 40 anos quando me procurou. Havia tentado o suicídio com um tiro no peito; imediatamente operada, salvou-se. O que eu mais me recordo de nossa dinâmica: ela se atacava para me fazer sofrer, pois, na sua fantasia inconsciente, havia uma continuidade de nossos dois corpospsiquismos. Se eu introduzisse o terceiro, mostrando sua fantasia, ela se sentia sem uma parte de si mesma e a depressão se aprofundava. Ao se aprofundar a depressão, ressurgia com mais força a fantasia de uma continuidade entre o seu corpopsiquismo e outro corpopsiquismo, fantasia esta que ela esperava realizar na sua relação comigo. Eu era a Mãe-Onipotente que ao vê-la em sofrimento a salvaria por amá-la, por sofrer com ela, por estar em continuidade psíquica com ela.

        Por outro lado, o acolhimento de sua fantasia de continuidade corpomental reduzia a sua depressão trazendo-lhe esperanças onipotentes que, na medida em que não se cumpriam, lançavam-na novamente no poço desesperador da depressão.

        A estratégia que usei foi a seguinte: eu acolhia a sua necessidade de simbiose sofredora até um ponto em que eu próprio ficava próximo da exasperação (ela, de alguma maneira me culpava de seu sofrimento. Eu estava destinado a salvá-la de seu sofrimento. Esta obrigação não cumprida fazia-a culpar-me ainda mais). Neste momento eu suavemente, me retirava do dinamismo e ela então, diante da ameaça de solidão absoluta, e já em parte satisfeita com uma gratificação parcial de seu dinamismo - coisa que ela provavelmente nunca havia encontrado - recuava, interrompendo sua queda no poço da depressão, e mesmo, tentando galgar as saliências da parede que a levariam ao ar livre. Este era um momento em que eu podia falar alguma coisa destes acontecimentos intersubjetivos.

        Havia pois uma simbiose que chamei simbiose de sofrimento. Eu deveria sentir o seu sofrimento. Mas havia também um pedido de atendimento a suas necessidades afetivas primitivas que eram, na medida do possível, atendidas. Este atendimento foi fundamental para a melhora da analisanda.

        Devo dizer que em nenhum momento ela deixou de tomar uma medicação pesada, composta de anti-depressivos, anti-psicóticos e ansiolíticos, medicação que já não fazia efeito. Devo também dizer que, quando voltou à sua cidade de origem, ela tinha apenas saído do patamar depressivo que a impedia de viver. A necessidade de medicação e de psicoterapia era imperiosa e ela continuou seu tratamento lá. Creio que posso dizer ter ela vivido e assimilado um tipo de relação afetiva que lhe deu algum suporte básico para continuar a viver.

        Este tratamento se realizou há vários anos e até hoje, de vez em quando, ela me telefona para contar alguma coisa. Por vezes ela me relata melhoras e por vezes pioras. No geral, tenho a impressão que ela está em processo lento de melhora, com idas e vindas, mas isto pode ser mais um desejo meu que a realidade.

        Mesmo tendo tentado o suicídio, jamais pensei nela como tendo um desejo primário de morte. Não estando aderido a este pensamento, não foi difícil pensar na morte como um castigo para a Personificação Significativa, para a Mãe-Boa. Ela morreria sim, mas continuaria viva no corpo daquele que, por continuidade com ela, a portava, e que a faria viver em eterno sofrimento unário/dual. Sua morte seria sua garantia de imortalidade em sofrimento. Sofrimento e imortalidade como qualidades solidárias. Só haveria imortalidade no sofrimento. Por outro lado a morte era também a liberação de um sofrimento insuportável. Esta visão de morte não parece se coadunar com o conceito de pulsão de morte integralmente. A não ser que pensemos que a complexidade - o que significa dizer, a individualidade - é insuportável, e que quando ela se torna insuportável queremos mais é voltar ao inanimado, à indiferenciação, tal como Freud coloca quando fala do fragmento de substância que se torna viva mas que logo volta à não-vida. Em termos de psiquê, a complexidade, a organização, a individualidade pensa em sua própria dissolução nos extremos do sofrimento. Mas se nestes extremos a matéria assim se manifesta, como não pensar que esta é uma manifestação existente em todos os níveis?

        Depois de toda esta especulação prefiro deixar em aberto a questão da pulsão de morte para mim. Não como algo ainda não resolvido, mas como uma posição paradoxal que ao mesmo tempo aceita e não aceita a pulsão de morte como conceito teórico próximo à clínica - que é como entendo que os conceitos teóricos devam agir. Eu diria que, nesse momento de minha vida, a não pulsão de morte tem um peso maior que a pulsão de morte. Pesa mais em mim a concepção de que o homem é movido pela vida, pela vontade de potência nietzschiana e que a morte é uma força reativa, uma vontade negativa, que tem em Winnicott um correspondente: o falso self. O verdadeiro self é para Winnicott o correspondente à pulsão de vida pois o self tende à realização e à expansão.

 

Nahman  Armony

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