Aqui nos encontramos com uma música muito especial; a música da
voz humana em seus timbres, inflexões, delicadezas, ritmos, vigor,
expressividade. A mãe que emite um oceano de sons maviosos, onde palavras são
minúsculas ondulações, pequenos navios perdidos numa imensidão inefável,
realiza um predestinado dueto no retorno musical de seu pequeno ser dependente.
Obedecendo sua fatal vocação, a música acrescenta novas embarcações ao mar
sonoro; e então este mar, este oceano, coalha-se de pequenos pontos que servem
à nossa comunicação. Palavras, frases, sentenças, discursos embalados por
ventos musicais, pela música das ondas, adquirem mais e mais significações,
sutilizam-se impregnando-se destes ventos, embalos, ondas, movimentos,
incorporando a música universal, incorporando-se à música universal.
O dueto inicial que, em fluindo, transforma-se em afinada
polifonia, poderá sofrer, nas vicissitudes do desenvolvimento humano, paradas,
distorções, desvios, recuos, constrições. É tarefa do psicanalista recuperar a
fluência musical da vida, revolvendo, se preciso for, os acordes inaugurais da
existência, o choro, a dor, o deslumbramento primevos, onde as palavras -
pequenos navios - são liliputianas ondulações criadas e tragadas pelo mar do inefável. Se preciso for, diante do
borderline, há que entoar os cantos primitivos, o ritmo originário do coração e
respiração, o ruído do regato e das tempestades. O analista terá como musa -
aquela que o transportará para uma região atemporal de origem - a mãe que fala
musicalmente com o seu bebê, esculpindo sons de inexcedível doçura, de
maviosidade extraterrena, produzindo um mundo de mágico encantamento, uma ilha,
um ovo cercado e penetrado por música. É lá que as coisas se passam com os
borderline. Lá encontramos a dor pungente do 1o movimento da Sonata ao Luar, as expansões de
amor, ternura e êxtase do Concerto para Violino e do "Romeu e
Julieta" de Tchaikovsky, a explosão de alegria da Ode da 9a. sinfonia de
Beethoven; lá está a máxima beatitude e o desespero supremo. Lá desencadeiam-se
ternuras e ódios, tempestades e calmarias. O mar paradisíaco encrespa-se, as ondas alteiam-se e despencam formando um
côncavo, um oco faminto, devorador, capaz de engolir as embarcações e seus
seres - o oceano profundo, trágico e denso, brame; a díada primeva está em face
de um poderoso buraco negro, que atrai e tritura. É com estas paixões, as mais
primitivas, que o analista se defronta e só a mobilização de uma sensibilidade,
um desejo, uma palavra e um amor primitivos - um primitivo que remonta aos
primeiros tempos de vida - poderá servir de guia para o seu proceder.
Mas, no encontro com o borderline, não só situações psicóticas se
expõem ao analista. Também as neuróticas se fazem presentes. Qual a sua música?
Pensemos em Mozart, um mestre do classicismo que sublima, com suas
formas perfeitas e em suas formas perfeitas, as intensidades e as pulsões,
permitindo que delas se evole apenas o aroma, extrato depurado em serena
beleza; o apolíneo reina ainda nos mais fortes e intensos momentos das
sinfonias. Somos delicadamente impregnados pelas forças que fluem através de
sua amálgama com a forma. É também brandamente que os conflitos, fantasias e
emoções de nossos analisandos em estado de neurose nos afetam. As tempestades
d’alma que campeiam no inconsciente, passam pelo filtro das representações e
das defesas e se nos apresentam mitigadas, estruturadas, um sopro do tufão
caótico original. A palavra aqui torna-se mais diferenciada, ganha contornos
mais nítidos, menos imprecisos. Esta é uma região mais confortável mas prenhe
de perigos; aqui exerce-se a atração da palavra dura, distanciadora,
dicotomizadora, científica, precisa, rígida, à qual Pannikar20
chamou de designativa. Portanto há que tomar cuidado com o classicismo. A
preocupação com a forma e com a formalização pode gerar uma dicotomia radical,
onde palavra e experiência vivida se
separam, criando um vazio afetivo, uma relação problemática com a criatividade
e a vida.
Tenho um disco curioso. Dois concertos de violino, um em cada face
do disco. Ambos de Haydn: um do genial Joseph Haydn e outro de seu irmão
Michael Haydn. Ambos tocados por Robert Gerle. Mas, que diferença! Em Joseph
Haydn a forma está repleta de um sentimento volátil que, por volteios e
melindres, galga escarpas, percorre aléias, descobre cantos e recantos, mansos
e remansos, inventa climas, sutiliza madeiras e metais, mantendo um equilíbrio
múltiplo entre variação e constância. Desfilam diante de nossos ouvidos
jóias de ourivesaria, talhadas em infinitos detalhes, jóias a serem viradas e
reviradas em todos os seus quadros e ângulos para que sua sutil beleza possa
ser descoberta e redescoberta até uma saciedade impossível. Estamos diante da
Palavra Real de Pannikar.[1] Outra, a música de Michael
Haydn. Ela já nasce saciada; nela tudo é previsível, convencional, uma larga
estrada percorrida em linha reta com paisagens de estúdio onde mesmo
acelerações e curvas não desfazem a monotonia de formas vazias, de melodias sem
volutas, harmonias sem inventividade, orquestração presa à materialidade dos
instrumentos musicais - palavra designativa.
Teríamos aqui duas faces da linguagem. Uma, melodia inventiva,
modulante, surpreendente, sonoridade que penetra na alma, coração e mente e
outra convencional, burocrática, intelectualizada, formal. Numa face, palavras
possuidoras de alma sonora mobilizam, emocionam, transmutam; na outra, termos
despojados de alma permanecem vagando no
limbo da racionalidade estéril.
Mozart, clássico dos clássicos, tal como Haydn, embebe suas formas
musicais perfeitas em fluidos originários. Mas mesmo Mozart, Haydn e neuróticos
perfeitos são por vezes acossados por
uma emoção desbordante; o sentimento ultrapassa a própria forma e a estética
apolínea hesita diante de uma
intensidade desbordante. A Sonata em Mi menor para violino e piano, Köchel 304,
em dois movimentos, de Mozart, escrita após a morte de sua mãe, deixa
transparecer profunda tristeza e imensa nostalgia. Nos neuróticos as
representações e defesas mal conseguem vincular sentimentos profundos de
desvalimento, medo, amor, ódio, provocando um desequilíbrio no tranqüilo curso
da análise.
Mas estamos aqui falando de um neurótico ideal, talvez um
neurótico obsessivo sem sintomatologia florida; falando mais de sintomas
primários de defesa que de sintomas de conciliação, mais de uma caracterologia
que de formações sintomáticas. Um neurótico ideal, cujo ego absorveria e
simbolizaria toda a atividade pulsional do inconsciente. Portanto um neurótico
absurdamente normal, um ser ideal a pairar acima de nosso imperfeito mundo
sublunar.
Mozart, mestre do classicismo, impregna suas criações irretocáveis
com os rios primordiais de suas experiências mais remotas. Habitante do mundo
celestial platônico, gera formas perfeitas, produzindo uma excelsa música das
esferas.
Beethoven, caminhando a passos largos para a modernidade, quebra a
compostura dos salões nobiliárquicos, introduzindo a inquietude, a rebeldia, o
sarcasmo, abalando a tranqüila continuidade das consciências e das seqüências
sinfônicas. Beethoven brinca, agride, desconcerta, violenta, desafia a forma,
criando a música do homem moderno:
heróico, ruminativo, idealista, preso pela má-consciência, algemado por
modelos, atormentado por um ideal-de-ego exigente e por um superego cruel e
implacável. Um superego que tem de dar conta de singularidades que pressionando
as estruturas rígidas formais, pessoais, sociais, realizam,constantemente,
aparições intempestivas.
Em Beethoven a constância do imprevisível; uma pausa súbita, uma
querela inopinada, uma dissonância sem preparação e sem resolução, uma galhofa,
um jogo bravio, afável ou brincalhão de temas confluentes, uma repentina
delicadeza, um fortíssimo, contrastes extremos e o que mais se possa pensar de
vivo, mutável, inesperado. A emoção ultrapassa a forma clássica criando novas
formas de expressão, construções singulares de grande plasticidade, mais
acordes às mutações da modernidade. O analista discute o setting, o valor da interpretação e da palavra, desmistificando o
enquadramento rígido do classicismo psicanalítico, deixando emergir, aparecer,
surgir formas de comunicação sutis, aceitando a identificação e a empatia que
irrompem na interação com o borderline como modos válidos de comunicação,
relacionamento e conhecimento, afinando-se assim com as modificações do entorno
social/pessoal. A psicanálise expande-se ao infantil, ao institucional, à
família, ao corpo, ao casal, ao social, superando seu próprio formalismo e
construindo novas formas, mais pertinentes à contemporaneidade. Aprende-se que
a elasticidade das formas é fundamental para atender à variedade e
multiplicidade de uma sociedade em processo de acelerada transformação.
Beethoven realiza um percurso que, do
clássico ao moderno, passa por um
romantismo modulante, desemboca no cromatismo de Wagner, evolui para o
dodecafonismo e o atonalismo para finalmente, perdendo seus parâmetros, ganhar
uma liberdade pós-moderna onde, em princípio, tudo está de antemão validado: do
modal ao atonal, dos mais primitivos instrumentos às realizações
eletroacústicas, da forma sonata às formas livres.
É neste mundo complexo e vário que - penetrados
pela trepidante música da vida hodierna, entoando-a com nossa própria voz,
amalgamando-a às nossas palavras - produzimos uma subjetividade com seus modos
próprios de comunicação e relacionamento.
Nahman Armony
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