PSICANÁLISE - UMA ALEGORIA MUSICAL

                  Tendemos hoje a dizer que  o homem está imerso na fala. Pois bem, perdendo as pernas do passo da história, mas ganhando as asas de vôo de um pensamento que não teme a poesia, diremos que tanto  fala quanto  homem estão mergulhados em música. Música do universo, música da natureza, música da vida, música da civilização, música harmoniosa dos rios, ventos, folhas, cachoeiras, música assustadora dos vulcões, incêndios, tufões, tempestades, música rascante, ferruginosa e dissonante do tráfego, construções, consumo, competição, música eletrônica da pós-modernidade, música primeva que compomos e ouvimos junto à mãe, no nascimento do primeiro choro e nos gemidos de dor e gorjeios de felicidade que irrompem no parto.

Aqui nos encontramos com uma música muito especial; a música da voz humana em seus timbres, inflexões, delicadezas, ritmos, vigor, expressividade. A mãe que emite um oceano de sons maviosos, onde palavras são minúsculas ondulações, pequenos navios perdidos numa imensidão inefável, realiza um predestinado dueto no retorno musical de seu pequeno ser dependente. Obedecendo sua fatal vocação, a música acrescenta novas embarcações ao mar sonoro; e então este mar, este oceano, coalha-se de pequenos pontos que servem à nossa comunicação. Palavras, frases, sentenças, discursos embalados por ventos musicais, pela música das ondas, adquirem mais e mais significações, sutilizam-se impregnando-se destes ventos, embalos, ondas, movimentos, incorporando a música universal, incorporando-se à música universal.

O dueto inicial que, em fluindo, transforma-se em afinada polifonia, poderá sofrer, nas vicissitudes do desenvolvimento humano, paradas, distorções, desvios, recuos, constrições. É tarefa do psicanalista recuperar a fluência musical da vida, revolvendo, se preciso for, os acordes inaugurais da existência, o choro, a dor, o deslumbramento primevos, onde as palavras - pequenos navios - são liliputianas ondulações criadas e tragadas pelo  mar do inefável. Se preciso for, diante do borderline, há que entoar os cantos primitivos, o ritmo originário do coração e respiração, o ruído do regato e das tempestades. O analista terá como musa - aquela que o transportará para uma região atemporal de origem - a mãe que fala musicalmente com o seu bebê, esculpindo sons de inexcedível doçura, de maviosidade extraterrena, produzindo um mundo de mágico encantamento, uma ilha, um ovo cercado e penetrado por música. É lá que as coisas se passam com os borderline. Lá encontramos a dor pungente do 1o movimento da Sonata ao Luar, as expansões de amor, ternura e êxtase do Concerto para Violino e do "Romeu e Julieta" de Tchaikovsky, a explosão de alegria da Ode da 9a. sinfonia de Beethoven; lá está a máxima beatitude e o desespero supremo. Lá desencadeiam-se ternuras e ódios, tempestades e calmarias. O mar paradisíaco encrespa-se,  as ondas alteiam-se e despencam formando um côncavo, um oco faminto, devorador, capaz de engolir as embarcações e seus seres - o oceano profundo, trágico e denso, brame; a díada primeva está em face de um poderoso buraco negro, que atrai e tritura. É com estas paixões, as mais primitivas, que o analista se defronta e só a mobilização de uma sensibilidade, um desejo, uma palavra e um amor primitivos - um primitivo que remonta aos primeiros tempos de vida - poderá servir de guia para o seu proceder.

Mas, no encontro com o borderline, não só situações psicóticas se expõem ao analista. Também as neuróticas se fazem presentes. Qual a sua música?

Pensemos em Mozart, um mestre do classicismo que sublima, com suas formas perfeitas e em suas formas perfeitas, as intensidades e as pulsões, permitindo que delas se evole apenas o aroma, extrato depurado em serena beleza; o apolíneo reina ainda nos mais fortes e intensos momentos das sinfonias. Somos delicadamente impregnados pelas forças que fluem através de sua amálgama com a forma. É também brandamente que os conflitos, fantasias e emoções de nossos analisandos em estado de neurose nos afetam. As tempestades d’alma que campeiam no inconsciente, passam pelo filtro das representações e das defesas e se nos apresentam mitigadas, estruturadas, um sopro do tufão caótico original. A palavra aqui torna-se mais diferenciada, ganha contornos mais nítidos, menos imprecisos. Esta é uma região mais confortável mas prenhe de perigos; aqui exerce-se a atração da palavra dura, distanciadora, dicotomizadora, científica, precisa, rígida, à qual Pannikar20 chamou de designativa. Portanto há que tomar cuidado com o classicismo. A preocupação com a forma e com a formalização pode gerar uma dicotomia radical, onde  palavra e experiência vivida se separam, criando um vazio afetivo, uma relação problemática com a criatividade e a vida.

Tenho um disco curioso. Dois concertos de violino, um em cada face do disco. Ambos de Haydn: um do genial Joseph Haydn e outro de seu irmão Michael Haydn. Ambos tocados por Robert Gerle. Mas, que diferença! Em Joseph Haydn a forma está repleta de um sentimento volátil que, por volteios e melindres, galga escarpas, percorre aléias, descobre cantos e recantos, mansos e remansos, inventa climas, sutiliza madeiras e metais, mantendo um equilíbrio múltiplo entre  variação e  constância. Desfilam diante de nossos ouvidos jóias de ourivesaria, talhadas em infinitos detalhes, jóias a serem viradas e reviradas em todos os seus quadros e ângulos para que sua sutil beleza possa ser descoberta e redescoberta até uma saciedade impossível. Estamos diante da Palavra Real de Pannikar.[1] Outra,  a música de Michael Haydn. Ela já nasce saciada; nela tudo é previsível, convencional, uma larga estrada percorrida em linha reta com paisagens de estúdio onde mesmo acelerações e curvas não desfazem a monotonia de formas vazias, de melodias sem volutas, harmonias sem inventividade, orquestração presa à materialidade dos instrumentos musicais - palavra designativa.

Teríamos aqui duas faces da linguagem. Uma, melodia inventiva, modulante, surpreendente, sonoridade que penetra na alma, coração e mente e outra convencional, burocrática, intelectualizada, formal. Numa face, palavras possuidoras de alma sonora mobilizam, emocionam, transmutam; na outra, termos despojados de alma permanecem vagando  no limbo da racionalidade estéril. 

Mozart, clássico dos clássicos, tal como Haydn, embebe suas formas musicais perfeitas em fluidos originários. Mas mesmo Mozart, Haydn e neuróticos perfeitos são  por vezes acossados por uma emoção desbordante; o sentimento ultrapassa a própria forma e a estética apolínea hesita diante de  uma intensidade desbordante. A Sonata em Mi menor para violino e piano, Köchel 304, em dois movimentos, de Mozart, escrita após a morte de sua mãe, deixa transparecer profunda tristeza e imensa nostalgia. Nos neuróticos as representações e defesas mal conseguem vincular sentimentos profundos de desvalimento, medo, amor, ódio, provocando um desequilíbrio no tranqüilo curso da análise.

Mas estamos aqui falando de um neurótico ideal, talvez um neurótico obsessivo sem sintomatologia florida; falando mais de sintomas primários de defesa que de sintomas de conciliação, mais de uma caracterologia que de formações sintomáticas. Um neurótico ideal, cujo ego absorveria e simbolizaria toda a atividade pulsional do inconsciente. Portanto um neurótico absurdamente normal, um ser ideal a pairar acima de nosso imperfeito mundo sublunar.                                  

Mozart, mestre do classicismo, impregna suas criações irretocáveis com os rios primordiais de suas experiências mais remotas. Habitante do mundo celestial platônico, gera formas perfeitas, produzindo uma excelsa música das esferas.

Beethoven, caminhando a passos largos para a modernidade, quebra a compostura dos salões nobiliárquicos, introduzindo a inquietude, a rebeldia, o sarcasmo, abalando a tranqüila continuidade das consciências e das seqüências sinfônicas. Beethoven brinca, agride, desconcerta, violenta, desafia a forma, criando a música do homem moderno:  heróico, ruminativo, idealista, preso pela má-consciência, algemado por modelos, atormentado por um ideal-de-ego exigente e por um superego cruel e implacável. Um superego que tem de dar conta de singularidades que pressionando as estruturas rígidas formais, pessoais, sociais, realizam,constantemente, aparições  intempestivas.

Em Beethoven a constância do imprevisível; uma pausa súbita, uma querela inopinada, uma dissonância sem preparação e sem resolução, uma galhofa, um jogo bravio, afável ou brincalhão de temas confluentes, uma repentina delicadeza, um fortíssimo, contrastes extremos e o que mais se possa pensar de vivo, mutável, inesperado. A emoção ultrapassa a forma clássica criando novas formas de expressão, construções singulares de grande plasticidade, mais acordes às mutações da modernidade. O analista discute o setting, o valor da interpretação e da palavra, desmistificando o enquadramento rígido do classicismo psicanalítico, deixando emergir, aparecer, surgir formas de comunicação sutis, aceitando a identificação e a empatia que irrompem na interação com o borderline como modos válidos de comunicação, relacionamento e conhecimento, afinando-se assim com as modificações do entorno social/pessoal. A psicanálise expande-se ao infantil, ao institucional, à família, ao corpo, ao casal, ao social, superando seu próprio formalismo e construindo novas formas, mais pertinentes à contemporaneidade. Aprende-se que a elasticidade das formas é fundamental para atender à variedade e multiplicidade de uma sociedade em processo de acelerada transformação. Beethoven realiza um  percurso que, do clássico ao moderno, passa por um  romantismo modulante, desemboca no cromatismo de Wagner, evolui para o dodecafonismo e o atonalismo para finalmente, perdendo seus parâmetros, ganhar uma liberdade pós-moderna onde, em princípio, tudo está de antemão validado: do modal ao atonal, dos mais primitivos instrumentos às realizações eletroacústicas, da forma sonata às formas livres.

É neste mundo complexo e vário que - penetrados pela trepidante música da vida hodierna, entoando-a com nossa própria voz, amalgamando-a às nossas palavras - produzimos uma subjetividade com seus modos próprios de comunicação e relacionamento.
 
                                        Nahman Armony




[1] PANNIKAR, R., 1979.

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