2- POSTURAS TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA CLÍNICA

POSTURAS TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA CLÍNICA

 

Parte 2

O comportamento interpretativo - Postura espelho

 
 
          A nomeação postura-espelho deriva-se de uma frase de Freud (1912 que se tornou famosa: "O médico deve ser opaco aos seus clientes e como um espelho não mostrar-lhes nada exceto o que lhe é mostrado"(p.157). Esta posição, olhada de certo ponto de vista, levaria o terapeuta a adotar uma atitude onipotente, negando os seus sentimentos e fantasias e tornando-o um 'devolutor de material', pouco cuidadoso, sem maior compreensão ou sutileza. Poderíamos então, talvez inspirados em Birman (1984), tomar esta frase como um eco de um período em que "...o psicanalista funcionaria como alguém inteiramente analisado, que realizou um processo analítico do qual nada restou de insólito e de não representável. O psicanalista seria, portanto, a própria imagem da razão absoluta recuperada..."(p.16). "...o terapeuta era portador de um código absoluto, dotado de uma concepção racional do processo interpretativo, que lhe caberia aplicar para o desvendamento do sentido estruturado nos sintomas. Mesmo com a descoberta da atividade fantasmática, que relativizou a teoria traumática da neurose, não se transformou imediatamente este modelo da prática psicanalítica."(p.32). Se este modelo pertence ao passado por que falar dele? Birman dá-nos a resposta: "Por mais que possam nos espantar as linhas mestras sublinhadas no esboço de sua caricatura, sem dúvida, se observarmos o nosso campo psicanalítico poderemos assinalar como este modelo não é tão estranho quanto possa parecer à primeira vista. Este modelo é muito mais presente e difundido do que possa inicialmente aparecer"(ibid, p.17). Voltemos agora à frase de Freud sobre o espelho. Uma leitura onipotente deste trecho pode ter a ver com uma certa ambiguidade de Freud. É possível com nos textos sobre técnica tenham penetrado fragmentos de uma atitude pretérita. Ou que estivesse ainda em curso um processo de transformação. Sabemos quão difícil é superar o passado. De qualquer forma, o uso inadequado, onipotente, da postura-espelho pode ser compreendido, na atualidade, primeiro, pela tendência que têm os analistas de repetir resumidamente a história da psicanálise e segundo, pela necessidade que permanece em alguns. A frase acima presta-se admiravelmente bem para a racionalização de uma atitude defensiva em que o terapeuta se coloca em uma posição onipotente-intocável. As palavras do cliente batem na superfície espelhada do analista e voltam como se fossem "boomerangs". O terapeuta não permite que elas o penetrem, não se deixa tocar em sua intimidade. A devolução tende a ser imediata. Esta atitude defensiva encontra um reforço em um outro parágrafo de Freud (1912): "Não posso aconselhar insistentemente demais os meus colegas a tomarem como modelo, durante o tratamento psicanalítico, o cirurgião, que põe de lado todos os sentimentos, até mesmo a solidariedade humana, e concentra suas forças mentais no objetivo único de realizar a operação tão competentemente quanto possível...A justificativa para exigir esta frieza emocional no analista é que ela cria condições mais vantajosas para as ambas as partes: para o médico uma proteção desejável para sua própria vida emocional, e, para o paciente, o maior auxilio que podemos hoje dar."(p. 153). Aí estão todos os ingredientes para uma mistura defensiva: pedaço de pau ou pedra de gelo raciocinante, superfície lisa, polida, brilhante e impenetrável, máscara rígida, nua, sem expressão, que nada deixa perceber de si, insensibilidade, impenetrabilidade, incógnito. Resultado: um terapeuta que se considera possuidor de um código infalível, que não empatiza nem se identifica; um terapeuta com uma atitude intelectual que se defende das perturbações nele introduzidas pelo cliente devolvendo indiscriminadamente o material apresentado; um terapeuta que interpreta em excesso, ou, reativamente, pouco ou nada fala. Em contrapartida temos um cliente afogado em suas próprias produções por não ter encontrado um escoadouro na compreensão de outro ser humano; ele então se cala, guarda para si o potencialmente dizível para não ser esmagado e fragmentado pelo inaudível. Nesta pantomima, o passo seguinte é um terapeuta desgostoso, interpretando as 'resistências' do cliente, ou não as interpretando mas delas se lamentando. Reação terapêutica negativa? Entramos em um beco sem saída, em uma armadilha produzida pelo mal-uso da postura-espelho. A saída, nós a encontramos no próprio Freud. Não só no que ele próprio escreveu e que modula a citações anteriores, como também no conhecimento de quem foi o homem Freud, trazido pelo testemunho escrito de clientes seus. Vejamos o que Freud (1912) nos diz: "...o médico deve colocar-se em posição de fazer uso de tudo o que lhe é dito para fins de interpretação e identificar o material inconsciente oculto, sem substituir sua própria censura pela seleção de que o paciente abriu mão. Para melhor formulá-lo: ele deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente... Mas se o médico quiser estar em posição de utilizar seu inconsciente desse modo, como instrumento de análise, deve ele próprio preencher determinada posição psicológica em alto grau. Ele não pode tolerar quaisquer resistências em si próprio que ocultem de sua consciência o que foi percebido pelo inconsciente"(p. 154). Ora, temos aqui um terapeuta não mais impenetrável; ao contrario, deverá estar permeável às produções do cliente até o ponto de se deixar tocar no mais íntimo de si mesmo: seu inconsciente. Ainda mais: deverá ser suficientemente sensível para transformar as obscuras sensações inconscientes em um pensamento articulado e então separar o que a ele pertence e o que é território do analisando. Atingida esta meta poderá cuidar de apenas interpretar o inconsciente do analisando, sem revelar o seu próprio. O momento da interpretação é o momento privilegiado do funcionamento em espelho.
      Para que todo esse processo ocorra precisamos de um terapeuta sensível. Como então explicar a recomendação de frieza? Esta noção deve também ser modulada: o pleno desenvolvimento das fantasias e afetos do terapeuta perturbaria de tal forma a sua serenidade que ele não poderia mais exercer uma ação terapêutica. Porém uma inibição completa de tais fantasias e afetos o impediria de compreender o que se passa com o cliente. Deve-se, pois, permitir que eles ganhem suficiente corpo para que o analista tenha notícias do que está acontecendo consigo. A sensibilidade é, portanto, necessária, mas o desenvolvimento dos afeto e fantasias decorrentes deverão se limitados a uma sinalização. Este modelo é antigo em Freud. Aparece no Projeto (1895) em referência à dor e às relações entre processo primário e secundário; na Interpretação dos Sonhos (1900) quando coloca a necessidade de inibição do desprazer para que a ideia possa ser investida. Vejamos a frase correspondente: "Por conseguinte o pensamento tem de visar a libertar-se cada vez mais da regulação exclusiva pelo princípio do desprazer e a restringir o desenvolvimento do afeto na atividade do pensamento ao mínimo exigido para agir como sinal."(p.641). Reaparece em 'Inibições, Sintomas e Ansiedade' (1926) como ansiedade-sinal evocada pelo ego diante de uma perspectiva de perigo (p.187). Também sobre o incógnito há algo a ser dito: como Lipton (1977) nos mostrou, esta recomendação refere-se exclusivamente ao momento do trabalho analítico. Fora destas ocasiões, Freud se comportava simplesmente como o homem que era. Existem alguns fatos bastante divulgados tais como: a refeição oferecida ao 'Homem dos Ratos'; a ajuda pecuniária que Freud prestou ao 'Homem dos Lobos'; a interrupção de uma sessão para brindar um insight obtido; o presente de suas obras oferecidas a um analisando, etc. Mesmo no momento da terapia Freud fazia comentários a respeito de si próprio. "Freud me contou - diz-nos o homem dos lobos - que acabava de receber a noticia que seu filho menor havia machucada uma perna enquanto esquiava, mas que felizmente a lesão era leve e não havia perigo de dano permanente. Freud continuou dizendo que de seus três filhos o menor era o mais semelhante a ele por seu caráter e temperamento. Mais adiante Freud voltou a falar de seu filho menor. Ele teria querido ser pintor, mas que depois havia abandonado a ideia para dedicar-se à arquitetura." (Gardiner, 1971, p.169). Blanton (1975) traz-nos também o seu testemunho: "Falei de dinheiro e de meus problemas financeiros, dizendo que tenho vinte mil dólares. - Quando eu tinha a sua idade não tinha tanto."(p.7).
        "Eu solicitei um dia a Freud - conta-nos Kardiner (1978) - que falasse como se via como analista. 'Estou contente que você tenha-me proposto esta questão; para falar francamente os problemas terapêuticos não mais me interessam. Eu sou atualmente uma pessoa muito impaciente. Eu sofro uma série de handicaps que me impedem de ser um grande analista. Entre outras eu sou demasiadamente um pai. Em segundo lugar ocupo-me de questões teóricas; nas ocasiões que se me apresentam para trabalhar eu trato mais de desenvolver minha teoria que de questões de terapia. Em terceiro lugar eu não tenho paciência de ficar com uma pessoa por longo tempo. Eu me canso dela e prefiro expandir minha influência'." (p. 103). O incógnito fica assim confinado ao exato instante da interpretação, quando o inconsciente do terapeuta não se deve revelar, e não mais. Finalmente, mais duas situações: "O único que posso dizer é que em minha análise com Freud eu me sentia mais na situação de colaborador que de paciente; sentia-me como um companheiro mais jovem de um explorador experimentado que embarca no estudo de um território novo e recém-descoberto."(Gardiner, 1971, p.174). "Em todos os momentos parecia estar próximo do que eu estava dizendo. Eu sentia que ele estava interessado, que estava recebendo o que eu lhe dava. Não havia esse distanciamento frio que, segundo eu imaginava, era a atitude que o analista deveria ter."(Blanton, 1975, p.3). [Trata-se da primeira sessão de Blanton com Freud].
       Depois de tudo isto visto podemos fazer um pequeno resumo da postura-espelho assinalando os seus pontos essenciais: o terapeuta permite que o seu Ic. seja alcançado pelas produções do cliente evitando colocar barreiras defensivas, mediante a adoção da "atenção flutuante". Com isso deflagram-se no terapeuta sentimentos, afetos, emoções e fantasias, os quais deverão ficar no limite de indicadores; estes serão usados para a compreensão do cliente; esta compreensão se traduzirá em uma ação terapêutica referida à vida psíquica do paciente; é apenas neste momento e com esta intenção que o terapeuta procurará ser frio e espelhante. A postura especular é aquela que, dentro do comportamento interpretativo, possibilita o menor envolvimento emocional do terapeuta. Mesmo deixando-se tocar em seu inconsciente, mesmo permitindo o afloramento de afetos e fantasias, estas situações podem ser logo resolvidas, já que o cliente neurótico não necessita vitalmente de um continente para depositar suas produções psíquicas. Fica assim o terapeuta rapidamente liberado das alterações emocionais que a relação pode provocar, pois não lhe é necessário 'carregar' consigo com mais tempo aquilo que pertence ao cliente. Esta situação só é possível diante de um ego bem constituído do neurótico, que, por isso mesmo, é capaz de realizar um spliting: observar-se a si mesmo, fazendo uma crítica racional e objetiva de suas fantasias, de seus sentimentos, bem como das ações deles resultantes. Não necessita, pois, do analista como um ego auxiliar. Pode-se assim estabelecer uma 'relação de tarefa' diferentemente do borderline e do psicótico que necessitam de uma 'relação de depositação'. A aliança terapêutica pode ser mantida mesmo nos momentos mais conturbados da relação. O cliente tem permanentemente a possibilidade de enxergar o papel simbólico-social do analista por mais intensos que sejam os seus sentimentos transferenciais. A capacidade de suportar a frustração, a solidão, a ausência e as diferenças é suficiente para que os aspectos simbióticos da relação não ganhem proeminência permanecendo na obscuridade: o neurótico não necessita de uma principalidade e permanência maior na relação de depositaçao. Por isto tudo, o terapeuta não se vê solicitado a sair da postura-espelho.
       Doolittle (1978), uma analisanda de Freud, reproduz uma fala de seu analista: "É preciso que lhe diga (você foi franca comigo e eu serei com você), eu não gosto de ser a mãe na transferência. Isto sempre me surpreende e choca um pouco." (p.65). Esta fala, articulada com aquela anterior, reportada por Kardiner, onde Freud se declara 'demasiadamente um pai', são sugestivas de um elo entre a personalidade do criador da psicanalise e a postura-espelho. Confrontado com a postura-continente, evocadora de uma função materna, a postura-espelho se nos apresenta ligada à função paterna. A postura-continente não foi desenvolvida por Freud, mas por alguns de seus discípulos que valorizaram as situações pré-edípicas, aprofundando a sua compreensão.  
 
 

        

  
      
 
 
 
                  

   



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