3- POSTURAS TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA CLÍNICA

III

Comportamento interpretativo - postura continente

            Muito antes da postura-continente poder reconhecer-se como tal, surgem na literatura psicanalítica elementos teóricos que a ela conduzem. Estes elementos acumulam-se inadvertidamente na psicanálise e se fôssemos percorrer toda a cadeia ideativa desta noção, certamente nós nos perderíamos no inícios da psicanálise. O momento arbitrário escolhido para introduzir-me na história da postura-continente é aquele em que Melanie Klein cunha a noção de 'identificação projetiva'. Em resumo, a identificação projetiva é o mecanismo através do qual uma pessoa fantasia inconscientemente colocar no interior de outras partes más e/ou boas destacadas do próprio eu, com a finalidade de agredir, controlar, presentear. (Klein, 1946). Todavia nem este conceito, nem o seu correlato 'contraidentificação projetiva' introduziram na teoria kleiniana a ideia de um 'continente'. Segal (1967) ao resumir a técnica kleiniana, mostra-se mais realista que o rei: "A técnica kleiniana baseia-se rígida e psicanaliticamente nos conceitos psicanalíticos freudianos...O papel do analista limita-se à interpretação do material do paciente e toda crítica, conselho, encorajamento, tranquilizaçao e coisas semelhantes e coisas semelhantes são rigorosamente evitadas. As interpretações centralizam-se na situação transferencial, acolhendo imparcialmente as manifestações de transferência, positiva e negativa, à medida que aparecem...Poder-se-ia dizer, em consequência disso, que não há lugar para o termo 1técnica kleiniana'? Segal (1967) responde: "Ela (M. Klein) enxergou aspectos do material que não haviam sido vistos antes e, ao interpretar esses aspectos, descobriu mais naturalmente o que não poderia ter sido conseguido de outra maneira e que, por sua vez, impôs novas interpretações, raramente ou nunca utilizada na técnica clássica"(p. 35-36). Nem uma palavra sobre uma nova atitude do analista, que decorreria naturalmente das noções de identificação projetiva/contraidentificação projetiva. Poder-se-ia até pensar em uma formação reativa. Como a teoria kleiniana conduz inelutavelmente à postura-continente, esta tem de ser veementemente negada, para evitar que a parte da comunidade psicanalítica mais conservadora encontre brechas por onde atacar. Bion (1962) retoma a noção de identificação projetiva, e introduz o conceito de 'continente': "Melanie Klein descreveu um aspecto da identificação projetiva relativo à modificação dos temores infantis. A criança projeta parte da psique, isto é, de seus sentimentos maus dentro do seio bom. Daí, são, no devido tempo, removidos e reintrojetados. A permanência deles no seio bom faz com que pareçam modificados de tal maneira que a psique da criança tolera bem o objeto reintrojetado. Da teoria acima para uso como modelo, abstraio a ideia do continente em que se projeta o objeto e a do objeto projetado dentro do continente. A este último designarei de conteúdo." (p.108) Mais adiante Bion usa os seus próprios termos para descrever a mesma interação: "Na situação em que a criança projeta o elemento-beta, ou seja, o medo de estar morrendo, e o continente o recebe de modo tal que o 'desintoxica', isto é, modifica-o, já a criança pode recebê-lo de volta dentro de sua personalidade, sob forma tolerável. A situação assemelha-se àquela que a função-alfa realiza. a criança precisa da mãe para atuar como a função-alfa." (p.145). Bion acrescenta que para exercer esta função de continente a mãe deve estar em um estado psicológico especial ao qual deu o nome de 'devaneio': "...  o devaneio é estado da mente para receber quaisquer 'objetos' do objeto amado e é capaz, portanto, de receber as identificações projetivas da criança, quer ela as sinta como boas ou más. Em suma, o devaneio é um fator da função-alfa da mãe." (p.52). Até aqui as citações referem-se à relação mãe-filho. Bion, porém, fala-nos também da relação analista-analisando: "Houve sinais de confusão que aprendi a associar com a identificação projetiva. Admiti, portanto, que eu era o depositário de parte de sua personalidade, tal como sua sanidade ou a parte não-psicótica de sua personalidade."(p.36). E mais adiante: "Cumpre ao psicanalista, todavia, intervir com as interpretações e isto implica em exercício de julgamento. O estado de devaneio conducente à função-alfa, ao surgimento da fato selecionado, e à invenção do modelo, junto com o equipamento restrito a algumas teorias essenciais, assegura como pouco provável a interrupção súbita da observação que Darwin tinha em mente. As interpretações ocorrem, ao analista com um mínimo de interferência sobre a observação."(p.104). Temos pois o cenário todo montado para a aparição da ideia postura-continente no palco psicanalítico. No entanto, não será Bion quem levantará o pano. Ao contrário, o que ele explicita é o seguinte: "Não me afastei do procedimento psicanalítico que usualmente emprego no neuróticos, tendo sempre o cuidado de tomar ambos os aspectos, positivo e negativo, da transferência."(1954, p.39). 
        Quem formula a ideia básica de postura-continente é Bleger (1972): "Temos que constituir-nos em depositários fieis da parte psicótica e atuar como pais tolerantes; damos tempo para crescer e não sobrecarregamos com problemas demasiado prematuros para o ego do paciente."(p.88). O analista, além de seu papel tradicional de interpretante, ganha uma nova função: a de depositário dos conteúdos do cliente. As interpretações não clivadas, em não desmistificando a transferência, permitem o amadurecimento e desenvolvimento das fantasias do cliente com seus afetos concomitantes, em um nível primitivo, o que poderia não acontecer caso a interpretação fosse clivada, isto é, revelasse o terapeuta em sua função simbólica. Uma outra forma pela qual Bleger manifesta esta mesma ideia de continente (ou depositário, como ele a denomina), nós a encontramos em um artigo denominado "Schizophrenia, autismo and symbiosis (Bleger, 1974): "O esquizofrênico pode ser considerado uma pessoa que teve durante o seu desenvolvimento, e ainda mantém,  uma simbiose patológica com o mundo externo. A simbiose é patológica porque alimenta a submissão e a dependência que empobrecem a personalidade...O problema técnico é construir uma simbiose diferente da patológica na qual está assentada a personalidade e que pode ser diferente se for uma simbiose para o paciente e não para o terapeuta."(p.21". Ora, o que é esta simbiose de mão única senão a relação de depositação, onde o terapeuta é o continente?
        Podemos tomar como protótipo da postura continente a situação modelo de Bion: uma mãe tranquila, em estado de devaneio, que acolhe sem medo e sem ansiedade o terror do bebê, tranquilizando-o; o bebê deposita o seu terror na mãe e, em recebendo-o de volta atenuado, pode tolerá-lo; isto lhe permite exercer as funções de pensamento. Um símile desta situação na prática psicanalítica, que podemos tomar como um protótipo clínico, é o paciente que vem às primeiras entrevistas extremamente ansioso, falando sem parar, não dando espaço para o terapeuta intervir, despejando e evacuando os seus conteúdos psíquicos. O terapeuta na postura-continente, ouve-o tranquilamente, sem se assustar ou ficar ansioso. O cliente sente então que os seus conteúdos psíquicos encontraram guarida: um lugar que recolhe os fragmentos dispersos do discurso, do comportamento e dos sentimentos, mantendo-os unidos. Isto o tranquiliza. A postura-continente possibilita o aparecimento e o gradativo desenvolvimento de emoções, sentimentos e afetos, até então sentidos como proibidos, e por isso mesmo inibidos. A emoção insipiente precisa ser acolhida e tratada como um broto delicado e precioso que necessita de cuidados adequados para crescer. Se a emoção for prematuramente devolvida através da interpretação, o paciente a recolherá terá um medo multiplicado de deixa-la reaparecer. A postura-continente é particularmente adequada para a relação terapêutica com borderlines. Para uma melhor compreensão deste elo, será necessário expor algumas das característica do borderline. Este tipo de organização de personalidade contém em si, em proporções visíveis, elementos neuróticos e elementos psicóticos. No entanto, o seu ponto de equilíbrio não se encontra nem no polo neurótico nem no polo psicótico, mas entre ambos. É por isso que podemos falar do borderline como uma estrutura própria. Seu aspecto neurótico pode ser reconhecido na existência de um eu observador, na capacidade de testar a realidade, na internalização das normas culturais e das hierarquias sociais;  seu aspecto psicótico encontra-se nos distúrbios de identidade, na onipotência, na impulsividade e na impossibilidade de evitar que afetos intensos, emoções e fantasias, derivados do inconsciente, o invadam e se transformem em atos transgressores. Estas características respondem bem a uma relação terapêutica que tem como base a postura-continente: focalizaremos as questões de identificação/identidade e a questão da transgressão.
        A postura-continente, facilitando o estabelecimento de uma simbiose, cria um estado que permite a identificação. Freud (1923) em "O Ego e o Id": "A princípio, na fase oral primitiva do individuo, a catexia de objeto e a identificação são, sem dúvida, indistinguíveis uma da outra."(p.43). Em "Psicologia de grupo e análise do ego"(1921) o mesmo é dito em outras palavras: "...a identificação constitui a forma mais primitiva e original do laço emocional."(p.135). Mesmo depois de alcançado o estágio objetal, o processo de identificação continua sendo, em essência, uma perda de limites entre o eu e o outro. É na situação simbiótica que ocorre esta perda de limites. A postura-continente possibilita ao cliente realizar esta simbiose, sem que o terapeuta tenha de participar ativamente dela (simbiose de mão única); seu comportamento continua sendo interpretativo. Já com psicóticos torna-se necessário que o terapeuta viva intensamente a simbiose (simbiose de mão dupla); deverá então adotar a postura simbionte e o comportamento co-vivencial, como veremos mais adiante. Na situação de perda de limites entre o eu e o outro, o paciente encontra-se identificando-se com o terapeuta; ao recuperar as suas fronteiras, diferenciando-se do terapeuta, alguma coisa aconteceu, algo acrescentou-se. Este processo, inúmeras vezes repetido, age agora sobre os distúrbios de identidade do borderline , atenuando-os.
          Quanto à questão da transgressão, recorrerei a trechos de uma magnifica introdução escrita por Khan (1975) para o livro "Da Pediatria à Psicanálise", de Winnicott, a qual usarei como um introito para a exposição de minha experiência clínica. Khan cita o conceito de 'tendência antissocial' de Winnicott por achá-lo com importantes repercussões na clínica: "...desejo discutir mais pormenorizadamente o conceito de Winnicott sobre tendência antissocial e suas implicações para a técnica psicanalítica, porque constitui a ponte entre trabalho clínico com borderlines e o que poderíamos chamar de pessoas normais que buscam auxílio terapêutico por não estarem bem consigo mesmo e/ou por saberem que a vida não lhes está correndo bem em termos o potencial e das capacidades que dispõem."(p.33). Das citações de Khan a respeito de Winnicott, selecionei duas: "A tendência antissocial possui sempre duas direções...Seguindo a primeira direção, a criança busca alguma coisa em algum lugar e, quando não a encontra, procura em outro lugar, se conserva a esperança. Seguindo a segunda direção, a criança busca a quantidade de estabilidade ambiental que poderá suportar a tensão resultante de um comportamento impulsivo...É especialmente devido à segunda destas direções que a criança provoca reações ambientais totais, como se buscasse um sistema cada vez mais amplo, um círculo que teria tido como seu primeiro exemplo os braços ou o corpo da mãe."(Winnicott, 1956, p.504/5). "No momento de esperança a criança percebe uma nova situação que contém elementos de confiabilidade. Experimenta um impulso que poderia ser chamado impulso de busca de objeto. Reconhece que a crueldade está a um passo de se tornar uma característica, e então provoca o meio ambiente em um esforço para torna-lo alerta ao perigo, e fazer com que ele se organize para tolerar o distúrbio. Se a situação se mantém, o meio ambiente deve ser repetidamente testado em termos de sua capacidade de suportar a agressão, de impedir ou reparar a destruição, de tolerar o distúrbio, de reconhecer o elemento positivo da tendência antissocial, de fornecer e preservar o objeto que deve ser buscado como alvo." (ibid, p.510). Khan arremata estabelecendo uma conexão entre teoria e clínica: "O que caracteriza os sintomas neuróticos é que eles contêm o conflito. O comportamento antissocial, ao contrário, procura objetivar e exteriorizar elementos alheios ao ego existentes na personalidade. Por esses motivos, o neurótico é sua testemunha exclusiva, ao passo que quem pode experimentar o que a faz sofrer apenas através de atuação, está sempre procurando testemunhas. Isto cria problemas muito específicos em termos de processo e situações analíticos. A privacidade da situação analítica e o processo de transferência se adaptam à necessidade que tem o neurótico de comunicar o que ele observa em si mesmo. Já a tendência antissocial, com sua miríade de expressões comportamentais sutis, faz uma demanda para que o analista seja capaz de aumentar o alcance, o espaço e o escopo da situação e do processo analíticos, a fim de que inclua todas aquelas experiências sociais que ocorrerão, por causa de sua lógica inerente, fora da situação analítica. Só tolerar este fato é que tolerará nos pacientes a confiança de que podem começar - e começarão - a testar a situação analítica e o relacionamento em formas simbólicas. Os desejos reprimidos se prestam demais a processos simbólicos, enquanto a privação das necessidades busca efetivação antes de o processo simbólico começar a agir." (38-39). Se estabelecermos um paralelismo entre o ato entre o ato antissocial da criança e a transgressão do enquadre terapêutico do borderline, teremos uma compreensão profunda dos dinamismos em jogo na relação cliente-terapeuta. O cliente procura respeitar a aliança terapêutica, mantendo-se dentro do enquadre, mas vê-se de tal forma invadido por afetos, fantasias, emoções derivadas do inconsciente, que não lhe resta outra alternativa senão transgredi-lo. A maneira do terapeuta lidar com a transgressão deverá ser extremamente cuidadosa. A postura-continente facilita recebe-la de um modo mais apropriado. A transgressão deverá ser aceita e tolerada como um sinal de que o cliente, sentindo-se malcuidado, rejeitado, abandonado, desamado, busca conseguir a atenção, o reconhecimento, a legitimação, o amor do terapeuta. Porém este deverá ter sempre em mente quão básica e fundamental é a aceitação dos limites que a terapia e inevitavelmente a vida impõem às pessoas. Portanto, a tolerância à transgressão deverá ser de tal natureza que, satisfazendo vivencialmente a ânsia de aceitação amorosa do borderline, o encaminhe na direção da aceitação plena da diferenciação, frustração e limitação.
          Não sei se ficou bem caracterizada a postura-continente. Talvez uma imagem ajude a compor melhor esta figura; o terapeuta é como se fosse um caldeirão que cozinha, ao fogo da relação, o material recebido, só devolvendo-o quando suficientemente cozido. O ponto ótimo deste cozimento lhe é informado através da contratransferência que, na postura-continente, está apurada e dirigida não só para os aspectos edípicos da relação, como também para os pré-edipicos, incluindo-se aí as situações as mais primitivas. Por isso mesmo é necessária uma flexibilidade maior do terapeuta; ainda por esse motivo sua mobilização emocional é mais intensa e alcança núcleos mais primitivos da sua própria personalidade. A partir destas condições, o terapeuta organiza-se, quando dentro do comportamento interpretativo, em torno da intervenção interpretativa.
          A relação de continência assemelha-se à postura-espelho quando mantém a interpretação como polo de sua atividade. Rompe radicalmente com a postura-espelho/comportamento interpretativo quando erige como seu guia orientador a experiência vivida. Inaugura-se aí uma técnica revolucionária em psicanálise: O comportamento  covivencial. 
                                                                 
 

                                                 IV

A postura-continente no comportamento covivencial (continua)
    

2 comentários:

  1. Do olhar de cá, muito acolhedor e continente o texto que aqui se coloca para nos comunicar sobre postura/ continente. Obrigada professor!

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  2. É um grande prazer para mim poder dividir aquilo que aprendi e pensei durante minha vida de gente e psicanalista. E, por isso, te agradeço de volta. Um abraço. Nahman.

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