MONUMENTO À CIVILIZAÇÃO CONSUMISTA - parte 4

MONUMENTO À CIVILIZAÇAO CONSUMISTA -  (parte 4)

 
As paredes de minhas vísceras
Choram lágrimas de sangue
Pelo afeto reprimido
Pelo afeto que não posso ter.
A restauração é impossível,
Perdeu-se,
Levou-a o rio da vida
Que não mais volta
Levou-a a corrente vital
Que escavou um novo leito
Para meu caminhar.
 
Eu,
Um ser livre
Alado
Sem corrente nos pés,
 
Acordo agora de meu sonho impossível
E me vejo miseravelmente humano
Prometeu amarrado à rocha
Pagando o atrevimento
De ter querido ser livre. 
 
Os bicos cortantes
Dos edifícios
Dos compromissos
Dos meus amigos
E inimigos
Num só impulso
Atingem minhas vísceras
Biquem meus filhos, biquem
Biquem clientes, biquem,
E tu, Bicadora-Mor
Dá logo o golpe de misericórdia.
Não me fica gastando assim devagarinho
Com este prazer inocente,
Inconsciente,
De Bicadora-Mor.

Revela-te:
Veja a teu bico,
A tua bicada.
Perceba Bicadora-Mor
És fonte de tormento
De lamento
Pilar da civilização
Defensora do lar
E do instalar.

Estás instalada
Dentro de mim
Ou mais exatamente
No meu estômago.
Pequeno peixe-rotor
Delicado e cruel
Sadio e exigente.

Mas estou sendo injusto.
Como exigente?
Se apenas quer um pedaço de meu estômago
Para ficar brincando
Para se agarrar
E fazer dele sua propriedade particular.
Tudo o mais é meu;
Como posso reclamar?
Ela quer apenas
Aquele pequeno trecho para si
Para percorrê-lo à vontade
Mordê-lo
Fincar estacas
Fazer e desfazer.
Não é demais
Posso carregar este pequeno peixe-rotor
Tão pouco exigente
Até o fim de meus dias.
Sobram-me os músculos dos braços
Para dar pancadas
Não no peixe-rotor
Mas na mesa
Que é insensível
Não reclama nem sente dor.

Tenho ainda meu coração
Que pode bater à vontade.
O peixe-rotor não o conhece
Mas desconfio de suas intenções

Tenho a impressão de que olha meu coração com gula;
Ele quer atingir meu centro cardioamoroso
E lá se instalar
Com toda a sua aparelhagem
De brinquedo e tortura.

Eu não sei o que fazer.
É com pavor que examino
As suas intenções
As suas manobras
O seu avanço lento e implacável
Em direção ao meu centro.
O estômago é um pedaço de minha alma
Mas não é minha alma toda.
Que farei quando o pequenino peixe-rotor chegar lá
E lá se instalar
Com seus dentes aguçados
Com sua habilidade
       De rodar, rodar
E criar crateras
Vazios
Buracos
Por onde a vida não passa?

Meu pequenino peixe-rotor
Pedaço de minha alma
Materializada em gente
Atormentador
Rotor
Moloch
Exigente
Espicaçador

Os dentes me espicaçam
E eu levanto da cama
Ando, realizo
Luto, ataco,
Rebento paredes
Com a cabeça
Com as mãos
Com os ossos.
Estás satisfeito
Meu pequeno peixe-rotor?
Olha como o mundo tem medo de mim
Olha como eu tenho medo de ti
Que magnifica combinação
Tu me devoras
E eu abro os caminhos
Traçados pela tua fome.
                                                 (continua)



 
 
 
 


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