VERDADE&MENTIRA
Uma longa tradição dicotômica que teve
seus expoentes em Platão e Descartes nos acostumou a enxergar o mundo através
de extremos. Bom-mau; justo-injusto; saúde-doença, etc. Atualmente estes
extremos têm se suavizado propiciando a percepção de uma zona intermediária, o que
provoca dificuldades éticas. Trataremos aqui da dicotomia verdade-mentira. Começarei
por uma situação simples: vemos seguidamente na vida e na ficção alguém dizendo
para uma pessoa prestes a morrer, ou acometida de um mal incurável a mentira do
“está tudo bem”, “tudo vai dar certo”. Trata-se de uma mentira? Ou é uma
questão de foco? Esta pergunta é pertinente, pois o conhecimento bruto e súbito
da realidade poderá fazer a pessoa sentir-se ainda pior e provocar ainda mais
sofrimento.
Quando o psiquiatra lida com pacientes
psicóticos deverá tomar extremo cuidado em não tocar em assuntos para os quais
exista uma susceptibilidade exagerada levando a reações de ansiedade,
agressividade, pânico, confusão mental, etc. Diante de delírios esquizofrênicos
não se deve contrapô-los à realidade para não despertar reações excessivas. O
psiquiatra ou o analista deve permanecer silencioso o que certamente criará uma
situação ambígua na qual o paciente poderá vir a ter a certeza de que o
interlocutor concorda com ele. Uma ambigüidade cuja função ética é evitar situações
críticas de descontrole.
Todos nós temos zonas de hiper-susceptibilidade.
Num relacionamento de casal se uma dessas áreas é revelada pelas palavras do
companheiro, a isto pode se seguir uma crise de conseqüências funestas, seja no
âmbito pessoal com prejuízos corporais e psíquicos, seja no âmbito do relacionamento
de casal quando a pessoa ofendida em sua auto-estima e ameaçada em seu
equilíbrio psíquico fecha definitivamente a porta da relação. Nestes casos
caberia a omissão, a concordância ambígua e a distorção tranqüilizadora. Por
exemplo: uma pessoa que tenha grande dificuldade com dinheiro e que se a
reconhecesse ficaria psiquicamente desequilibrada por considerar a usura uma
baixaria da pior espécie, não poderia ouvir do companheiro nenhuma alusão a
esta característica; criar-se-ia um mal-entendido, uma idéia deliróide que a
faria reagir com fúria, com depressão, com confusão, com extrema ansiedade. Se rola
aquilo que em vários artigos meus chamei de “paixão visceral”, uma paixão que
não admite outra coisa senão a continuidade da intimidade amorosa, aceitando
então lidar com os aspectos imaturos do amado, aquele assunto (a usura) não
pode ser tocado. Por algum tempo ele deverá ser evitado até que o progresso da
relação permita que ele seja tangenciado e por fim, eventualmente, um dia
possa-se falar abertamente dele. Para conservar a integridade e força da
relação e o relacionamento ele próprio é necessário lançar mão da omissão, da
ambigüidade, da tergiversação. Pode-se dizer que aqui a ética não é a da
verdade, mas da preservação de uma relação amorosa que aceita as partes
imaturas (psicóticas) do outro. É claro que existe a esperança de que a verdade
do amor, gerando um comportamento sensível e adaptado às situações, acabe por
promover um amadurecimento dos aspectos dissociados, possibilitando sua saída
das trevas e tornando viável uma relação mais transparente.
Nahman
Armony
Primeira publicação na revista CARAS.
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