DISPONIBILIDADE PARA A IDENTIFICAÇÃO COMO EXPRESSÃO INTEGRADORA DE INTERPRETAÇÃO E ATO

                         Artigo publicado na revista “Tempo Psicanalítico”, n.26, março de 1992

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem a intenção de produzir uma abertura para uma visão holística da psicanálise, reunindo interpretação, motricidade, pensamento, corporalidade, palavra, ação, emoção, afeto, razão, em um único bloco dinâmico. O acesso para tal integração passa por uma nova atitude a ser adotada pelo analista diante de seu analisando: a "disponibilidade para a identificação". A amálgama dinâmica conseguida por esta via, evidente no trabalho com crianças, se oculta na situação terapêutica com adultos. A colocação, lado a lado de situações analíticas infantis e adultas permite apurar nossa percepção para sutis acontecimentos psico-corporais que, escandalosamente evidentes na psicanálise infantil, apresentam-se disfarçados no tratamento de adultos.

 

 

No decurso de uma psicoterapia infantil em que normalmente a interpretação e a atividade estão integradas no brincar, me vi algumas vezes confrontada com a pergunta: "Digo ou faço?". Com uma interpretação prematura corria o risco de perder uma compreensão mais profunda da comunicação da criança. Por outro lado, uma ação me era pedida, ação que me colocaria, a mim e a meu pequeno paciente, numa situação cujo significado ainda não estava bastante claro para mim. Ao escolher a segunda alternativa, o fazer não só se revelava portador de um sentido, mas me levava a um plano vivencial que me interpelava como pessoa e era terapêutico em si mesmo. O dizer que emergia

 

então, não se limitava a uma intenção de clareza comunicada ao paciente, mas era vivido com a concretude e a atualidade de uma emoção compartilhada. É esta integração entre a interpretação e o ato, assim como a profunda comunicação que o paciente estabeleceu comigo que procurarei mostrar através dos relatos de sessões que se seguem.

Pedro tem 6 anos e sua terapia dura há um ano e meio. Muito trabalho já foi feito com respeito ao luto pelo pai que perdeu antes dos três anos, e à elaboração das fantasias relacionadas ao seio e ao interior da barriga da mãe vivida como uma prisão sufocante. É preciso acrescentar que Pedro tem asma desde um mês de idade, é uma criança retraída e é descrito pelos que o cercam como "desligado" e "muito passivo" diante da agressão. Ao longo da terapia há vários momentos de regressão ligados à amamentação e ao nascimento. Duas semanas antes da sessão morre o bisavô com quem convivia.

Estamos sentados no chão e Pedro distribui as peças de um jogo de dominó: uma para mim, outra para você...Retoma então a brincadeira da sessão anterior e joga as peças espalhando-as pela sala toda. "Vamos nadar no mar, vamos procurar o tesouro". Deitados no chão, nos arrastamos à procura das peças durante algum tempo e sentamos para examinar os "tesouros" encontrados. Nesse momento, Pedro se coloca muito perto de mim e me pede para juntar os pés em torno dele de tal forma que ele se encontra num espaço fechado e delimitado por meu corpo. Atendo seu pedido e digo: "É, Pedro, você está dentro". Seu rosto se ilumina. -"Vamos brincar que você está grávida?" -"De quem?" -"De mim, ali" apontando para o divã no qual se deita de costas com as pernas encolhidas. Debruço-me e envolvo seu corpo com o meu como se fosse uma concha, tomando o cuidado de não tocar nele, de forma que ele tenha liberdade de movimentos. Estabelece-se então um contato muito intenso de olhar, olhar em que ao mesmo tempo me sinto mergulhando e que me invade com muita força. Ao contato de olhar segue o contato de rosto e Pedro encosta sua bochecha na minha; percorre então meu rosto com o nariz como se, depois de tê-lo "aprendido" através do olhar ele o fizesse agora com a respiração. Depois é minha vez de "sentir" o rosto dele que ele encosta-se ao meu nariz e movimenta para me fazer percorrer o mesmo trajeto. Ao mesmo tempo, o contato corporal se estreita e há uma espécie de ressonância: sinto suas modulações tônicas como se suas tensões se prolongassem no meu corpo. Desse acordo tônico nasce uma sensação de bem-estar muito prazerosa de perda dos limites corporais; uma percepção difusa de não-separação: estamos nós dois, só respirando, o mesmo ar, no mesmo ritmo. Pedro busca mais um contato: o de boca, e este é recusado. Digo: "a boca não pode, Pedro". Aparentemente, esta recusa não tem repercussão no momento e a vivência de fusão continua.

Entremeando esse diálogo corporal, surgem as palavras de Pedro:

- Meu avô foi para o céu!

e as minhas:

- Sim, teu avô morreu, você ficou muito assustado e aí dá vontade de ser nenenzinho outra vez, bem protegido dentro da barriga da mamãe.

- É...mas Deus não deixa!

E num outro momento pergunta: Você tem um filho? como é o nome dele? onde você mora?

Ele "nasce" escorregando de cabeça para baixo e se amparando nas mãos. Dirige-se então para a mesa, pega papel e pilots e vai começar a desenhar quando muda de idéia e diz, apontando para o divã: "É ali".

Sento a seu lado no divã e, para grande surpresa minha, Pedro, pela primeira vez, consegue desenhar uma figura humana. Há só um detalhe que falta: a boca. Me limito a dizer "Faltou a boca, não é Pedro?"; ao que ele responde

completando o desenho.

João, 5 anos, é um menino fóbico e tem problema de fala. Está em terapia há um ano. No jogo, sempre compete comigo numa luta em que parece que sua própria vida está em jogo. Ou então, quando sozinho, estabelece metas e obstáculos a serem ultrapassados. Apesar de muito ágil, cai muito, e quando se machuca, nega a dor. Há um sonho de repetição: ele cai pela janela, no vazio. Depois de uma partida de futebol que eu ganho, João me propõe uma nova brincadeira: nas olimpíadas de Sílvio Santos, a porta da esperança. Ele está do lado oposto da sala e há entre nós uma série de obstáculos que ele deve pular: um baú, almofadas, bambolês, etc. Eu devo me colocar como última barreira, ajoelhada, de braços abertos, e não posso deixá-lo passar. Atrás de mim está a janela. João atravessa a sala correndo na minha direção. Sob o impacto, caio sentada e o agarro envolvendo-o com meus braços. Segue-se então uma intensa luta em que acaba por me derrubar no chão. Nunca imaginei que um menino desta idade tivesse tanta força. É para mim agora que se trata de uma questão de vida ou morte: não posso deixá-lo passar de jeito nenhum. Finalmente consigo contê-lo e termino a luta em pé com João nos braços. Por um breve momento ele relaxa e sorri; nossos olhares se encontram. Começo a embalá-lo mas alguns instantes depois ele corre para o chão. Sento para recuperar o fôlego quando João sobe nas minhas costas, se equilibra e lança um grito de triunfo: "Sou o Palhaço! Viva o Palhaço!" ao que eu respondo "Você é João! João!". Ele desce então e se dirige à janela e me chama para olhar a rua. Sento no chão e novamente João sobe, desta vez nos meus ombros, e comenta o que vê na rua. De repente, como quem descobre e se diverte com uma idéia nova, ele diz "As pessoas lá fora vão pensar que tem dois chão aqui" - ao que respondo: "É João, parece que agora eu estou sendo o teu chão".

Na prática psicanalítica com crianças o movimento é explícito e evidente. O mesmo não ocorre com adultos; sua movimentação se expressa bem menos no amplo uso da musculatura esquelética e bem mais em gestos, expressões, atitudes, papéis desempenhados\vivenciados, afetos, emoções. É destes movimentos mais sutis, destas moções que falarei a seguir.

Com este propósito vamos discernir aquele afeto que, inibido no nascedouro, mal aparece, funcionando apenas como sinal, de um outro ao qual se permite que ganhe força, volume, individualidade, desabrochando em sentimentos e emoções, adquirindo vida e presença ao se manifestar em expressões e movimentos. O afeto, para uma psicanálise ainda vigente, é apenas um instrumento de sinalização para um pensamento representacional, devendo manter-se em um nível mínimo para não perturbar os processos elaborativos do pensamento; ou então uma ante-câmara inevitável, intrusa e indesejada de um salão iluminado e iluminista onde luzes brancas afastam os fantasmas do inconsciente permitindo uma visão mais clara da realidade.

Já o afeto que se intensifica e desdobra florescendo em suas variegadas cores, em seu jogo de luzes e sombras, pertence à linhagem catártica da história da psicanálise. Aqui, o afeto amalgamado à palavra viva é parte de uma vivência globalizadora onde palavra, ato, emoção, pensamento, afeto, sentimento, e mesmo, interpretação, não se separam. Este conjunto em seu movimento de conquista/reativação de novos/antigos espaços, produz um efeito de transformação, um efeito terapêutico.

Júlio é um rapaz alto, forte, bem apessoado, com problemas na área da sexualidade. Habitou o quarto dos pais durante longo período de sua infância, digamos, dos dois aos nove anos. Seu berço, ou cama, ficava ao lado do leito conjugal e o nível de seu colchão era o mesmo ou superava em altura o de seus pais. Fiz várias referências à possibilidade de Júlio ter assistido às relações sexuais do casal. Ele porém de nada se lembra, nada sente e nada de novo aparece. A idéia dos pais copulando soa-lhe como uma história inventada que nada tem a ver consigo embora reconheça intelectualmente que, sem dúvida, algo ele ouviu, viu ou sentiu em tão longo tempo de convivência noturna com os pais. Numa certa sessão eu me senti como se fosse o menino Júlio assistindo à relação sexual dos pais. E apareceu dentro de mim uma sensação. Não creio que esta sensação tenha surgido ali; acredito mais que ela foi se formando através de pequenos indícios acumulados no meu inconsciente, nas trocas entre mim e Júlio. E finalmente quando, adquirindo sentido,os fragmentos indiciais aglutinaram-se, identifiquei-me com o menino Júlio. E, a partir daquilo que era uma sensação quase opressiva dentro de mim, - uma opressão que me empurrava para a catarse- eu lhe disse: "A relação de seus pais pode ter sido sentida como um grandioso fenômeno da natureza, como uma pororoca".

Esta intervenção verbal - que formalmente poderia ser considerada uma interpretação – estava impregnada de uma poderosa intensidade, mercê de
uma identificação homóloga surgida na situação analítica. Interpretação e ato tornam-se, nestas circunstâncias, indistinguíveis.

Desta intervenção Júlio não pode dizê-la alheia a seus sentimentos. Tocado, impressionado, mobilizado, Júlio trouxe o assunto na sessão seguinte. E pudemos ver então um menino diante de uma tremenda, terrível manifestação da natureza. Ele perdido e fascinado em meio a uma assombrosa tempestade. Ele, hipnotizado, horrorizado, atraído pela grandiosidade e força do encontro de dois gigantes cósmicos e apavorado pela atração. Desejo de participar daquele formidável evento e medo de ser esmagado, perder-se, desaparecer. A relação sexual dos pais ganhou força e sentido e concomitantemente a imobilidade vivencial em que se encontrava em relação às suas dificuldades sexuais cessou; a análise agora ganhava um novo impulso.

Não se poderia dizer dos três exemplos relatados que o paciente estava associando livremente diante de um analista em estado de atenção flutuante. Mais adequado é denominar a atitude do terapeuta de "estado de identificação" o que pressupõe uma prévia "disponibilidade para a identificação". Este modo de estar do analista diante do paciente abre novos campos de experiência. Não é ocioso relembrar que o conceito de resistência surgiu quando da passagem da hipnose para o método de pressão, assim como a substituição deste método pela associação livre permitiu perceber a complexa estrutura da neurose, com seus inumeráveis deslocamentos e condensações incluindo-se aí o fenômeno da transferência. A aquisição da noção de "disponibilidade para a identificação" possibilita o aparecimento de um novo campo: um campo onde dinamismos intersubjetivos ligando paciente e terapeuta, se produzem2.

A dupla atenção flutuante/associação livre tem como pressuposto inicial uma comunicação entre analista e analisando processando-se em nível de linguagem. Admite-se que o analista interprete comunicações infra-verbais tais como posturas corporais, comportamentos, gestos, etc. Mais é mais raro aceitar-se que este tipo de  

comunicação seja de mão dupla, como se um analista não emitisse sinais perceptíveis que pudessem ser levados em conta na dinâmica da relação. Lembro-me de um paciente psicótico que, numa sessão em que eu estava preocupada em memorizar os acontecimentos, me surpreendeu com a pergunta: "Mas por que você deixou o gravador ligado hoje?". Através da suposta existência de um gravador concreto o paciente expressou uma percepção real de uma preocupação minha.

Esta área de comunicação averbal à qual a linguagem pode se sobrepor mas sem nunca esgotá-la se caracteriza por processos primitivos do pensamento, ou seja, a não distinção entre o símbolo e o simbolizado entre a realidade interna e a realidade externa. A identidade entre o símbolo e o simbolizado é para Fenichel característicado pensamento pré-lógico. "Ao passo que na distorção se evita a idéia de pênis”, disfarçando-a através da idéia de cobra, no pensamento pré-lógico pênis e cobra são uma e mesma coisa; isto é, são percebidas por uma concepção comum: o avistar da

cobra provoca emoções relacionadas com o pênis; e este fato é utilizado mais tarde quando a idéia consciente de cobra substitui a idéia inconsciente de pênis"3. Já Winnicott considera que o simbolismo tem um significado variável e confere o status de símbolo às duas concepções. "Se considerarmos, por exemplo, a hóstia da Sagrada Comunhão, simbólica do corpo de Cristo, penso que tenho razão se disser que, para a comunidade católico romana ela é o corpo de Cristo e, para a comunidade protestante, trata-se de um substituto, de algo evocativo, não sendo essencialmente, de fato, realmente o próprio corpo. Em ambos os casos, porém, trata-se de um símbolo"4.

Essa experiência não se limita ao campo religioso mas faz parte do cotidiano dos telespectadores que, ao encontrarem atores das novelas, repreendem com indignação as maldades das personagens ou elogiam suas façanhas com admiração. Podemos dizer que a pessoa do ator é apagada a favor da personagem assim como o analista, até certo ponto, é "apagado" na transferência. Em momentos privilegiados, ao se deixar afetar e moldar pelas necessidades do paciente, o analista desempenha o papel de objeto transicional e faz parte tanto de seu mundo interno quanto externo. Paciente e terapeuta sentem-se numa espécie de sonho acordado onde a "outra cena" é o espaço analítico.

Nas vinhetas infantis vimos como a criança retira o terapeuta de uma posição neutra e observadora, induzindo-o a preencher uma função, a desempenhar um papel. É preciso, porém, que não nos enganemos; de nada servirá para a criança o terapeuta atender ao seu pedido mantendo-se em uma exterioridade, teatralizando em obediência a um comando. Pedro não precisava simplesmente de um útero - de um receptáculo neutro - para se abrigar e depois nascer; ele necessitava de uma barriga vívida que o acolhesse e preenchesse suas necessidades. Pedro estava em busca de algo só alcançável por um terapeuta disposto a se identificar com seus sentimentos, fantasias, vivências. O desempenho de papéis e preenchimento de funções não é apenas uma representação, algo externo que se cola à personalidade do terapeuta ou um modelo dado pela criança a ser seguido. Pelo contrário: a criança aponta para uma necessidade afetivo/vivencial só possível de ser alcançada e acolhida por um terapeuta em estado de disponibilidade para a identificação. Só assim será possível viver com o pequeno paciente as fantasias/realidades necessárias ao seu desenvolvimento. Mme. Sechehaye5 quando aceitou amamentar Renèe através da maçã não estava distinguindo maçã de seio, símbolo de simbolizado; o aleitamento não estava sendo "representado" mas sim vivido já que as emoções e vivências da amamentação tanto da parte da paciente quanto da terapeuta estavam autenticamente lá. Enquanto a criança e o psicótico facilitam ao terapeuta o acesso ao pedido implícito devido à concomitância verbal/não- verbal de suas solicitações, a maioria dos pacientes adultos não verbaliza o aspecto escondido de seus pedidos. Assim, o que está desvelado no tratamento de crianças e psicóticos torna-se velado no tratamento dos adultos não-pdicóticos. Tal qual crianças e psicóticos, pacientes adultos solicitam do terapeuta o desempenho de papéis. Como porém não é uma solicitação com um aspecto verbal indubitável, o psicanalista ao se posicionar classicamente - neutralidade, observação, atenção flutuante, frieza técnica - não a perceberá. Para alcançá-la será preciso que ele se coloque numa disposição especial: é preciso que esteja disponível a responder às sutis solicitações do paciente no sentido de exercer uma função vivendo certo papel. É preciso que ele esteja em "disponibilidade para a identificação". No caso de Júlio, anteriormente citado, esta disponibilidade levou a uma identificação homóloga, a uma fusão com o paciente/menino. A pressão era no sentido de fazer o terapeuta viver/expressar o que o menino Júlio vivera/vivia como se o terapeuta fosse o próprio Júlio. Na maior parte das vezes porém, a pressão está direcionada não para uma identificação homóloga mas para uma identificação complementar. O terapeuta deverá viver um papel complementar indicado pelo paciente.

Vitório repete sem cessar o seu desespero com os revezes cotidianos: um pneu que fura, pais que brigam, trânsito entupido, vaga não conseguida, tudo parece ter um sentido que transcende a cotidianidade. Como se aqueles acontecimentos fossem um castigo dos deuses. Sendo o terapeuta o único Deus em presença, este se vê empurrado pelas reiterações, lamúrias, reivindicações, queixas - um conjunto que exprime um intenso sentimento de estar sendo injustiçado - para uma posição de Personificação-Má-Onipotente, responsável por tudo de ruim que lhe acontece. Por trás desta atribuição de maldade à Mãe-Terapeuta existe um vagido que é um poderoso pedido para o surgimento da Mãe-Boa-Todapoderosa que o proteja onipotentemente. Um psicanalista com o seu ego fechado às subliminares pressões do paciente, permaneceria neutro, usando a sua afetividade como um sinal para interpretar fantasias; não permitiria que uma alteração de seu ego o fizesse provisoriamente sentir-se como a própria Mãe-Má (por exemplo, não se daria o consentimento de sentir uma certa inquietude indicativa de uma fantasia de responsabilidade pelos infortúnios do "filho querido"6. Manter-se-ia "duro", inflexível, preservando e freqüentemente refugiando-se em seu papel de "interpretador" não podendo pois perceber que mesmo interpretações corretas podem quebrar o desenrolar dos dinamismos, obstando um desenvolvimento dinâmico da relação. Um paciente não encontrando tranqüilidade ou consentimento no terapeuta para vivenciá-lo como Mãe-Má faria um corte em seu processo dinâmico, ou perpetuando ou reprimindo o seu dinamismo; não haveria uma seqüência fantasmática, um desdobramento do dinamismo. Recorrendo mais uma vez à vinheta-Vitório: não fosse a liberdade que o campo psicanalítico - criado pelas linhas de força da relação analista-analisando - lhe forneceu, Vitório não poderia vir a perceber o seu desejo mais profundo, um desejo que ultrapassava o seu dinamismo paranóide: a aparição da Mãe-Boa-Onipotente. Este conjunto de exemplos práticos e considerações teóricas nos levam a concluir que a disponibilidade para a identificação permite o aparecimento e desdobramento de dinamismos intersubjetivos: paciente e terapeuta compartilham vivências. Nestas circunstâncias, palavra, ato, interpretação e pensamento estão de tal forma ligados, de tal maneira se interpenetram que só por um artifício analítico podem ser separados. Vive-se uma relação e dela se fala; intermitentemente esta fala assemelha-se a uma interpretação. Deste ponto de vista interpretação e ato formam uma unidade indissolúvel. Estamos, pois, diante de uma psicanálise a ser pensada e exercida também em termos holísticos.

 

Notas e Referências bibliográficas

1- Esta expressão foi usada pela primeira vez por um dos autores (Armony, N.) e encontra-se no artigo “Dinamismos em Psicanálise” publicado em “Psicanálise: da interpretação à vivência compartilhada” em 1989.

2- Encontramos formulações próximas às nossas em Winnicott. Selecionamos dois trechos de seu artigo La teoría de la relación paterno-filial escrito em 1960, constante do livro El proceso de maduración en el niño (Editorial Laia, Barcelona, 1975) ilustrativas deste parentesco. Estas citações, articuladas, se suplementam: "Lo importante, a mi modo de ver, es que la madre, por medio de su identificación con la criatura, sabe cómo se siente ésta y, por tanto, es capaz de darle casi exactamente todo cuanto necesita en forma de sostenimiento y de provisión de un medio ambiente general. Sin tal identificación considero que la madre no aportará lo que la criatura necesita a principio: una adaptación viva a sus necesidades"(pag.61).  "Parecidos

cambios de orientación los experimenta el analista al satisfacer las necesidades de un paciente que, en la transferencia, está reviviendo estas etapas iniciales. Y el analista, a diferencia de la madre, tiene que ser consciente de la sensibilidad que se está desarrollando en su interior en respuesta a la inmadurez y dependencia del paciente. Cabría pensar que esto es una ampliación de la descripción freudiana según la cual el analista se halla en un estado voluntario de atención"(pag.60).

3- Fenichel, citado por Marion Milner no artigo O papel da ilusão na formação simbólica in Novas tendências na psicanálise, Zahar Editores, Rio de Janeiro 1969, pag. 119.

4- Winnicott, D.W. (1971)- O Brincar e a Realidade. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1975.

5- Sechehaye, M.A. (1947)- La realisation symbolique Hans Huber, Berne, Editor.

6- O paciente poderá envidar poderosos esforços para retirar o terapeuta de sua posição de serenidade envolvendo-o em suas fantasias, mobilizando-o com suas emoções, manipulando seus pontos vulneráveis até conseguir colocá-lo no papel fantasmático complementar ou homólogo.

 

             Nahman Armony e Rejane S. Armony

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