Dra.
Alicia Florrick, uma mulher casada, personagem da excelente série televisiva
“The good wife - pelo direito de recomeçar”, ao receber um convite de amor via
telefônica de um antigo flerte recentemente renovado pergunta: “e o plano?”, e
diante da perplexidade muda do interlocutor, acrescenta: “a poesia está muito
bem, mas preciso de um plano. Sou casada, amo meus dois filhos, meu marido
precisa de mim para sua campanha de eleição... onde está o plano?”
Desconcertado o pretendente desliga o telefone. Esta circunstância extrema pode
nos ajudar a abordar situações menos claras levando-nos a reflexões sobre a
paixão e seus destinos.
Uma das interpretações possíveis da
fala da protagonista é a seguinte: ela tem uma vida estruturada e o que o
pretendente oferece é inconsistente em termos de segurança embora a paixão exerça
um grande apelo pela enorme mobilização das energias psíquicas e físicas que a
felicidade de um encontro arrebatado proporciona. Na maioria das vezes --- esta
é minha experiência ---- a racionalidade pragmática não funciona e as pessoas
se atiram cegamente nos redemoinhos da paixão sem pensar nas consequências,
tamanha é sua força.
A paixão é um acontecimento súbito, comparável
ao clarão de um raio que cai sobre duas pessoas e as eletrifica, unindo-as pelo desejo, pela esperança, pelas
fantasias de intensa felicidade e completude: “ele é o meu homem (ou minha
mulher) e é com ele que eu quero misturar minha carne e minha alma, pois é a
ele que eu pertenço desde o inicio dos tempos”. Parece ser um sentimento
imotivado, pois acontece antes que haja tempo dos dois se conhecerem em seus
gostos, em seus valores, em suas susceptibilidades, em seus dinamismos
interpessoais e intersubjetivos. Poder-se-ia argumentar que a expressão do
rosto e a atitude corporal já falam de quem é a pessoa. Isto pode ser parcialmente
verdade quanto à “poesia” do encontro, uma poesia que está ligada a uma
atividade psico-cerebral primitiva que regem os encontros amorosos dos animais
da natureza e que nada dizem da personalidade social e ética do parceiro. Só
quando a paixão arrefece é que estes aspectos mais evoluídos passam a ser
importantes. E aí certamente haverá diferenças maiores ou menores que serão
elaboradas ou não pelo casal mantendo-os unidos ou provocando uma separação.
Como diz Monteiro Lobato em seu livro infantil “Reforma da natureza” através da
voz da boneca falante Emília, o mundo foi mal feito por Deus. O ideal seria que
as pessoas pudessem escolher por quem se apaixonar depois de conhecê-las em
profundidade e extensão, descartando as muito dessemelhantes como risco
excessivo e optando por aquelas com diferenças menos radicais. Mas não é assim que
o mundo funciona e temos de nos conformar com o difícil caminho da paixão por
um quase desconhecido e batalhar para superar e acolher diferenças através da
compreensão e aceitação da personalidade do outro. Só assim o arrebatamento
poderá durar sob a forma de amor apaixonado. Mas, sem dúvida isto exige grande
esforço de ambas as partes. Antes de tudo é preciso tolerância com as
diferenças. Existe uma dificuldade inata de aceitação das diferenças. Quando
somos crianças amamos o semelhante; o diferente é um inimigo mortal, pois
ameaça invadir uma personalidade ainda imatura e muito influenciável. Essa
criança precisará evoluir para uma maneira de estar no mundo em que poderá se
abrir para as novidades trazidas pelo ambiente, porém preservando o seu modo de
ser, só permitindo modificações favoráveis ao aumento de potência de sua
personalidade. Há um longo caminho a ser percorrido para se chegar a este modo
de ser; é, porém uma capacidade que só se desenvolve no embate interpessoal
e intersubjetivo. E a situação de paixão é privilegiada para a sustentação
desse processo.
Nahman Armony
Primeira publicação na revista CARAS.
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ResponderExcluirÓtima análise. E quando a paixão vai nascendo de uma amizade, da admiração, sem se dar conta, no dia a dia? É paixão, ou esta só é possível se for súbita?
ResponderExcluirAcredito que a paixão pode se desenvolver a partir da admiração, do carinho, etc. Há como que um salto que vai da admiração a uma espécie de idealização que torna a pessoa aprisionada pela paixão. Pode ser um aprisionamento sem trégua do qual não há escape ou um aprisionamento do qual se tem consciência e jurisdição.
ExcluirCynthia: continuei pensando na questão que você levantou. Acho que existe um tipo de paixão consciente de si mesma, e um tipo de paixão sem senso crítico. Na primeira é como se fosse preservado um cantinho da mente onde um habitante observador e crítico permitiria a tomada de decisões difíceis, sofridas. Seria uma paixão ao mesmo tempo idealizada e ao mesmo tempo compatível com uma percepção crítica do companheiro. Na segunda não existiria esse cantinho privado necessário à percepção da verdade do companheiro e capaz de tomar decisões contrárias ao que pede o coração. A paixão súbita tem a ver com a negação da alteridade enquanto que a paixão precedida de um relacionamento não apaixonado seria uma paixão consciente de si mesma, consciente do aspecto imaginário de idealização e perfeição simbiótica necessárias à paixão.
ExcluirÉ possível também a pessoa resolver se apaixonar para dar um sentido a sua vida. Neste caso o senso crítico pode coabitar desde o início com a paixão idealizada, fusional e simbiótica.
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