ÉTICA E SUBJETIVIDADE NOS BORDERLINES PRÓXIMOS DA NORMALIDADE


ÉTICA E SUBJETIVIDADE NOS BORDERLINES PRÓXIMOS DA NORMALIDADE[1]

 

Grinker[2], já em 1968, em sua portentosa pesquisa apresentada no livro The borderline syndrome encontra quatro tipos de borderline: 1º – O border psicótico; 2º – O borderline nuclear; 3º – As pessoas “como se”; 4º – O border neurótico.

Grinker propõe uma gradação do borderline em uma linha que vai de um extremo onde ele coloca o psicótico a outro extremo onde o neurótico é alojado. Winnicott (1982, p.121.[3]) trará uma mudança radical a essa concepção, separando psicose e neurose em duas linhas. Citando: “Os psicanalistas experientes concordariam em que há uma gradação da normalidade não somente no sentido da neurose, mas também da psicose, e que a relação íntima entre depressão e normalidade já foi ressaltada. Pode ser verdade que há um elo mais íntimo entre normalidade e psicose do que entre normalidade e neurose, etc”. Winnicott, portanto admite duas linhas de normalidade: a da psicose e a da neurose. O borderline para ele pertence à linha da psicose.

Há, pois, uma gradação que vai da neurose mais grave à neurose próxima da normalidade e outra que vai da psicose mais grave ao borderline próximo da normalidade. Subentendido está que a normalidade perfeita, absoluta, é figura de ficção.

André Martins[4] (2002, p.212) facilita nossa comunicação ao batizar estas duas linhas de psicóide e neuróide.

O modo neuróide pertence a uma subjetividade moderna vitoriana, onde a repressão e o recalque predominam. O recalque tanto é estruturante do psiquismo e mantenedor de seu equilíbrio quanto o responsável pelas dificuldades neuróticas. Citando: A análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a empreender uma revisão desses antigos recalques; alguns são demolidos, ao passo que outros são identificados, mas construídos de novo, a partir de um material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é bastante diferente das anteriores; podemos confiar em que não cederão facilmente ante uma maré ascendente da força instintual”[5] (Freud, 1969: 259-60)

 

Outra citação:

Não podemos negar que também as pessoas sadias possuem, em sua vida mental, aquilo que, por si só, possibilita a formação tanto dos sonhos como dos sintomas; e devemos concluir que também elas efetuaram recalques......se alguém submete a um exame mais atento sua vida desperta, descobre ......que essa vida pretensamente sadia está marcada aqui e ali por grande número de sintomas banais e destituídos de importância prática”[6] (Freud, 1969 p.532-3).

 

Freud fala-nos também que o superego masculino, uma vez formado quando da resolução do complexo de Édipo, dificilmente deixa-se influenciar e modificar.

Na chamada pós-modernidade, o modo psicóide de viver ganha proeminência. Estarei daqui para frente falando do estado borderline próximo da normalidade. Diferentemente do neuróide, que realizou fortes identificações com as figuras poderosas de sua infância (especialmente pai), o psicóide apresenta uma insuficiência de identificações, resultado de uma menor dedicação maternal e de uma maior permissividade, transigência e brandura parental. A expressão “insuficiência de identificações” é a usada por muitos dos psicanalistas que estudam a condição borderline. É uma expressão que tem conotações negativas, patológicas. Prefiro substituí-la por “valências identificatórias não saturadas”, que tanto nos remetem para o negativo quanto para o positivo desta situação. Será negativa quando o psicóide estiver tomado pelo desespero de saturar por inteiro e definitivamente as valências famintas de identificação mediante relações fusionais ou simbióticas. Será positiva quando as valências forem mantidas abertas permitindo um conhecimento/relação/comunicação contínuo com o mundo pessoal e cultural. Aqui, torna-se indispensável um adendo: a capacidade de identificação dual-porosa também se forma no relacionamento suficientemente bom com uma mãe que permite a mutualidade e as identificações cruzadas. Se a capacidade de empatia e identificação da criança não vier a sofrer uma repressão severa como sói acontecer pela ação de algo da ordem de uma função Pai Patriarcal Vitoriana, ela poderá espraiar-se no social em permanente movimento de identificação dual-porosa, portanto em permanente criatividade.

Assinalarei apenas alguns aspectos desta subjetividade, justamente aqueles que servirão como ponte para as considerações sobre a ética que a condição borderline introduz.

As valências identificatórias abertas fazem com que o borderline não se cristalize em um Eu estável, precisando a todo o momento se recriar diante das aceleradas transformações da atualidade. Não está preso a ideologias, não tendo, portanto, uma moral a priori. Suas escolhas éticas são tomadas no calor dos acontecimentos, de acordo com os contextos e circunstâncias. Sua tendência à ação imediata fala de um descontrole; o aprendizado através da ação, da inibição e da percepção do contexto (função secundária e juízo primário) remete-nos a um controle que não depende de ações repressoras, mantendo-se assim a espontaneidade. Featherstone[7] (1995, p.142), um sociólogo, chama a esta situação de “controle descontrolado das emoções”, o que pode ser lido psicanaliticamente como espontaneidade modificada pela experiência e conhecimento.

Como já deve ter ficado claro, a subjetividade borderline nos remete a uma ética interpessoal, pontual, intersubjetiva. Um longo caminho na história da ética foi percorrido até aí. Vou resumi-lo.

Começarei com Sócrates/Platão. Sua ética é orientada por modelos transcendentes que existem no mundo das idéias. É a idéia abstrata que legitima a ação. Por exemplo: é a idéia de justiça que autentica a pessoa e a ação justa. A conduta ética consiste em ascender às idéias verdadeiras absolutas (epistêmicas) e então agir de acordo com elas. Universalidade, transcendência e conteúdo são as características da ética platônica. Uma ética modelar.

A transcendência da idéia platônica transforma-se, na ética kantiana, em imanência transcendental. A Razão Universal impõe um Imperativo Categórico que advém de um mesmo e necessário raciocínio realizado isoladamente por cada homem do conjunto dos homens, os quais, por sua própria natureza, necessitam ser racionais. Diz Kant[8] (1974, p.223) : “O imperativo categórico é, portanto, só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei universal”. Todos os homens racionais, se livres, pensarão desta mesma maneira. Apesar das aparências, continuamos com uma ética universal; esta, porém, não tem conteúdo, mas um modus faciendi, um modelo de ação calcado na racionalidade.

As transformações da sociedade humana exigiram a desconstrução do imperativo categórico, trazendo-o da impessoalidade à pessoalidade, do abstrato ao concreto. A relação interpessoal torna-se o foco de pensamento de vários autores da atualidade.

Featherstone (1995: p.74)[9]  fala de “autocontrole mutuamente esperado” e “respeito para com o outro”.

Anthony Giddens (1991: p.123)[10] refere-se à necessidade da realização de um trabalho para ganhar a confiança do outro.

Gilles Lipovetsky (1994: p.23)[11] fala de uma “ética dialogada da responsabilidade” e de “éticas inteligentes e aplicadas”.

Estes três pensadores confluem para uma ética que depende de uma atividade mental, pois há um espaço separando os corposmentes a ser ultrapassado pelos símbolos de segunda ordem (Armony[12], 1998, p.40-41)[13]. Para eles os corpos não estão em continuidade, mas sim em contigüidade. A primazia não é do corpo, mas sim da mente. Em última instância é a mente quem decide o que é mais conveniente, mais útil, mais adequado para a boa convivência entre os seres humanos. Ou diz quais os valores inatos do humano.

Para Levinas a ética precede a ontologia. O encontro com o outro é inaugural e anterior a qualquer fala. Este outro é radicalmente outro, pura diferença, um rosto infinito, incognoscível, em relação ao qual o eu tem uma responsabilidade primária, imediata, antes de qualquer conhecimento. Meu comentário: a idéia de que o verdadeiro encontro se dá antes da simbolização aproxima a ética de Levinas da ética do borderline. A radicalidade do outro, porém, afasta aquilo que a primeira idéia aproximou. A identificação dual porosa amalgama as duas subjetividades, criando um campo comum embora preservando a singularidade da cada um. Difícil conciliar esta idéia com a radicalidade do outro.

Martin Buber (1982)[14] é quem mais se aproxima da ética borderline. Sua ênfase em um encontro onde o eu está aberto “com todos os poros de meu corpo” a toda “recepção” e “percepção” que vem do tu assemelha-se à noção de identificação dual-porosa. As citações seguintes reforçam esta semelhança:

Nenhum daqueles dois precisa renunciar à sua opinião; só que fazendo eles algo de improviso e acontecendo-lhes de improviso este algo que se chama união, eles penetram num reino onde não é mais válida a lei da opinião [...] O encontro já se tinha dado anteriormente quando, cada um em sua alma, voltou-se para-o-outro, de maneira que, daqui por diante, cada um, tornando o outro presente, falava-lhe e a ele se dirigia verdadeiramente(Buber, 1982: p. 39).

Assim sendo, mesmo que se possa prescindir da fala, da comunicação, há contudo um elemento que parece pertencer indissoluvelmente à constituição mínima do dialógico, de acordo com seu próprio sentido: a reciprocidade da ação interior. Dois homens que estão dialogicamente ligados devem estar obviamente voltados um-para-o-outro (Buber, 1982: p. 40-1).

 

         Apesar das diferenças, não há dúvida de que há uma forte afinidade entre as noções de dialógico e dual-poroso.

Finalmente falarei do borderline, do homem da atualidade. Suas valências identificatórias abertas permitem a inclusão do mundo humano circundante na área narcísica. O outro humano ou o outro cultural, embora seja reconhecido como diferente faz parte do si mesmo. Isto nos remete a uma ética não-racional, uma ética espontânea, uma ética, diria eu pensando em Winnicott, não intelectual/mental, mas psicossomática. Eu quereria o melhor para mim e para o outro não porque isso é necessário à boa convivência ou porque o altruísmo, a responsabilidade, etc são valores em si a serem preservados, mas porque, por um movimento abarcante meu, o outro faz parte de mim e é fundamental para a minha criatividade, vida e preservação.

Dizendo de outra maneira: o corpomente, tornando-se sensível a outros corposmentes, conhece-os, com eles se relaciona e se comunica, não apenas através de símbolos de segundo grau, mas através da porosidade de suas fronteiras, o que o torna contínuo com o outro, embora ao mesmo tempo separado. O outro é parte de mim sem deixar de ser outro. Qualquer dano ao outro é um dano a uma parte de mim. Por isto mesmo, diante de um sofrimento necessário a ser infligido, ele o será de maneira a causar o mínimo estrago e o mínimo sofrimento à unidade múltipla criada pela identificação dual-porosa. Quanto mais regiões ficarem ao alcance da identificação dual-porosa, mais amplamente poderá se exercer a sua ética. Neste tipo de ética, o entendimento não se dá pela racionalidade intelectual nem a ação acontece por voluntarismo. Não é nem mesmo um entendimento entre dois seres, pois o eu não está separado do outro. É mais um processo de equilibração ecológica que inclui preservação, realização, expansão e assimilação do diferente; um processo de equilibração que, mais que a dialética, utiliza uma sutil interação co-vivencial entre dois ou mais corposmentes. Não há regras a serem seguidas, mas devires atravessados pelo desejo de preservação e realização. Uma preservação, realização e expansão que inclui o outro justo porque o outro é, através da identificação dual-porosa, ao mesmo tempo, um si-mesmo.

         Esta ética possível do borderline tem uma conseqüência clínica: não se trata de transformar psicóide em neuróide (narcísico em edípico), mas sim de manter em mente as potencialidades de desenvolvimento positivo do modo psicóide de existência.

         Assim como o psicóide não exclui o neuróide, a ética dual-porosa não elimina a ética racionalista da responsabilidade.

         A primeira está referida a um estado vibracional, co-vivencial, intuitivo, simbiótico, conjuntivo; a segunda refere-se a um estado de separação, de individualidade, de aguçamento intelectual, de minuciosidade, de disjunção.

A complexidade do humano e dos acontecimentos pede a multiplicação dos pontos de referência éticos. Deslizar de um ponto de referência para outro será mais adequado ao movimento líquido das relações humanas e culturais que permanecer aderido a uma única referência. A ética dual-porosa unívoca e a ética da responsabilidade/solidariedade se suplementam.

 

                                                           Nahman Armony

 

 

 

 

 



[1] Artigo publicado em Psicanálise, uma prática  teorizada (tributo a Horus Vital Brazil) (2007) Rio de Janeiro: editor José Nazar: Cia. de Freud: SPID. 
[2] GRYNKER,R.R., WERBLE,B., DRYE,R.C. (1968) – “The borderline syndrome”.Basic Books, New York, London.
[3] WINNICOTT, D.W. (1982) – “Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à classificação psiquiátrica?”(1959-1964)  IN “O ambiente e os processos de maturação”. Editora Artes Médicas, Porto Alegre.
[4] MARTINS, A. (2002) – “Pulsão de morte? Natureza e cultura na metapsicologia freudiana”. Tese de doutorado em Psicologia Psicanalítica. UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
[5] FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. Obras completas, vol. 23. Rio de Janeiro: Imago, 1969
[6] FREUD,  S. (1917). Conferência 28 – “Terapia analítica” das “Conferências introdutórias sobre psicanálise”. Obras completas, vol. 16. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
 
[7] FEATHERSTONE, M. (1995) – “Cultura de consumo e pós-modernismo”. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
[8] KANT, I.  – “Fundamentação da metafísica dos costumes”. IN: Os Pensadores, vol. XXV. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1974. 
[9] FEATHERSTONE, M. (1995) – Ibid.
[10] GIDDENS, A. (1991) – As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista.
[11] LIPOVETSKY, G. (1994) A era do vazio. Lisboa: Relógio D’Água s/d.
[12] ARMONY, N. (1998) Borderline: uma outra normalidade. Rio de Janeiro: Editora Revinter.
 
[14] BUBER, M. (1982) Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Editora Perspectiva. 

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