Desde que Freud
escreveu seu artigo “O mal-estar na civilização” a expressão mal-estar quase
sempre está vinculada a esse artigo. Vide “O mal-estar na pós-modernidade” de
Bauman, “O mal-estar na atualidade” de Birman, “O mal-estar na globalização” de
Luciano Martins Costa, e o título de muitas jornadas, simpósios, etc. É
compreensível que assim seja, pois se trata de um texto muito rico que aborda
esta e outras questões de inúmeros ângulos permitindo uma reflexão mais
complexa sobre o tema.
O
sentimento oceânico – amparo e desamparo
O início do texto já nos coloca um enigma. Por que
Freud começa discutindo a questão do “sentimento oceânico” proposta por Romain
Roland em uma carta? O que teria o sentimento oceânico a ver com o mal-estar na
civilização?
Sentimento oceânico refere-se à perda das fronteiras
entre o eu e o mundo. Uma pessoa mergulhada no sentimento oceânico está,
portanto, amparada. Num primeiro momento Freud negou a existência deste
sentimento oceânico para depois realizar um percurso intelectual admitindo
inicialmente que “no auge do sentimento
do amor a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer”(p.83)[1]
para mais adiante dizer que o recém-nascido “ainda
não distingue o seu ego do mundo externo como fonte de sensações que fluem
sobre ele”(p.84)[1]..
E conclui: “Nosso presente sentimento de
ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito
mais inclusivo – na verdade, totalmente abrangente — que corresponde a um
vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca (....) o conteúdo
ideacional a ele apropriado seria exatamente o de ilimitabilidade e o de um
vínculo
com o universo – as mesmas idéias com que meu amigo elucidou o
sentimento oceânico”(p.85)[1].
O bebê tem, ao nascer este sentimento oceânico, pois
ele é o mundo, ele é a mãe que é o mundo. Winnicott
e outros autores chamam a este sentimento oceânico de fusão. Para Winnicott
isto se passa na fase da dependência absoluta. Esta fusão com uma mãe
suficientemente boa é necessária para um desenvolvimento saudável. Esta é uma
questão importante. Hoje se dá muito valor ao desamparo como o motor do
desenvolvimento psicológico humano. O pensamento predominante afirma que o ser
humano nasce desamparado. Desconsidera-se que a maioria das comunidades humanas
ampara o bebê assim que sua cabeça assoma no mundo desconhecido que o aguarda.
Uma evidência disto é o fato de várias línguas terem o amparo como a palavra
original sendo o desamparo expresso por um prefixo ou sufixo que se acrescenta
à raiz amparo. Em inglês temos help como amparo helplessness como desamparo. Em
espanhol amparo e desamparo. Em alemão schutz (amparo) e schutzlosikeit
(desamparo).[1]
Winnicott, num assomo de espontaneidade, em uma reunião científica, disse que
não existia tal coisa chamada bebê querendo
dizer ser inconcebível a existência do bebê sem o amparo, o holding da mãe.
Posso imaginar que a precedência da palavra amparo sobre desamparo teria a ver
com o acolhimento dado pela mãe e pela sociedade ao novo ser humano que surge
na natividade. Certamente este amparo inicial, provedor de um bem-estar, não é
um seguro contra um possível desamparo posterior.
Creio
que pudemos manejar o enigma do mestre. O sentimento de amparo tem a ver com o
bem-estar do sentimento oceânico. Não foi desta vez que a esfinge nos pegou.
Desamparo
e mal-estar
Uma
criança amparada no início de sua existência terá melhores condições de
enfrentar as situações de desamparo que inevitavelmente acontecem no decurso de
uma existência. A sociedade delega esta primeira função de amparo à mãe criando
para ela uma rede de proteção, deixando-a desimpedida para dar acolhimento ao
filho. Poderíamos dizer que este bebê, este ser humano internalizou uma
sensação básica de amparo que só ficará ameaçada de desaparecer se tiver de
enfrentar condições desfavoráveis extremas como, por exemplo, a deliberada
destruição da personalidade nos campos de extermínio nazistas. Se o bebê não
teve um holding básico e inicial da mãe, terá de lutar vida afora com o
mal-estar do desamparo.
Na
modernidade – na organização edípica – ao amparo incondicional da mãe segue-se
o amparo condicional do pai. O pai promete proteger o filho desde que ele
aceite a castração, isto é, que abandone os modos e valores femininos
tornando-se o que o modelo de homem da sociedade moderna preconiza: duro,
forte, inclemente, imune a sentimentos, com um superego rígido e fechado. O
menino que passou pela castração paterna internaliza o processo de repressão
próprio do modo neurótico de viver. A repressão/recalque passa a fazer parte de
seu funcionamento psíquico e mental. Vários aspectos de sua existência são
recalcados: repressão da palavra (que teria de ser precisa como manda a ciência
da modernidade), do feminino, do consumo (economizador, sovina, acumulativo)
dos vários pequenos eus desejantes, da onipotência, da afetividade, da ternura,
da agressividade, etc., com repercussões na espontaneidade e criatividade.
(Aqui vale lembrar que Freud comparava a lenta progressão da ciência à rápida
intuição dos poetas e filósofos. Uma de suas formulações a este respeito nós a
encontramos na “A história do movimento psicanalítico”: “Em anos posteriores, neguei a mim mesmo o enorme prazer da leitura das
obras de Nietzsche, com o propósito deliberado de não prejudicar, com qualquer
espécie de idéias antecipatórias, a elaboração das impressões recebidas na
psicanálise. Tive portanto de me preparar – e com satisfação – para renunciar a
qualquer pretensão de prioridade nos muitos casos em que a investigação
psicanalítica laboriosa pode apenas confirmar as verdades que o filósofo
reconheceu por intuição”[1]
(p.26) )
O neurótico carrega consigo o
mal-estar da não-realização plena, o mal-estar do desejo proibido, o mal-estar
do conflito. Porém é um mal-estar que se apóia na aceitação e aprovação do
representante do pai e da sociedade legal que é o superego. É um mal estar
assentado sobre um chão de satisfação consigo mesmo por estar sendo admirado e
amado pelo seu superego[1].
O menino que não tenha tido
suficiente amparo da mãe poderá escapar de um sofrimento excessivo
identificando-se com o superego do pai e sentindo-se amparado por ele. Eu
alegorizo dizendo que o ser humano está seguro pisando um chão sólido
propiciado pelo amparo de uma mãe suficientemente boa. Quando a mãe não foi
suficientemente boa e o chão é então instável, no que ele poderá se segurar
será nas cordas lançadas pelo Pai Castrador a partir do mundo transcendente
platônico das idéias-modelos: não tendo a terra-mãe por esteio ele se guiará
pelas estrelas modelares do céu.
Um menino amparado pela mãe, mas
sem a referência edípica paterna, conservará --- já que não houve a
interferência de um pai castrador ---- as qualidades femininas da relação
primitiva com a mãe, tais como empatia, capacidade de identificação, compaixão,
desejo gregário, visão contextual, compreensão das fragilidades humanas. Aqui
cabe dizer que não ser castrado não significa não ter limites. Não há
necessidade de uma ação castradora para vivenciar limites. Os limites podem ser
colocados com delicadeza, respeitando-se a subjetividade do ser em
desenvolvimento[1].
O
mal-estar advindo da repressão – Modernidade
Freud
em “O mal-estar da civilização” na p.106 escreve: “Descobriu-se que uma pessoa se torna neurótica porque não pode tolerar
a frustração que a sociedade lhe impõe a serviço de seus ideais culturais,
inferindo-se disso que a abolição ou redução dessas exigências resultaria num
retorno a possibilidades de felicidade”[1].
Desejos e pulsões não realizados provocam
mal-estar. Um conflito entre a pulsão que quer se realizar e o superego que
impede esta realização provoca mal-estar. Os sintomas advindos do conflito
provocam mal-estar. Porém todos esses mal-estares estão referidos à presença de
um superego que é o representante do Pai, da Lei Social. É um mal-estar
amparado e aprovado pelo pai e pelas regras sociais e fazem com que a pessoa se
sinta incluída no grupo societário de uma maneira legítima, legal e correta.
Isto não impede que, em existindo um ideal de ego impossível de ser realizado,
o superego mantenha sua pressão crítica sobre o ego, produzindo mal-estar. Mas
é um mal-estar ancorado numa referência; é um mal-estar que mantém a pessoa
orientada no campo social. Estamos aqui na modernidade vitoriana dentro de um
sistema neurótico que recalca os aspectos femininos e se identifica com os
aspectos masculinos do pai, com o seu superego. O mal-estar está envolvido por
um modelo social e por um eixo moral, e a satisfação de estar tentando agir de
acordo com o ideal de ego contém uma qualidade de pertinência tranqüilizadora.
No fundo de todos os mal-estares está o sentimento de que a pessoa está
tentando agir irrepreensivelmente. É claro que existem prejuízos: na
criatividade, na abertura amorosa, na capacidade de compartilhar, etc. Em
princípio trata-se de um homem auto-suficiente, inclemente, com pouca abertura
para o afeto e a compreensão. É um homem do dever aderido estreitamente às suas
obrigações, controlado e atormentado pela culpa[1].
O
mal-estar da pós-modernidade – permissividade e ausência de limites
Diferente é o
mal-estar da contemporaneidade. O homem pós-moderno não se sente amparado por
um superego interno. Ele deverá procurar modos e meios de lidar com uma
situação em que um excesso de ofertas, um excesso de desejos e um excesso de
permissividade o torna confuso e desamparado. Como chegamos a isso? Vários
fatores: começarei falando de uma reação exagerada da sociedade à subjetividade
repressiva da modernidade e que veio a desembocar numa excessiva
permissividade. Vou contar um episódio acontecido comigo há anos e que pode ser
tomado como paradigmático: estava eu visitando um casal com um filho de
aproximadamente 11 anos e estávamos reunidos na mesa da cozinha. Por duas vezes
me senti desrespeitado não só pelo conteúdo das intervenções do filho, mas
também e principalmente pelo tom de sua voz. Dei-lhe uma moderada
descompostura. O casal nada falou. Mais tarde o pai me chamou para uma conversa
reservada e se justificou dizendo que ele, pai, tinha sido muito reprimido
pelos genitores e que por isso acabou dando uma educação excessivamente solta
para o filho. Este exemplo pode ser tomado como um cânone histórico. A
sociedade cansou-se da repressão, e, como de costume, exagerou no sentido
contrário.
A psicanálise
também influiu na mudança de subjetividade com o trabalho de desrepressão.
Freud esperava que os impulsos liberados seguissem um caminho sublimatório ou
que permitissem uma redistribuição racional dos recalques: “A análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior maturidade e
força, a empreender uma revisão dessas antigas repressões; algumas são
demolidas, ao passo que outras são identificadas, mas construídas de novo, a
partir de um material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é
bastante diferente do das anteriores; podemos confiar em que não cederão
facilmente ante uma maré ascendente da força instintual. Dessa maneira, a
façanha real da terapia analítica seria a subseqüente correção do processo
original de repressão, correção que põe fim à dominância do fator quantitativo”
[1]. Não
foi o que aconteceu. Os impulsos liberados encontraram livre trânsito na
sociedade de consumo. Este foi outro fator a contribuir para o descomedimento:
a passagem do capitalismo de acumulação para o capitalismo de consumo com suas
táticas de exacerbação dos desejos e de criação de novos desejos (cartão de
crédito, telemarketing, merchandising, etc.). Outros fatores: a revolução feminista
e a revolução sexual que abriram vastos horizontes para novas e liberadas
condutas; a queda dos ideais e das idealizações que funcionavam como bússolas
orientadoras de subjetividade e comportamento; o incrível desenvolvimento
tecnológico com ampla difusão da informação, ampla oportunidade de expressão e
trocas no contato que pode se estabelecer com todas as pessoas do mundo através
da Internet; potencialização da difusão de idéias e sentimentos através dos
blogs; uma tecnologia cada vez mais avançada que exige um engajamento crescente
do pai e da mãe no trabalho profissional com prejuízo para a assistência e
dedicação aos filhos. E, certamente, outros fatores.
A permissividade
atualmente se manifesta de alguma maneira em praticamente todas as áreas do
quefazer humano. As pessoas deixam-se levar por seus impulsos e são estimuladas
a isto. A arrumação estética dos vários produtos colocados à venda, a
propaganda inteligente e psicologicamente sofisticada, a apresentação contínua
de novos produtos atraentemente embalados atiçam os desejos humanos levando-os
a um consumo excessivo. Na família pai e mãe tendem a realizar todos os
caprichos dos filhos não conseguindo colocar limites. Eles temem de não serem
amados pelos filhos o que modifica as relações de poder. Isto tem a ver com um
desmanche do superego que já não tem força para, com sua aprovação, dar
tranqüilidade aos pais. Um superego e um ideal de ego fracos deixam em dúvida
se os valores estão corretos e se há de respeitá-los quando tantos o desrespeitam
a ponto de não se saber mais quais os valores vigentes de fato na sociedade. A
relativa ausência dos pais dificulta os processos de identificação da criança
tornando-a insegura e vulnerável. As babás, os programas de televisão, a
internet, o grupo etário de iguais entram neste vazio deixado pelos pais
induzindo identificações múltiplas causadoras de confusão. Na escola a ordem
unida e a noção de dever foram deixadas de lado e substituídas pelas noções de
singularidade, liberdade, criatividade. Esta tríade que bem usada faria da
educação um extraordinário instrumento de transformação ética da subjetividade
é, em muitas escolas, por vários fatores, desperdiçada. Há uma charge aparecida
há algum tempo em um dos jornais ou revistas que mostram a diferença entre a
modernidade e a pós-modernidade na escola. Na primeira figura vemos os pais
ouvindo a orientadora pedagógica e dispondo-se a tomar providências em relação
ao mau comportamento ou mau aproveitamento do filho. Na segunda os pais
aliam-se aos filhos culpando a escola pelos problemas pedagógicos e de
comportamento eximindo-se, eles próprios, de responsabilidade. Esta é outra
característica encontrada na pós-modernidade. O “lavar as mãos” dos pais, o
laissez-faire, a falta de disposição de participar ativamente da educação e da
aculturação do filho. Os pais entregam à escola a tarefa de educá-los. Na
modernidade chegada a época da inclusão do filho na sociedade o pai ativamente
orientava o filho, impondo-lhe caminhos e abrindo-lhe as portas da sociedade. Com
caminhos previamente traçados evitava-se a angústia da escolha. Havia sim a
consternação de seguir um caminho cominado pelos pais, a frustração de não
poder seguir a sua vocação e de construir sua vida segundo sua singularidade
com todas as conseqüências psicológicas da repressão castradora conforme já
visto ao falarmos mal-estar neurótico.
Das várias
características do borderline “normal” (homem pós-moderno) as que nos
interessam aqui é seu processo psíquico de clivagem, sua porosidade, sua
tendência ao ato, sua onipotência mitigada. Sem um superego forte e com um
ideal de ego confuso (desaparecimento das ideologias, problemas na área de
identificação, etc.), não tendo reprimido, como o neurótico, seus pequenos eus
que então permanecem acessíveis à consciência com seus múltiplos desejos e
encontrando um mundo rico de estímulos e ofertas, ele se sente desorientado,
confuso, desamparado sem saber o que escolher. Isso pode levá-lo a buscar uma
figura magicamente protetora/orientadora: busca de função mãe e de função pai.
Neste caso ele apresentará uma viscosidade, uma fixação, uma dificuldade de
separação, um estreitamento de horizontes (Bergeret o chamaria de sujeito
anaclítico com tendências depressivas[1]). Em
não tendo feito suficiente identificação com os pais na infância, as valências
identificatórias[1]
permanecem abertas e podem se dirigir para as figuras de mãe e/ou de pai
mantendo-o aprisionado a estas figuras. Ou as valências abertas podem se
dirigir e redirigir para um mundo em permanente movimento permitindo-lhe assim
acompanhar as transformações da sociedade e da cultura. O seu mal-estar tem um
quinhão maior de desamparo que o mal-estar do neurótico. O neurótico, como já
vimos, tem o seu mal-estar em cima de uma plataforma de dever, de exigência e de
aprovação do pai e da sociedade representados pelo superego. Já o mal-estar do
borderline não está fundeado em elementos internos. É um mal-estar de quem está
num mundo rico, cheio de incitações e que precisa escolher um caminho que
combine com seus gostos e sua vocação. Nesta escolha ele se sente desorientado
e muitas vezes cai num estado de inércia, de niilismo, de depressão, de
ansiedade ou mesmo de desespero. “O que quero fazer de minha vida?” “Diante de
tantas ofertas o que escolher? O que realmente quero?” “Quem, afinal de contas,
sou eu?” “O que é a vida? Vale a pena viver? Ou é melhor morrer?”. Estas são
suas aflitivas perguntas. Um cliente meu foi educado por uma mãe que não só lhe
dizia que conseguiria o que quisesse como o provia, com sacrifício, de meios
para isso. Esta mãe realizava os desejos do filho. Tudo o que ele insinuava lhe
era fornecido. Sua sensação era de que o mundo estava aos seus pés com a
obrigação de satisfazer imediatamente os seus desejos. A ele cabia ficar parado
esperando ser atendido, sem precisar se movimentar para conseguir o que quer
que fosse. Quando finalmente arriscou-se timidamente a sair do colo da mãe,
encontrou obstáculos -- para ele inesperados -- no que tentou realizar, o que o
fez mudar de rumo várias vezes à espera que o seu prometido destino se
cumprisse. Só aos poucos a realidade, a dificuldade de abrir um espaço
profissional, começou a se impor. Está agora passando por um período de
interrogações e de depressão que tem a ver com a perda da onipotência, o que está
sendo muito duro para ele, mas está conseguindo sair de sua inércia buscando
ativamente (proativo) seu caminho e obtendo resultados.
A idéia de um
superego frouxo da mulher aludido por Freud[1] nós o
encontramos no homem pós-moderno independentemente de sexo. Este superego
frouxo é permeável às influências externas e está apto a acompanhar as rápidas
transformações da sociedade. O superego permeável é conseqüência da manutenção
do modo de ser feminino, o que acontece quando a colocação de limites é feita
sem intervenção castradora. Mantém-se
assim uma porosidade que permite acompanhar as rápidas transformações da
sociedade. Temos um ego e um superego não solidificados, mas líquidos e,
portanto capazes de encontrar caminhos criativos diante das surpresas que a
hipermodernidade oferece. O homem hipermoderno flutua criativamente nas ondas
do devir respondendo imediatamente às suas transformações. (a propósito
descobriu-se que os gens estão sujeitos a influências externas, coisa
impensável até a pouco tempo). Este o aspecto positivo do borderline que tendo
evitado a doença constitui-se em um ser da normalidade hipermoderna, justamente
um ser adaptado a esta realidade.
O borderline
light que é o homem pós-moderno tem as suas valências identificatórias abertas.
Quando as valências identificatórias mãe não foram suficientemente bem vividas,
existe um desamparo que provoca um extremo desconforto que pode levar às
drogas, à agressividade, à perversão, à condição borderline grave, aos sintomas
psicossomáticos. A agitação provocada pelo desconforto está relacionada à falta
de uma base afetiva; este ser humano não se sente aceito nem participante do
mundo. As valências identificatórias abertas e desorientadas levam em primeira
instância à busca de uma personificação de mãe. O pulo do gato é poder
direcionar as valências identificatórias abertas para o mundo, para a cultura,
para a natureza, para a beleza. Poderia ser um dos caminhos da terapia, mas
certamente é um caminho cheio de ciladas. É preciso que o analista, uma vez
solicitado, aceite ser a mãe, mas uma mãe que direciona as valências
identificatórias que passam por ela, para o mundo. Neste processo o analisando
pode se sentir rejeitado entendendo que a mãe o joga para o mundo por não
desejá-lo. E teremos de lidar com este sentimento com uma delicada sutileza.
Exemplos de borderline grave e
borderline light
Apresentarei
o mal-estar de um borderline pesado em comparação a um borderline light
(próximo da normalidade). O borderline pesado teria tido problemas de relacionamento
com a mãe na fase de separação/individuação, isto é, na passagem da dependência
absoluta para a dependência relativa. O borderline próximo do normal teria tido
uma mãe suficientemente boa. Quando esta mãe boa é excessivamente permissiva e
a esta permissividade alia-se a uma permissividade paterna também excessiva os
aspectos e processos femininos são resguardados sim, mas ao mesmo tempo surgem
dificuldades na relação do borderline com a realidade.
Exemplo de borderline pesado
Pedro
é um jovem adulto da classe média, casa dos 20, mora com os pais, não trabalha
e acabou de abandonar a Faculdade. A sua sintomatologia é múltipla e variada o
que é uma característica do borderline; Vejamos: conversão (paresia -
semi-paralisia da mão direita). Crises de grande ansiedade. Crises de grande
depressão. Diarréias súbitas (somatização). Tinha medo de sair à rua e quando o
fazia sentia-se superior aos transeuntes e temia ser atacado por eles. (Fobia;
sentimentos paranóides; sentimentos de superioridade e desvalia). Sentia-se
olhado pelos passageiros da barca que o estariam criticando por não trabalhar.
Sentimentos de rejeição em relação aos pais. Ia muito a festas onde participava
de desordens. Em uma delas, por exemplo, foi expulso juntamente com outro rapaz
por estarem se excedendo, derramando bebidas no chão, jogando pratos fora e
beijando-se publicamente (conduta psicopática). Pedro mesmo fora de festas
embriagava-se. Também fumava maconha. Certa ocasião, em uma bacanal, levou uma
moça para um quarto onde ela se recusou a ter relações sexuais; esbofeteou-a,
urinou sobre ela e chamou amigos para que juntos a currassem (conduta
perversa). Participa de arruaças. Tem predominantemente relações
heterossexuais, mas já teve atividades homossexuais. Muda de itinerário por medo de encontrar um
guarda que o leve à prisão. Isto é mais forte quando está “levando uma mulher”
para um motel. O percurso é feito com enorme ansiedade, com medo de ser
interpelado por um guarda.
A idéia “borderline próximo da normalidade”
surgiu a partir de meu convívio social e de minhas relações intersubjetivas
dentro e fora do consultório. No consultório o analisando mostrava-se exigente
quanto à minha atenção, desejando-a ilimitada, com extrema dificuldade de
aceitar separações e frustrações, dificuldade de respeitar o setting,
impulsivo, confuso, susceptível, com um discurso não pautado pela lógica
cartesiana, com desejos múltiplos e contraditórios, e, o que na época me
pareceu muito interessante, necessitando de se cercar de um grupo de pessoas
com as quais estabelecia uma dinâmica intersubjetiva capaz de mantê-lo em
estado de equilíbrio psíquico instável. Pois bem, na vida fora do consultório
algumas das pessoas que eu conhecia apresentavam características semelhantes, porém
atenuadas o que provocava um maior ou menor mal-estar, mas não as impediam de
convivência humana, de trabalhar, de se divertir e de ter algum tipo de relação
amorosa. Mais tarde vim a pensar que um coktail equilibrado de borderline e
neurótico era a melhor receita para se viver num mundo confuso, instável, e que
demanda uma capacidade criativa múltipla e produtiva o que implica ao mesmo
tempo em dispersão e concentração.
Exemplo de borderline light
Paula:
tem uma intolerância à frustração que a faz reagir irracionalmente e com
intensidade; em pouco tempo, porém retorna ao princípio de realidade, agindo
adequada e produtivamente, embora guardando por algum tempo o alarme de ter
passado pela frustração. Os objetos inanimados ao mesmo tempo em que permanecem
como tais adquirem uma individualidade humanóide. Quando um destes objetos a
frustra tem sentimentos de desamparo e mágoa. Um exemplo disso está na relação
de amor que fez com o seu carro que inclusive tinha um nome próprio. Certo dia
ele enguiçou e ela, sentindo-se traída bateu no carro com toda força, chorando
e gritando, perguntando-lhe por que tinha feito aquilo com ela, ela que o amava
e o tratava tão bem. (no borderline as emoções transbordam e precisam ser
descarregadas. O senso de realidade é peculiar. Assemelha-se a dos índios que
atribuem sentimentos a objetos). Outro episódio: em um vôo de muita turbulência
ela, aparentemente calma, chamou a comissária de bordo e disse que precisava
falar com urgência com o piloto para lhe dizer que devia se desviar das zonas
de turbulência. Existe aí a perda do senso de realidade provocada por uma
intensa emoção de medo, mas que se manifesta de uma forma aparentemente
tranqüila, através de uma solicitação serena da presença do piloto. Sem dúvida
a forte emoção a coloca fora da realidade convencional, e a faz regredir para
uma onipotência mitigada (como se ela, sem conhecimento nenhum de aviação,
pudesse orientar o piloto). Ao diminuir a turbulência diminui seu medo,
recupera sua capacidade crítica e ri de si mesma. Ao mesmo tempo em que
consegue ser objetiva no trabalho, tem uma imaginação que a faz construir
hipóteses sem consistência, hipóteses que têm mais a ver com suas concepções e
desejos. Mas a realidade é logo aceita. Somatiza bastante. Faz relações porosas
em geral o que a faz sofrer em excesso com as decepções e fracassos dos amigos,
mas que, por outro lado, faz com que ela sinta grandes alegrias com suas
vitórias. É benquista e consegue, com tempo, paciência e montanhas russas
emocionais que ela vive privadamente, seus objetivos através de uma relação
compreensiva e amorosa que vai lhe permitir, após a conquista da admiração e
afeto do outro, ser mais firme quando isto for necessário. Desta maneira, com
esforço e competência, obteve prestígio em seu ofício sendo muito solicitada
como profissional e como amiga.
As
montanhas russas emocionais têm a ver com uma divisão afetiva. Ela, em
princípio, ama as pessoas confiando na bondade absoluta delas. Quando decepcionada
passa por um período de ódio até recuperar o afeto positivo inicial. Trata-se
de uma divisão, mas não uma divisão em que um objeto único divide-se em dois,
como acontece na divisão esquizóide. É uma divisão na área afetiva. O objeto
permanece unificado, amado na maior parte do tempo e odiado quando ultrapassa
certo nível e qualidade de frustração. Caracteristicamente tanto a raiva quanto
o amor são absolutos, excluindo o sentimento contrário, o que permite o
descarrego total do afeto.
Reproduzo
aqui um longo trecho de meu artigo “Borderline, identificação e subjetividade
pós-moderna[1]”
para apresentar a diferença teórico-clínica entre borderline light e borderline
pesado:
O borderline pesado é
polissintomático, ambulatório, com dificuldades nas relações pessoais por sua
fragmentação ou por suas necessidades narcísicas exacerbadas, com tendência à
atuação, com problemas na área afetiva, com questões nas áreas das
identificações e identidade, necessitando de uma circunvizinhança humana para
atuar os seus fantasmas, com labilidade de humor, com tendência à exagerada
dependência afetiva muitas vezes reativamente negada, usando excessivamente a
identificação projetiva e introjetiva, com extrema sensibilidade e
susceptibilidade, incomumente e seletivamente permeável ao próprio
inconsciente, ao inconsciente do outro e à subjetividade circulante.
Se
peneirarmos o borderline acima de maneira a obter a farinha purificada do
borderline brando, sobrará a tendência à atuação, a necessidade
afetivo/dinâmica de uma circunvizinhança humana para nela atuar seus fantasmas
e realizar seus desejos infantis, o uso da dissociação/compartimentação e da
onipotência mitigada de forma não incompatível com o social, a extrema
sensibilidade, a incomum permeabilidade ao próprio inconsciente, ao
inconsciente do outro e à subjetividade circulante; tal permeabilidade
permite-lhe identificar-se continuamente, em devir, com o que o rodeia. A essa
identificação dei o nome de "identificação dual-porosa",
"identificação transital", "identificação contínua", e,
posso agora acrescentar, "identificação em devir"[1].
O
borderline brando tende mais à multiplicidade do que ao polissintomático, o que
significa que ele não inibe os vários aspectos de sua personalidade em favor de
um único aspecto, mantendo as suas várias potencialidades disponíveis para
serem usadas. No que diz respeito à sensibilidade/susceptibilidade narcísica
ela apresenta-se menos como uma ferida e mais como um instrumento de
conhecimento do outro; a permeabilidade das fronteiras do eu, que poderia
torná-lo vulnerável às afetações do outro se mantém como sensibilidade que
permite conhecer o outro, propiciando o desenvolvimento de afetos e sentimentos
pertinentes à relação em curso. Assim, ao invés de um fechamento nas próprias
fantasias, há uma abertura para o conhecimento das fantasias do outro. A
permeabilidade das fronteiras, que no borderline pesado pode ser usada contra o
outro ou pode dar lugar a um excesso de identificação projetiva e introjetiva,
no borderline brando muda de qualidade, transformando-se em identificação
dual-porosa, uma identificação que permite um regime de trocas fantasmáticas e
afetivas contínuas entre os seres humanos entre si e com o mundo circundante. A
porosidade tanto funciona em relação ao mundo externo (a um outro humano, sim,
mas também em relação à cultura, à natureza, ao planeta), quanto ao mundo
interno, isto é, na percepção do próprio inconsciente. Em se tratando do
borderline brando, as trocas fantasmáticas e afetivas ocorrem em um espaço potencial
ou a ele equivalente, o que significa que ao objeto subjetivo superpõe-se o
mesmo objeto objetivamente percebido. A identificação dual-porosa mostra-se um
precioso instrumento de conhecimento, relação e comunicação, permitindo surfar
nas ondas do devir, possibilitando ao borderline deslizar e se enlear nas sutis
e infindas variações de um mundo em constante mutação. A tendência à
dependência do borderline pesado, traduz-se no borderline brando pelo
reconhecimento da necessidade afetiva de um outro também dual-poroso, de tal
maneira que um regime de trocas, onde vigore tanto o subjetivo quanto o
objetivamente percebido, possa ser estabelecido.
O
estado de identificação em devir encontrado no borderline brando (o homem
pós-moderno) entrelaça-o à subjetividade contemporânea como sujeito criativo e
transformador.
Mal e bem-estar dos neuróticos e
borderlines normais.
A
repressão/recalque do neurótico é fonte de mal-estar, mas também de certa
tranqüilidade conseguida à custa de alguma modificação da espontaneidade e
criatividade: tudo previsto, tudo em seus lugares, mas por vezes, uma sensação
de vida repetitiva, sem novidades.
A porosidade do borderline pode ser fonte de
intensa alegria e de grandes sofrimentos. A onipotência mitigada fonte de
grandes realizações ou de grandes fracassos. A dispersão pode ser improdutiva
ou de uma múltipla riqueza produtiva. A inquietude pode ser um motor de
comportamento pró-ativo ou causa de niilismo. As valências insaturadas podem
levar a uma busca insana de figuras maternas de saturação, ou ao acompanhamento
do devir do mundo, à fruição da beleza.
O
homem pós-moderno que até segunda ordem é o borderline normal, com sua
onipotência mitigada, sua tendência a ação, seu imediatismo, sua necessidade de
aprovação e realização elabora muitas vezes planos mirabolantes que quando dão
certo representam um salto no conhecimento humano, e/ou um salto na vida do
borderline, trazendo-lhe imensa satisfação. Se, porém, o plano falha, passa da
onipotência para a impotência e pode cair em depressão muitas vezes disfarçada
em hipomania. As inúmeras repetições deste padrão reduzem cada vez mais seu
sofrimento na passagem da onipotência para impotência. Já o neurótico reprime a
onipotência/impotência infantil podendo encarar os seus fracassos como passos
de uma trajetória maior. Com isto ele não se sente nem onipotente nem
impotente, mas simplesmente potente, aceitando os limites de sua capacidade de
realização. Ele progride vagarosamente por etapas e acumulação, tendo condições
psicológicas de esperar a chegada de benefícios no futuro. O borderline, não:
ele espera sempre a vitória para já, e cai em depressão quando fracassa, pois
passa da onipotência para a impotência. O neurótico é o pensador meticuloso que
se aproxima vagarosamente de sua meta usando principalmente sua objetividade. O
borderline quer ser imediatamente bem sucedido e para isso ele conta com sua
intuição, seu charme, sua onipotência mitigada, sua capacidade de manipulação.
Muitas vezes seu produto é realmente revolucionário e útil quando então se
reforça o seu sentimento de onipotência. Caso contrário pode cair em séria
depressão ou um de seus equivalentes.
O
processo de dissociação faz com que os vários eus desejantes do homem
pós-moderno permaneçam à sua disposição. Como muitas vezes eles se revezam, o
borderline que prometeu não é o mesmo que não cumpriu. Estamos lidando com
pequenos eus dissociados. Não há culpa, pois não há recalque nem ação
superegóica. O que acontece é ele sentir vergonha quando cobrado ou repreendido
pela pessoa ou organização prejudicadas. Se não houver reclamação não aparece a
vergonha. A vida profissional, social e cultural da atualidade com seu excesso
de ofertas facilita este comportamento. A desvantagem seria ele ficar
desacreditado e não mais ser procurado. Mas como esse comportamento dissociado
está generalizado ele poderá não cair no ostracismo desde que tenha um mínimo
de cuidado. Já o homem moderno cumpre sua promessa, custe o que custar e isso
pode significar a perda de algo valioso. Também sofre de intensa culpa quando
por algum motivo imperativo falta com sua palavra.
Duas situações de mal-estar
próprias da atualidade
1-
quando os ganhos pecuniários, ou a posição de poder da mulher forem superiores
ao do companheiro este, ainda influenciado por uma subjetividade moderna,
poderá sentir-se inferiorizado e sentir inveja da consorte, provando um
mal-estar na relação. 2- O excessivo individualismo próprio de nossa época
tornam as marcas identitárias inegociáveis inviabilizando a relação afetiva e
amorosa.
Finalmente
uma palavra de encerramento. Estamos em um período difícil de confusão de
valores, de escroqueria, de corrupção generalizada, de falta de limites, de
desrespeito ao próximo, de desconsideração pelo outro, etc. Esta situação tem a
ver com o declínio do patriarcalismo autoritário que não era flor que se
cheirasse, mas que deixou um vácuo ainda em processo de elaboração. Como parte
da natureza, a espécie humana tem um instinto de sobrevivência que, tenho fé, a
levará a encontrar soluções a partir da situação existente, sem ter que voltar
ao autoritarismo destrutivo do passado. Observo uma feminilização geral da
sociedade com os homens esbanjando ternura para com seus filhos, querendo
acertar a mão na educação, cuidando de bebês, capazes de ternura e compaixão.
As empresas se humanizam, pois assim as pessoas ficam mais felizes e produzem
melhor com menos stress o que convém tanto aos empregados quanto aos
empregadores que aumentam seus lucros. Vemos inúmeros exemplos de altruísmo. Existem
escolas promovendo uma educação ecológica.
Por toda parte pipocam sinais de que um novo mundo está sendo construído
a partir da situação humana e tecnológica atual. Acredito que a evolução do
borderline de uma situação de identificação projetiva para um estado
dual-poroso[1]
ajudará neste progresso. Neste movimento o homem passará da valorização da
imagem pública para a valorização da honestidade – reconhecimento de suas
dificuldades psicológicas e de sua participação no estabelecimento de relações
humanas. Ele não mais lançará mão das palavras honra, pundonor, para esconder
suas dificuldades. Ao invés de pensar “ele está me ofendendo” sua frase
passaria a ser “o que será que há de verdade no que me foi dito?”. Estou
novamente falando numa situação de mal-estar, mas agora um mal-estar produtivo.
Nahman Armony
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