CASTRAÇÃO E LIMITE

CASTRAÇÃO E LIMITE
Nahman Armony
Castração é um termo usado pela primeira vez como conceito psicológico/psicanalítico por Freud e é a esta castração que vou me referir nas próximas linhas. A castração pertence ao campo do neurótico e o limite ao campo do borderline. A castração, palavra evocadora de brutalidade, duramente imposta, e que em Freud se refere à proibição do incesto com a mãe, é, quando examinada de um ponto de vista mais amplo, uma metáfora da injunção ao abandono de características femininas como empatia, identificação dual-porosa, etc., para poder se tornar um verdadeiro Homem. Ser homem com H maiúsculo é proibir o feminino no menino e no adulto do sexo masculino, estimulando a dureza, a implacabilidade, a impiedade.
Já na colocação de limites, o carinho e sensibilidade da mãe no trato com a criança presentificam modos de relacionamento e valores que não à-toa chamamos de femininos tais como empatia, dual-porosidade, compaixão, percepção sutil, intuição, atividade conciliadora, etc. Estas características se conservarão nos meninos e nos homens adultos desde que não haja uma interferência castradora. Nesse caso os modos de relacionamento e os valores da mãe advindos da relação afetuosa com o filho são preservados, só aparecendo a questão do incesto e fixação materna em situações de desenvolvimento distorcido quando então uma ação terapêutica se faz necessária. A castração é um conceito cunhado por Freud e refere-se em uma ação dura, cruel, enquanto que a colocação de limites nós a encontramos nos escritos de Winnicott como uma atividade realizada com amorosidade. Seguem-se citações de Freud e Winnicott.
Freud: “O superego conservará o caráter do pai, e quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rapidamente se produziu a sua repressão (pela influência da autoridade, a doutrina religiosa, a educação, a leitura), tanto mais rigoroso será depois o império do superego como consciência moral, talvez também como sentimento inconsciente de culpa, sobre o ego”[1]. Outra citação de Freud: “O superego reteve características essenciais das pessoas introjetadas — a sua força, sua severidade, a sua inclinação a supervisar e punir. Como já disse noutro lugar, é facilmente concebível que, graças à desfusão de instinto que ocorre juntamente com essa introdução no ego, a severidade fosse aumentada. O superego — a consciência em ação no ego — pode então tornar-se dura, cruel e inexorável contra o ego que está a seu cargo. O Imperativo Categórico de Kant é, assim, o herdeiro direto do complexo de Édipo”[2].
Winnicott: “Fica claro que, de acordo com a teoria que uso em meu trabalho, você está possibilitando ao seu filho desenvolver um sentido de certo e de errado ao ser uma pessoa confiável nessa fase formativa inicial das experiências da vida dele. Se não tiver êxito com o seu bebê desse modo (e certamente se sairá melhor com um bebê do que com um outro), terá de tirar o melhor proveito possível de ser estritamente um ser humano, embora saiba que coisas muito melhores poderiam estar acontecendo no processo de desenvolvimento natural da criança. Se fracassar por completo, então deve tentar implantar idéias de certo e errado através do ensino e do treinamento assíduo. Mas isso é um substituto para o procedimento realmente válido, é uma confissão de fracasso e você vai detestar essa idéia; e, em todo caso, esse método só funciona desde que você, ou alguém atuando no seu lugar, esteja presente a fim de impor a sua vontade. Por outro lado, se puder dar a partida para o seu bebê de modo que, através da sua confiabilidade, ele desenvolva um sentido pessoal de certo e errado, em vez de medos primitivos e toscos de retaliação, você descobrirá mais tarde que pode reforçar as idéias de seu filho e enriquecê-lo com as suas próprias idéias”[3].
A distinção entre a castração freudiana e o limite winnicotianno é tão mais nítida quanto mais radical e traumática é a castração. Na subjetividade neurótica o acesso ao feminino do homem é impedido mediante esta ação castradora. Na prática esta castração é principalmente exercida pelo pai que impede o acesso da criança aos seus aspectos femininos de empatia, capacidade de identificação, sensibilidade sutil, etc. Hoje, na classe média educada e informada a brutalidade castradora encontra-se atenuada e pode-se mesmo dizer que está se espalhando uma ação não mais de castração, mas de colocação de limites. Quando falo de castração penso em violência em seus diversos graus. Quando falo de limites também penso em graus de tranqüilidade, amorosidade, respeitadoras da subjetividade da criança. Gosto de usar para a castração a imagem de um muro compacto contra o qual a criança irá se chocar e se machucar; já o limite eu o vejo como uma cortina de veludo, macia e flexível que oferecerá proteção e limite à criança sem machucá-la. O pai impiedosamente castrador do século XIX que vemos em filmes como “A fita branca” está desaparecendo nas classes médias dos centros urbanos. Os pais em geral são amorosos com os filhos e as proibições são realizadas de uma forma delicada, carinhosa e sensível. A repressão que vem dos pais já não é mais traumática, castradora, violenta e isto faz uma diferença. Considero este item da maior importância para o futuro psicológico do ser humano.  Por esta razão vou me estender nesse assunto.          Sabemos que as proibições que a criança impõe a si mesma podem ser muito intensas mesmo quando os limites são dados por uma figura benigna. Esta benignidade tem sua importância, pois evita a introjeção de uma personificação despótica. A pressão que a criança necessariamente tem de exercer sobre si mesma para conter seus desejos imaturos emanam da força ditatorial das palavras em si e não do pavor/pânico provocados por uma figura tirânica assustadora vociferando ordens. Esta nova maneira de colocar limites muda a qualidade do recalque e permite que processos de divisão do eu tenham um lugar mais proeminente no psiquismo.
O que quero dizer com recalque benigno? Vou abusar da boa vontade dos colegas, expondo uma outra variante da diferença existente entre um recalque provocado por palavras de ordem e outro modo de recalque que inclui uma ação repressora dura de uma figura tirânica. Desenvolvendo: recalque de boa qualidade foi uma expressão que encontrei para distinguir o recalque feito de si para si, do recalque oriundo de um trauma externo maligno(Winnicott) por choque ou por tensão cumulativa (Kris, Khan): o bebê e a criança necessitam de obsessivamente repetir para si mesmas as proibições e exercer uma suficiente pressão para conseguir conter seus desejos. Vemos então uma criança dizendo para si mesma em voz de comando: “não pode”. Acho que devemos distinguir esta voz de comando à qual a criança recorre para a aceitação de limites (que podem ter sido colocados pelos pais com a maior doçura) da imposição severa e insensível dos pais. Eu chamaria a primeira de proibição autoinduzida na qual não se dá a introjeção de uma Personificação de Pai autoritária e insensível, e a segunda de proibição autoritária na qual uma Personificação de Autoridade de Direito Olímpico Inabalável e Incontestável se impõe como figura ameaçadora. No primeiro caso o bebê e a criança criam uma proibição adequada às suas necessidades psicológicas e no segundo caso a invasão castradora não respeita a organização psíquica forçando sua entrada no psiquismo do bebê e lá deixando uma marca. Uma marca diferente da marca que o próprio bebê se coloca, pois a que ele se coloca está dentro de suas possibilidades de suportar o trauma sem uma quebra significativa da continuidade de ser. Usando os conceitos que Winnicott apresentou no artigo “O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família” (em Explorações Psicanalíticas, p.114) podemos dizer que a auto-imposição do bebê e da criança é um trauma benigno enquanto que a imposição dura, severa e insensível dos pais é um trauma que será tanto mais maligno quanto mais ríspida e insensível for a intervenção paterna. Neste caso o pai será internalizado como uma Entidade Maligna Invasiva e não como um pai amoroso protetor.



[1]FREUD, S.- “O Ego e o Id” Vol.XIX da Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.36.
[2] FREUD, S. (1924) O problema econômico do masoquismo. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.208-209. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.)
[3]WINNICOTT, D.W. - “O desenvolvimento do sentido do certo e do errado em uma criança” in Coversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.125-126. 

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