WINNICOTT E A CRIATIVIDADE PRIMÁRIA


Winnicott nos fala de uma criatividade primária. Seria uma criatividade que surgiria a partir da subjetividade pura, ainda sem objeto. Um bebê com fome tem uma sensação física. Esta sensação física vem acompanhada da uma atávica intuição de que existe um objeto que poderá aliviar esta fome. É uma sensação vaga, nebulosa que vai se delineando cada vez mais claramente na medida em que as experiências de mamada em um seio se repetem. Usando uma linguagem fotográfica, a resolução é cada vez mais nítida. O objeto que se vai delineando, a princípio não tem existência própria. É criação e parte do bebê, pois o bebê ainda não tem noção  de eu e outro. Mas ao mesmo tempo em que o objeto seio/mãe/circunstâncias vai se tornando mais nítido o bebê começa a distinguir o eu do não-eu até o ponto de criar para si o objeto e o espaço transicional. O mesmo objeto que era apenas ele – um paninho encostado no rosto -- quando chega o momento, transforma-se em um objeto transicional externo e interno ao mesmo tempo. Pois bem, enquanto o objeto é apenas subjetivo, isto é, não há distinção entre eu e não-eu a criatividade é chamada de primária. Portanto a  criatividade primária tem a ver, conceitualmente com subjetividade pura. Como estava dizendo acima a dor da fome sofre uma “elaboração imaginativa de função” e aparece como aquela sensação vaga e indefinida de existir um objeto que corresponde à fome. Quando surge o seio o bebê dirá “Ah aqui está o objeto que eu elaborei imaginativamente a partir da função digestiva”. A sensação vaga é elaboração imaginativa de função que recebe um reforço com o aparecimento do seio, mas que do ponto  de vista do bebê continua a ser uma elaboração imaginativa da função digestiva. Só quando ele distingue o eu do não-eu o aperfeiçoamento da figura do seio deixa de ser elaboração  imaginativa de função para ser um tomada de conhecimento do mundo exterior. Como o seio continua investido de fantasias o objeto seio agora é subjetivamente concebido como o fora no época inaugural e objetivamente percebido. Há uma junção aqui do subjetivo com o objetivo.
O outro tipo de criatividade tem origem no espaço transicional. E aqui criatividade tem a ver com contacto vivo com o mundo externo. Significa dar um sentido à vida. Significa sentir que o mundo lhe pertence e que ele pertence ao mundo. Esta sensação tem seu precursor na dependência absoluta onde o bebê é onipotentemente o mundo, é onde ele tem a sua experiência de onipotência. Sua segunda etapa nós a encontramos na experiência de transicionalidade, de espaço, objeto e fenômenos transicionais, onde ele já reconhece a realidade externa (objeto objetivamente percebido), mas impregna este objeto de subjetividade (ursinho, etc.) Enquanto protegido pelos pais e enquanto intelectualmente imaturo, predomina o subjetivamente concebido. Aos poucos a objetivo torna-se uma necessidade e encontram-se várias formas de mistura e convivência do subjetivamente concebido e objetivamente percebido. Formas estas às quais eu já me referi acima.
A criatividade depende de uma mãe suficientemente boa capaz de um holding adequado, isto é, um holding que permita o bebê aceder ao espaço transicional. Eu já disse que o holding é uma nova maneira de viver e ver a vida, uma nova perspectiva, diferente do autoritarismo, dever, imposição, falso self, etc. Juntamente com o holding temos a espontaneidade, o espaço transicional, o verdadeiro self.
Jan Abram no seu livro “A Linguagem de Winnicott” adverte que o “ato criativo (como o pintar, o dançar, etc.) não é um sinônimo de viver criativamente. O viver criativamente tem mais a ver com a força vital que lança mão dos instintos para tornar-se um objeto ontologicamente presente no mundo. Esses instintos evocados pela força vital dão existência ao viver criativo. O viver criativo tem a ver com um sentimento de pertencimento ao mundo; tem também a ver com a capacidade de encontrar a poesia e a arte na coisas mais simples existentes no Universo. Isso fica muito claro no filme Paterson onde um simples objeto inanimado é olhado cuidadosamente, intensamente, ganhando uma aura                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  divinal que é pura poesia. ‘A criatividade primária apresenta-se como um impulso inato que se dirige à saúde’ (frase de Jan Abram apresentando uma ideia de Winnicott). Ao impregnar um objeto ou um fenômeno de criatividade primária estaremos na vigência do que Winnicott chama simplesmente de ‘criatividade’.

  

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