DE ÉDIPO A NARCISO




Dentre os mitos gregos Freud escolheu o de Édipo para dele fazer um centro ao qual a psicanálise reenvia o sintomático e o estruturado, borrando os limites entre normalidade e anormalidade. Tal escolha - juntamente com sua interpretação, emergiu das condições epistêmicas e subjetivas da época em que o mestre viveu.

Teorias nascem em um determinado momento histórico e estão por ele condicionadas. Trazem em seu bojo a visão de mundo da época, os seus problemas e contradições e apontam para os seus possíveis desdobramentos. Assim é a revolucionária teoria freudiana. Ela se assenta sobre a episteme da sua época mas aponta para uma nova episteme; na formação de seus conceitos infiltra-se a mentalidade do século XIX, o que transforma a teoria em uma espécie de testemunha, de denúncia e também, de indicação de caminhos de transformação dessa própria mentalidade e episteme.

A escolha de Freud da tragédia de Sófocles para a rentrée de Édipo, sua concepção da origem da sociedade organizada exposta em “Totem e Tabu”, sua teoria da instalação do superego no menino, são reveladoras da violência de uma sociedade patriarcal no apogeu de sua ideologia fáustica; uma ideologia que separa razão de emoção, homem de mundo, sujeito de objeto e que acredita que o racionalismo científico - cujo paradigma é o da simplificação[1] - é a melhor abordagem para as questões não só das ciências exatas como das disciplinas sociais; uma ideologia patriarcal montada em uma epistemologia excludente, em um modo de comunicação e relação indiretos, necessitados de um terceiro para se exercerem; uma ideologia que usurpa a visibilidade do maternal.

A teoria edípica da psicanálise é uma testemunha viva da repressão e do recalque dos aspectos da relação-matriz materno-infantil e da tentativa de torná-la inoperante no mundo dos homens adultos. E aqui refiro-me tanto ao mundo interno - recalque - quanto ao externo: o maternal e a mulher eram cuidadosamente segregados do mundo cultural (stricto sensu), numa tentativa de impedir que os aspectos da relação matriz materno-infantil viessem perturbar as decisões racionais e necessariamente impiedosas decorrentes de uma ideologia fáustica triunfalista.

A segregação da matriz materno-infantil para ser realmente eficiente tinha de sofrer um recalque. Para este fim erigiu-se um superego terrível e implacável:



“De fato este superego é o sub-rogado tanto do id como do mundo exterior. Deve sua gênese à circunstância de que os primeiros objetos das moções libidinais do id, o casal de pais, foram introjetados no ego, razão pela qual o vínculo com eles foi dessexualizado, sofreu um desvio das metas sexuais diretas. Somente desta maneira foi possível a superação do complexo de Édipo. Pois bem, o superego conservou os caracteres essenciais das pessoas introjetadas: seu poder, sua severidade, sua inclinação à vigilância e ao castigo (...) Agora o superego, a consciência moral eficaz dentro dele, pode tornar-se duro, cruel, desapiedado com quem tutela. Desse modo, o imperativo categórico de Kant é a herança direta do complexo de Edipo”(FREUD)[2].



Nesta citação, onde a impiedade do superego aparece claramente, pode-se também interpretar - desde que se adote uma perspectiva de penetração histórica e social - a dessexualização e o desvio de metas sexuais diretas, como recalque da sensibilidade e de formas de conhecimento não-verbais - recalque do maternal. Como a potência da matriz materno-infantil pressiona poderosamente no sentido de sua realização, torna-se necessário lhe opor um superego duro, cruel e desapiedado. É interessante observar que o empresário capitalista tem exatamente estas características. Isto nos remete a Erik Erikson[3] que fala de uma educação dirigida para a formação de uma personalidade social padrão.

Reencontramos em outra formulação a mesma idéia de repressão-recalque da matriz materno-filial:



“No varão (...) o complexo não é simplesmente reprimido; sossobra formalmente sob o choque da ameaça de castração. Seus investimentos libidinais são renunciados, dessexualizados e em parte sublimados; seus objetos são incorporados ao ego, onde formam o núcleo do superego e fornecem a esta nova formação suas propriedades características. No caso normal - melhor dito: no caso ideal -, já não subsiste tampouco no inconsciente nenhum complexo de Edipo: o superego tornou-se seu herdeiro. Uma vez que o pênis - no sentido de Ferenczi (1924) - deve seu investimento narcísico extraordinariamente elevado à sua significação orgânica para a sobrevivência da espécie, pode-se conceber a catástrofe {Katastrhophe} do complexo de Edipo - o desterro do incesto, a instituição da consciência moral e da moral mesma - como um triunfo da espécie sobre o indivíduo”(FREUD)[4].



A palavra desterro - expulsar da pátria - é demasiadamente forte para apenas designar uma desistência libidinal-sexual da mãe; certamente é mais do que isso; é a saída do território materno, a renúncia à delicadeza, suavidade, a-racionalidade, emocionalidade e força da relação materno-filial. A citação seguinte creio que permite reforçar este ponto de vista:

“A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no ego e aí forma o núcleo do superego que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do retorno da catexia libidinal”(FREUD)[5].



Uma última citação:

“O superego conservará o caráter do pai e quanto mais intenso foi o complexo de Édipo e mais rápido se produziu sua repressão (sob a influência da autoridade, do ensino religioso, da educação escolar, da leitura), tanto mais rigoroso virá a ser o império do superego sobre o ego como conciencia moral, talvez também como sentimento inconsciente de culpa”(FREUD)[6].



Ao desintegrar o complexo de Édipo o menino identifica-se com o superego dos pais e rompe sua relação libidinosa com a mãe, aceitando os valores modelares do pai e da sociedade, afastando-se dos valores criados na singularidade da relação com a mãe. Em termos mais amplos: a resolução súbita e autoritária do complexo de Édipo resulta em uma identificação com a função superegóica despótica de preservação dos valores da cultura e desvaloriza, reprime, recalca, dissocia as funções surgidas na relação materno-infantil primitiva: a intuição, a empatia, a disponibilidade e a capacidade para a identificação. A função patriarcal, no seu exercício de autoridade e uso de modelos, apela para uma episteme excludente que se opõe à função inclusiva advinda da relação matriz materno-filial. O menino para tornar-se um Homem deverá abandonar, esquecer, fazer sumir sua ligação à mãe. Deverá abandonar seus valores prévios desprezando-os como “coisas femininas”. O dever obscurece o amor, a razão livra-se da intuição, as dicotomias se instalam separando sujeito de objeto, homem de mundo, ser humano de ser humano, a empatia e a identificação são repudiadas como meros enganos da sensibilidade, a natureza torna-se um objeto de manipulação não mais respeitada em seu movimento e equilíbrio.

Estamos falando de uma subjetividade que imperava na época em que Freud iniciou sua saga e que, nas primeiras décadas do século XX, embora já atacada por vários lados, mantinha ainda seu vigor. Hoje em dia, percebe-se nitidamente o avanço de uma outra mentalidade, de uma outra lógica, de um outro paradigma, de uma outra forma de conhecimento/relação/comunicação. Fala-se de narcisismo, de paradoxo, de vazio, de isolamento emocional, de inquietude, de angústia, de criatividade, de intensidade, de movimento, de singularidade, de devir onde antes se falava de Édipo, de sintoma, de estrutura, de contradição, de estabilidade, de modelo. Kohut, por exemplo, postula dois Homens paradigmáticos, um edípico e outro narcísico, respectivamente, o Homem Culpado e o Homem Trágico; o homem da atualidade seria menos Edípico que Narcísico. E não se diga que não se encontra em Freud nada que autorize este desenvolvimento. Lembremos que no “Sobre o narcisismo: uma introdução” Freud escreve: “Acho inteiramente impossível situar a gênese da neurose na estreita base do complexo de castração...”[7].

E quando advertido por Edoardo Weiss respondeu: “Sua pergunta relativa à minha afirmação que fiz em meu artigo sobre narcisismo, sobre a existência de neuroses nas quais o complexo de castração não desempenha qualquer papel, coloca-me numa posição embaraçosa. Não me recordo mais do que tinha em mente na ocasião. Hoje, é verdade, não poderia citar qualquer neurose na qual esse complexo não fosse encontrado, e de qualquer maneira hoje não teria escrito a mesma frase. Mas conhecemos tão pouco a respeito de todo esse assunto que preferia não ter que me decidir cabalmente neste ou naquele sentido”[8](grifo meu).



Mais importante que a afirmação é a grandeza da modéstia de Freud deixando em aberto uma questão central da psicanálise. Exemplo de sabedoria e humildade.

Tentarei situar o narcisismo seguindo uma trajetória que irá do social ao pessoal, com passagem pelo familiar. Ocupar-me-ei primeiro das condições sociais para o aparecimento do homem narcísico, depois das condições familiares para finalmente entrar na questão quente: o aparecimento de uma nova linhagem de normalidade que tem como referência não mais o neurótico mas o borderline.

Usarei a Teoria dos Vínculos Sociais de Tönies[9] para abordar a socialidade. Ela nos fala da passagem da sociedade agrária para a sociedade industrial. Duas formas de organização social: Gemeinnschaft e Gessellschaft. Na primeira as pessoas acham-se afetivamente ligadas uma às outras graças à tradição, parentesco, amizade, ideal, vizinhança ou por outro fator socialmente coesivo. Este tipo de organização social coloca as pessoas dentro de um sistema extremamente sólido de controle social informal. Existe um respeito interindividual, um cuidado e um apoio entre os membros da comunidade. É o tipo de vinculação da sociedade agrícola, das pequenas comunidades, das cidades pequenas. Com a industrialização cresceram as cidades, esgarçaram-se os vínculos afetivos e estabeleceu-se uma nova socialidade: a Gesselschaft onde impera o contrato formal nas relações sociais. Trata-se de uma sociedade impessoal e anônima. As pessoas são tratadas como unidades produtivas e não como unidades afetivas, maquinificando o homem que então pode ser facilmente descartado. Os homens tornam-se psicologicamente isolados. O indivíduo já não se identifica com a comunidade como um todo o que facilita o aparecimento de sentimentos de solidão, vazio e futilidade. Esta Gesselschaft refere-se ao modelo capitalista oitocentista caracterizado por uma economia de mercado voltada para a acumulação de capital através de uma ética da produção. Eram valores desta época, o trabalho, a honestidade, a disciplina, a sobriedade, a repressão[10]. É neste período que a teoria psicanalítica surge. Na fase pós-industrial, esta que estamos vivendo, o capitalismo já não necessita da mobilização intensiva da força de trabalho e portanto já não necessita de uma moral rígida, disciplinadora, incentivando então o lazer, o consumismo, o hedonismo[11]. Acrescentemos a este quadro a velocidade, a mudança, a imagética, a dessacralização (da autoridade, das ideologias, etc.), a multiplicidade, a singularidade, o culto ao corpo, a concentração de renda, a violência, etc. Este é o contexto que podemos postular como interagindo com instituições, pessoas e famílias, numa inter-causalidade circular e criando condições para o aparecimento do borderline.

Pedirei, em primeira instância, o auxílio de Kohut para estabelecer uma relação entre a socialidade e a família. Para este autor teria havido uma modificação da família que de coesa passou a dispersa. Na família coesa uma superestimulação afetiva produzia conflitos internos devido às proibições dos pais e às rivalidades da constelação edípica. Nas famílias dispersas, por força da dispersão dos pais e serviçais, os filhos são subestimulados e portanto sujeitos a distúrbios narcísicos da personalidade[12].

Numa outra perspectiva pode-se dizer que a família moderna ainda se apresentava sólida, estável e com papéis bem definidos. A mãe cuidava do lar e tinha condições de fornecer à criança uma atenção constante e cuidadosa; o pai era a autoridade inconteste do grupo familiar, portador das regras e leis da cultura, respeitado, reverenciado e a quem se devia obediência. Esta situação foi-se modificando. O longo e contínuo cuidado que a mãe dispensava ao seu rebento tornou-se uma exceção em nossos dias. Como participante do mercado de trabalho a mãe é logo compelida a deixar o seu pequeno filho ao cuidado de creches e babás, e, mesmo o seu tempo de disponibilidade está saturado de preocupações que perturbam a relação mãe-bebê. Também a identificação com a figura paterna sofre transtornos. Questionado pela companheira, pressionado pela mídia, aturdido pela enorme quantidade de informações contraditórias, vivendo a incerteza de valores e procedimentos tradicionais em transformação, submetido a um processo de irresponsabilização e juvenilização, inseguro quanto à prática de sua autoridade, premido entre ideologias, o pai sente-se perdido dentro da família. As crianças já não encontram aquele esteio sólido, seguro, coerente, para o exercício centrado e tranqüilo da função de identificação.

O borderline apresenta justamente problemas na área da identificação-identidade. O neurótico (e aqui eu me refiro tanto ao neurótico “normal” quanto ao “doente”) tendo vivido identificações suficientemente boas e portanto criado uma eficiente regulação endo-psíquica não está coagido a estabelecer relações duais passionais, podendo vincular-se com o outro através de um terceiro termo, comum e externo ao par. Já o borderline necessita das pessoas para estabelecer relações duais, afim de efetuar identificações e viver relacionamentos mais primitivos e passionais. Na tentativa de aplacar sua angústia e seu vazio os borderlines tanto podem parar nos consultórios como podem, assumindo as suas múltiplas identidades, a sua angústia de desintegração, o seu vazio, a sua precariedade de identificações, atuar produtiva e criativamente no terreno das artes, da cultura, do social.

O contingente de borderlines tem crescido em vista das condições sociais, culturais e familiares. Mas esta mudança parece acompanhar as necessidades de um mundo em rápida transformação. Por isto mesmo o ideal de homem está mudando. Se até há algumas décadas atrás o homem ideal era aquele certinho, bem-comportado, obediente, obsessivo, estável e, como diz Deleuze, bem-educado, polido, resignado, hoje em dia temos um novo ideal: dele se espera criatividade, inquietude, agressividade, angústia. Em condições de estabilidade o homem podia encastelar-se em suas certezas e em sua estrutura desatendendo ao movimento do mundo, ao seu vir-a-ser; o normal era o homem bem estruturado, da linhagem da neurose. Diante de um mundo em constante transformação foi preciso estabelecer uma nova relação de conhecimento. O homem teve de abandonar o seu reduto, as suas certezas, o seu castelo ideológico e teórico, para lançar-se, com todas as angústias conseqüentes, sobre um mundo em devir. Viver neste mundo instável, exigiu outro modo de estar no mundo, outro tipo de relação e de conhecimento. A razão excludente não dava conta do movimento; foi necessário reavivar aspectos da relação matriz mãe-filho para poder acompanhar os aconteceres milimétricos de um mundo em transformação. Foi necessário que o homem estivesse atento, perceptivo aos múltiplos estímulos do universo, sem tentar simplificá-lo através de estruturas, conceitos, teorias, formas convencionais de reagir. A normalidade começou a deslocar-se para a banda do borderline. Winnicott já percebia isto ao dizer: “Os psicanalistas em atividade concordariam em dizer que há uma gradação da normalidade não somente na psiconeurose como também na psicose”[13]. Onde Winnicott coloca psicose eu colocaria borderline pois distingo 3 modos de estar no mundo, três modos de relação com o mundo: psicótico, neurótico e borderline. Acredito também que cada um de nós carrega em-si o neurótico, o psicótico e o borderline. Confrontarei estes três modos de viver/relacionar para melhor esclarecer meu pensamento.

O borderline nem rigidamente estruturado e defendido como o neurótico, e nem fora da realidade como o psicótico teria em comum com o primeiro uma capacidade de avaliar a realidade e em comum com o segundo um contacto íntimo com suas fantasias mais primordiais, sem no entanto transformá-las em delírios; também sua percepção do inconsciente do outro e do inconsciente social o aproxima do psicótico; à diferença deste, porém, os estímulos provindos do meio são organizados, hierarquizados, contextualizados, o que não acontece com o psicótico para quem a massa de estímulos permanece caótica. O mesmo acontece em relação às emoções: enquanto o neurótico inibe parcialmente as emoções e o psicótico as descarrega aleatoriamente, o borderline aprende a descarregá-las por vias pragmáticas. O afeto do neurótico segue por vias pré-determinadas, aprisionado que está (relativamente) pelas convenções, conceitos, modelos, pela lógica do ou...ou, etc.; trata-se de um afeto parcialmente inibido que se manifesta sob o signo da ambivalência. O psicótico, vivendo em regime de divalência, descarrega maciçamente seu afeto de forma caótica, aleatória, sem rumo nem direção, tornando-o inutilizável para a vida pragmática e social. Já o borderline libera seus afetos por vias não convencionais mas que se tornaram pragmáticas à força de um entrelaçamento entre um aprendizado organizado em torno da experiência, da atuação e uma persuação/imposição de novas sensibilidades, novas estéticas, novos modos de viver. Ele consegue manter ou recuperar uma divalência em nível afetivo, sem uma verdadeira cisão nem do ego, nem do objeto. Uma sugestão de pesquisa é correlacionar os afetos neuróticos com o processo secundário, os psicóticos com a função primária do sistema nervoso - puro descarrego, e o borderline com a função secundária do sistema nervoso - função pragmática e de comunicação.

O borderline, tal como o psicótico, está atento às mínimas variações do ambiente mas hierarquizando-as; como o psicótico percebe as mínimas e sutis manifestações afetivas daqueles que o rodeiam sem transformá-las em delírio. O neurótico recalca tanto as fantasias primitivas quanto sua sensibilidade às sutis manifestações de afeto dos outros e passa incólume por este mundo subterrâneo de subjetividade fremente, atendo-se a metas de realizações objetivas; o mais cai na faixa da desatenção seletiva. É interessante observar como há pacientes que se ligam principalmente à palavra do terapeuta, não se importando muito com o que ele esteja fazendo ou sentindo enquanto que outros estão atentos a todos os aspectos do comportamento e do sentimento do psicanalista.

O borderline, portanto, mantém-se em contacto com suas fantasias primitivas, com os sentimentos e espontaneidade infantis, com a livre percepção não toldada por preconceitos e direcionamentos; mantém, pois, em funcionamento a matriz relacional mãe-infante. Este aspecto de preservação da matriz primitiva aparece claramente no filme Mr. Jones, um personagem maníaco-depressivo que na maior parte do tempo encontra-se em estado borderline e que declara alto e em bom som que de maneira alguma quer crescer. Trata-se de uma exponenciação daquilo que os borderlines tentam realizar em sua vida: manter vivos e intactos aspectos infantis de sensibilidade, de interação fina e sutil com o ambiente, de espontaneidade, de capacidade de fantasiar e de se encantar, de transformar a realidade cotidiana em fruição lúdica e estética. Veja-se o filme “Priscila, a rainha do deserto” onde três drag queens transformam a aridez do deserto australiano em um florescência de cores, luzes, sons, alegria. Estes filmes traduzem um novo imaginário social que vem colocando em destaque caracteres fronteiriços tal como acontece também nos filmes “Herói por acidente”, “Traídos pelo desejo” e em muitos outros.

O neurótico, em estabelecendo uma barreira entre ele e os outros, ele e o mundo, ele e ele próprio, só se alcança e só alcança o outro através de um terceiro termo, através do deslocamento, do conceito, da teoria.

Diante de um paciente formal eu me despedi de uma forma amistosa e afetiva. Após o que e contrariamente aos seus hábitos, não me telefonou pedindo a reposição de uma sessão que caía em um feriado. Na sessão subseqüente trouxe o seguinte material: tinha tido vontade de se masturbar e não o fizera, não por repressão, mas por desvio. Ficou muito contente com o seu feito. Vai me contar um sonho mas há um preâmbulo que trata de figuras idealizadas as quais apresentam alguns comportamentos que não condizem com o ideal de pessoa do meu paciente. Finalmente o sonho: está com um grupo espiritualista quando aparecem pessoas fora do grupo, entre elas a sua filha e eu. Eu lhe pareço inconveniente e louco, falando bobagem, solicitando sua presença e me mostrando bobamente afetivo. Minha idéia a respeito deste conjunto é que ele não se deu conta de que havia se incomodado com minha forma afetiva de me despedir dele, e só pode manifestar este incômodo por um deslocamento para as imagens do sonho. Um borderline ter-se-ia dado conta de seu incômodo, fosse ou não consciente de seu motivo, e reagiria no ato ou com moderação compatível ou com intensidade delirante.

Quero por último dizer que o normal de linhagem borderline, aquele que põe em funcionamento seu corpo vibrátil[14], poderia ser bem considerado como o representante do pós-modernidade. É uma pessoa que pode manter-se criativa pois se encontra em regime de identificação dual-porosa[15], podendo atravessar as máscaras e os territórios para se conectar diretamente com os afetos puros, podendo, a partir destas percepções, sensações e sentimentos reorganizar suas máscaras e seus territórios de uma forma inédita. Na verdade, se examinarmos com cuidado e atenção certos procedimentos analíticos, aqueles em que a evolução da relação analítica, vai de um relacionamento comum para uma intensa relação transferencial, com a ativação de fantasmas primitivos, poderemos dizer que já de há muito a psicanálise transita na direção da normalidade de linhagem borderline.



Nahman Armony

Rio, 23 de junho de 1995.





Notas e referências bibliográficas




× Publicado em “Narcisismo e nosso tempo. Cadernos de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: v.9, ano 17, p.123-142, 1995.

¹Ver “Introdução ao Pensamento Complexo” de Edgar Morin. Publicações Instituto Piaget, Lisboa, 1991.








[1]Ver “Introdução ao Pensamento Complexo” de Edgar Morin. Publicações Instituto Piaget, Lisboa, 1991.


[2]Freud,S. (1924)- “El problema económico del masoquismo”. Obras Completas, vol. XIX, pag. 172/3. Amorrortu editores, Buenos Aires, 1989.


[3]Ver “Infancia y Sociedad” de Erik Erikson, Editorial Paidós, 1966.


[4]Ibid (1925)- “Algunas consecuencias psíquicas de la diferencia anatómica entre los sexos”, ibid, pag.275, ibid.


[5]Freud,S.(1924)- “A dissolução do complexo de Édipo”. Edição Standard Brasileira, vol.XIX, pag.221. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1976.


[6]Freud,S.(1924)- “El yo y el ello”, vol.XIX, pag.36, Amorrortu editores, Buenos Aires, 1989.


[7]Ibid(1914)- “Sobre o narcisismo: uma introdução”. Edição Standard Brasileira, vol.XIV, pag.109.


[8]Ibid- Nota de pé de página, pag.110.


[9]Apud DeFleur,M.L. e Ball-Rokeach.S.- “Teorias da Comunicação de Massa”, pag.171/3. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1993.


[10]Ver Muniz Sodré, 1987-“Televisão e Psicanálise”, pag.30. Editora Ática, São Paulo.


[11]Ibid.


[12] Ver Kohut “La restauración de sí-mismo”, capítulos V e VII. Paidós, Barcelona-Buenos Aires, 1980.


[13]Winnicott,D.W.(1964)- “El proceso de maduración en el niño”. Pag. 159. Editora Laia, Barcelona, 1975.


[14] Ver Suely Rolnik (1989)- “Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo”, pag.25/6. Estação Liberdade, São Paulo.


[15] Ver Armony,N.(1995)- “Guerra, Identificação e Sociedade” in Humanidades, vol`10, número 3, UnB.

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