DINAMISMO DEPRESSIVO

DINAMISMO  DEPRESSIVO [1]
               Nahman Armony
           
O dinamismo depressivo pertence aos dinamismos básicos. Seu desenho dinâmico depende da relação fantasmática de duas personificações: a Personificação da Mãe-Boa-Onipotente e a Personificação do Filho-Impotente. O terapeuta, permitindo-se ser colocado pelo analisando na posição de Mãe-Onipotente - complementar à de Filho Impotente -, possibilita o desenvolvimento do dinamismo depressivo.
            Esta configuração deriva de um processo de identificações complementares entre analista e analisando. Para que tais identificações complementares possam ocorrer é preciso que o analista coloque-se em um estado de “disponibilidade para a identificação”. Neste estado o analista terá os seus fantasmas ativados pela atividade fantasmática do analisando, criando-se assim um dinamismo cujos componentes fantasmáticos em interação, se suficientemente desenvolvidos, unirão analista e analisando em uma relação simbiótica de talhe depressivo. Será uma relação simbiótica de matiz afetuoso. O analisando depressivo está finamente e profundamente familiarizado com os aspectos amorosos, carinhosos, acolhedores do proceder humano, sendo capaz de facilmente detectá-los e de manipulá-los, assim como se encontra extraordinariamente atento aos mínimos sinais de afastamento e perda deste clima, esforçando-se então, com toda a sua engenhosidade, em evitar o afastamento, ou recuperar o clima.
            É preciso esclarecer que “depressivo” aqui não é sintoma, mas um modo complexo e característico de relacionamento que, quando bem encaixado e azeitado, não revela a face depressiva do dinamismo, o que só vem a ocorrer quando a díade Mãe-Boa/Filho-Bom ameaça transformar-se em Mãe-Boa/Filho-Mau. O termo depressivo justifica-se por ser este sintoma o mais patente quando há uma tormenta no dinamismo.
            A díade fantasmática Mãe-Boa/Filho-Bom transforma-se em Mãe-Boa/Filho-Mau quando surge algum contratempo na relação analista/analisando. A tendência é atribuir o erro, a incompetência, a maldade, os atributos negativos ao pólo Filho, deixando a bondade, o acerto,  e todas as qualidades positivas na Mãe. A Mãe deverá ocupar um lugar inatingível e deverá passar incólume, sem mancha, por todas as crises. Desta maneira, o analisando em dinamismo depressivo jamais dirá que a culpa ou o erro foi da Mãe-Analista, mas sempre atribuirá a culpa e erro do que quer que aconteça a si mesmo, pois ele é o Errado e o Mau, enquanto que a Mãe é sempre a Certa e a Bondosa. Esta é uma maneira de manter uma idealização positiva da Mãe. Quando, porém o encaixe dinâmico mantém-se constante em seu funcionamento, quando Mãe e Filho vivem uma simbiose positiva sem acidentes, então a vivência diádica é de uma relação Mãe-Boa/Filho-Bom. A relação Mãe-Boa/Filho-Mau surge na vigência de frustração, fracasso ou desentendimento. Para efeito de comparação é interessante ter presente que no dinamismo paranóide a frustração sofrida na relação com o Analista-Mãe criará uma outra relação dual fantasmática; neste dinamismo a díade que surge a partir da frustração é Mãe-Má/Filho-Bom.
            A relação própria do dinamismo depressivo, diferentemente do dinamismo esquizóide, não é uma relação de fusão, na qual as individualidades se misturariam tornando-se indistinguíveis; é, sim, uma relação simbiótica de complementaridade. Dois diferentes segmentos unidos por identificações, projeções, empatia, configuram uma “unidade dual”. Um único ente formado por dois corpos; dois psiquismos circundados por um limite comum realizando trocas psíquicas entre si através das fronteiras internas que os separa. Diante do mundo externo a vivência é de  um psiquismo solidário em seu funcionamento e em suas trocas com o exterior. Como se o outro fosse uma dependência do si-mesmo, assim como o braço é parte de um corpo maior. Uma ilustração desta simbiose: uma analisanda de minha clínica, de dinâmica depressiva, sonhava em conviver simbioticamente com o seu marido à maneira de seu relacionamento com o automóvel: seu carro, segundo ela respondia docilmente ao gradiente de suas solicitações, dentro de sua mais exata expectativa; concomitantemente ela se adaptava perfeitamente às peculiaridades do carro para justo poder controlá-lo.
            Os fantasmas de um analisando em funcionamento depressivo solicitam do terapeuta, preferencialmente, fantasmas complementares. É, portanto, especialmente através da identificação complementar que o psicanalista entra na intimidade deste dinamismo. O paciente, pressionado pelo seu padrão dinâmico, comporta-se como Filho-Bom-Impotente, despertando no psicanalista a Personificação da Mãe-Boa-Onipotente-Protetora. O aspecto relacional fantasmático mais óbvio destas duas personificações é uma proteção absoluta oferecida pela Mãe e uma submissão total do Filho. O suporte desta obviedade é a ilusão de que esta seria a única maneira de o Analista-Mãe aceitar o Analisando-Filho; uma ilusão vivenciada em seus anteriores relacionamentos significativos e incorporada ao seu modo de ser. A Mãe exigiria ser reconhecida como onipotente e para isto precisaria da impotência e aquiescência do Filho. Tudo se passaria como se a onipotência da Mãe se nutrisse da desvalorização e achatamento do Filho. Este manteria a situação para não perder a remota e cômoda fantasia de uma Proteção Absoluta e Incondicional. A partir deste seguro, protetor e confortável colo imaginário, o analisando, em um estado de relaxamento advindo da liberação das tensões decorrentes das peripécias da existência, dirige um olhar livre e descompromissado para o espetáculo da vida e das relações humanas, podendo percebê-las com grande acuidade, já que não está perturbado por temores ligados à sua inserção produtiva no mundo.  
            Como estamos em uma relação simbiótica, as vivências de onipotência, perfeição narcísica, segurança absoluta, etc. são compartilhadas pelos dois membros da díade. Esta situação, aparentemente confortável, logo revelará suas inconveniências. A Personificação da Mãe apresentará outras exigências além de seu reconhecimento como Boa e Onipotente. Seu Filho deverá ter um procedimento não menos que perfeito, sendo que a perfeição é tudo aquilo que a Personificação Materna determinar. O não cumprimento da lei materna levaria à perda da Mãe e, portanto à perda da proteção onipotente; o Filho banido, lançado a um mundo cruel e sem mercê, ficaria agora exposto, vulnerável, sujeito aos seus golpes.
            Talvez o recurso mais poderoso para a manutenção desta situação dinâmica seja a evitação da agressividade. A manifestação de raiva é vivida como podendo destruir a Personificação Onipotente e por consequência, destruir o próprio Filho-analisando em virtude do abandono a que ficaria relegado. Para evitar esta situação o analisando ou inibe a sua raiva ou muda a rota de sua agressão, desviando-a do analista e dirigindo-a contra si mesmo, tornando-se então culpado, e de tal forma se achatando que suas forças se esvaem, impossibilitando-se então de atacar a Personificação da Mãe.
            Existe aqui uma aglutinação inconsciente cuja experiência/esclarecimento tem um notável efeito liberador: o analisando confunde a destruição da Personificação Materna Onipotente com a destruição do próprio analista, com a destruição da relação e, consequentemente, com sua própria destruição. Ele não se dá conta de estar apenas atacando a Personificação Onipotente que, uma vez destituída, deixará surgir um analista humano. Mesmo quando o analisando já tem condições de ter tal percepção, teme que o analista, reduzido à condição de humano, não possa mais ajudá-lo; no que, aliás, ele tem razão, pois a ajuda esperada é da ordem da onipotência. É preciso um extenso percurso, ao longo do qual várias séries fantasmáticas entrelaçadas são, aos poucos,  desanuviadas, esclarecidas, desemaranhadas, agenciadas, articuladas, para que o analisando possa encarar sem angústia excessiva a desidealização e consequente humanidade do analista, o que acontecerá quando ele puder acreditar que a onipotência não é o prelúdio da impotência, mas sim de uma potência real do analista, capaz então de ajudá-lo de uma outra maneira que não onipotente - uma maneira potente.
            A desidealização do analista dará, pois, espaço a um outro tipo de relação, onde o reconhecimento da realidade do outro atenuará a intensidade do funcionamento dos fantasmas, permitindo que o analisando se aparte de seu dinamismo, além de propiciar o acréscimo de outras modalidades de funcionamento, aumentando suas potencialidades vivenciais. É preciso, porém, manter em mente que, enquanto o analisando está mergulhado no dinamismo depressivo, é-lhe inconcebível não só a possibilidade, mas até a existência de um outro tipo de relação que não a simbiótica depressiva.
            Este núcleo dinâmico da relação, constituído pela díade Mãe-Onipotente e Filho-Impotente e basicamente mantida por inibição e redirecionamento da agressividade, é protegido por controles inconscientes.  A sedução é um desses recursos.
            Mais caracteristicamente, trata-se de uma sedução infantil. O analisando aloca-se na posição de incapaz e desvalido. Seu comportamento é o de uma criança pequena. Ele se movimenta de um jeito tão solicitador de abrigo, de uma maneira tão comoventemente desprotegida, com um tal ar de desamparo que faz surgir no analista sentimentos materno-protetores-onipotentes.
            Outra forma de sedução é inflar a autoestima do terapeuta, atribuindo-lhe uma capacidade e sabedoria divinas diante das quais ele, analisando, pouco sabe e pouco pode. Nada mais a fazer senão concordar com criatura tão sábia e maravilhosa. Nada de discordar ou de se opor, pois isto seria uma blasfêmia, um vero crime de lesa-majestade.
            O analisando pode também recorrer à sedução intelectual, esforçando-se por atender aos desejos do analista de um bom trabalho analítico pleno de interpretações e elaborações interessantes e produtivas.
            Uma forma mais primitiva de controle da relação é o ataque ao próprio corpo que, sendo ao mesmo tempo o corpo da Mãe, mobiliza-A duplamente. O depressivo, desgostoso com a Mãe e temendo ser abandonado por ela, oferece o seu corpo às agressões externas e internas. A Mãe, alarmada com esse ataque ao suporte da vida, torna-se mais minudente, filigranada e sutilmente atenta às necessidades do Filho. Embora estejamos falando de controle, o que nos levaria a pensar em manipulação, no caso presente estaríamos diante não tanto de uma manipulação, mas sim de uma mobilização. É importante diferenciar manipulação de mobilização, pois isto influenciará a conduta terapêutica. O ataque ao corpo poderá ser um grito desesperado de quem, tendo já tudo perdido, está prestes a desistir da vida, e que dela desistirá se não for acudido. É dentro desta perspectiva vivencial que o analista deverá dar o seu encaminhamento à terapia. Estamos aqui distantes da situação em que o analisando tenta fazer o terapeuta sentir-se culpado para melhor controlá-lo, para conseguir aquele extra de atenção que a criança voraz dentro dela almeja.
            Porém, fazer a distinção entre essas duas situações não é tão simples. Podemos aqui imaginar a seguinte sequencia: o paciente procura obter privilégios através de manipulações; não conseguindo, vai aos poucos perdendo o sentimento de que o analista é a Mãe-Boa-Onipotente que o ama e protege; chega um momento em que este sentimento de perda é tão forte que ele duvida do amor desta Mãe - estamos aqui perto do ponto de ruptura, pois mais um pouco de solicitação não atendida e ele se sentirá abandonado e desamparado. A Mãe passa a ser vivenciada ou como Aquela que deixou de protegê-lo ou, pior, como Aquela que o abandonou, deixando-o entregue à própria sorte. A Mãe que era dádiva inconteste, embora potencialmente abandonadora, confirma suas piores expectativas inconscientes, passando a ser não mais uma certeza positiva pontilhada de dúvidas, mas uma terrorífica certeza negativa com pálidos laivos de esperança. O que era jogo transforma-se, neste momento, em procedimento de sobrevivência. O paciente ultrapassa a zona de manipulação - área de testes e ganhos secundários - e passa para a área de mobilização, região de fatos básicos: vida e morte, sanidade e loucura, abandono e socorro. A partir deste momento a vida só valerá a pena se reaparecer a Mãe-Boa.  
            O ataque ao corpo é um ponto de encruzilhada. Se a Mãe-Boa reaparecer repetidamente nas horas de desamparo absoluto, sua presença afetiva acabará por criar naquele ser periodicamente inerme e desesperado uma sólida fantasia inconsciente de uma unidade dual consistente e confiável, alterando as intensidades em jogo no dinamismo; o desenvolvimento tenderá a se fazer no sentido de uma maior tranquilidade anímica, dotando a vida de benignidade. Se a Mãe faltar nos momentos de sua máxima aflição, o analisando poderá fechar o caminho para o seu desespero, ou poderá a ele sucumbir, ou ainda, poderá encontrar forças no âmago de si mesmo para sobreviver e se recuperar da experiência de abandono radical; neste caso a fantasia de falta se instituirá e o analisando tenderá a ser mais combativo, experimentando e vivendo o mundo de uma forma mais dura, competitiva, ansiosa.
            Diante da perspectiva de aparição de um desespero radical, o analista poderá adotar uma atitude mais cautelosa. Ficará então diante do dilema - acolher o dinamismo versus apontar para o dinamismo (apontar para o dinamismo provoca o seu fracasso). É um dilema cujas duas faces podem ser assim colocadas: ao ser continente para o Filho-Impotente o analista poderá estar fragilizando-o; mas se revelar o dinamismo poderá ser sentido como a Mãe-Abandonadora. O analista poderá equilibrar-se no fio deste dilema conduzindo-se de maneira a não fragilizar em demasia ou em definitivo o analisando, nem atirá-lo de supetão em um terrífico abandono.
            Vou agora me referir a dois aspectos da terapia do dinamismo depressivo. Do conjunto “dinamismo depressivo” isolarei dois aspectos: a relação dinâmica valorização/desvalorização e a relação dinâmica agressão/culpa.
            Comecemos pelo aspecto valorização/desvalorização. O analisando em estado depressivo está permanentemente drenando e destruindo a sua auto-estima; desta maneira suas conquistas se esvaziam e nada ou muito pouco acrescentam à sua autoestima; mesmo este pouco tende a ser destruído por um  triturador interno, pelas agressões que a Mãe Internalizada efetua contra o Filho-Atrevido. Trata-se de uma Mãe que ataca para mantê-lo fraco e dependente. O apontamento constante e consistente de tudo o que seja uma verdadeira conquista do analisando, ajuda-o a alterar esta relação fantasmática. Não é, porém, um processo fácil. O analisando, aprisionado no dinamismo depressivo, ignorará ou expelirá a intervenção valorizadora do analista que poderá, então, sentir-se desestimulado de prosseguir nesta linha. Porém a desatenção e o protesto do analisando não significam que a intervenção foi inútil. Ao contrário, a insistência nesta prática, em algum momento, influenciará no sentido de uma modificação da imago de Mãe que ele possui.
            Esta atitude do analista não deve ser confundida com a noção de “reforço do ego” no sentido clássico. O analista não se preocupa em “dar força” ao analisando; a idéia de “dar força” pertence a um estado dicotômico em que o analista, colocando-se do lado de fora da simbiose, dirige-se ao ego do analisando buscando levantar seu ânimo. Na estratégia que estou propondo pretende-se ir para além do ego; pretende-se mexer no dinamismo inconsciente, nas personificações básicas. A Mãe-que-não-deseja-o-crescimento deverá ser eclipsada por uma Mãe-que-se-regogiza-com-o-crescimento; a Mãe-que-deseja-manter-a-relação-onipotência/impotência cederá o seu lugar a uma Mãe-que-pretende/aceita-ser-desidealizada. Esta estratégia pede do analista um comportamento covivencial e não um comportamento interpretativo. O apontamento prazeroso das vitórias do analisando é um comportamento covivencial e não interpretativo. As palavras são usadas não para desvelar o oculto, mas para modificar as relações intersubjetivas; a palavra aqui é parte de uma atitude global e é a expressão verbal desta atitude estando inteiramente integrada a ela.
            A vertente raiva/culpa aparece quando a frustração transmuta a relação Mãe-Boa/Filho-Bom em Mãe-Boa/Filho-Mau. A raiva que brota no analisando a partir da frustração surgida na relação com o Analista-Mãe, volta-se contra si mesmo. Para afrouxar ou “abrir” esta dinâmica é preciso que o analista cuide de não inibir as primeiras manifestações de agressividade do analisando que em geral se manifestam quase imperceptivelmente, sob forma de irritação ou impaciência; o mínimo gesto proibitivo poderá provocar um recolhimento da agressividade do analisando; a interpretação dos primeiros e tímidos desafios e investidas poderá ser sentida como crítica condenatória, produzindo um efeito inibitório. Se o terapeuta é bem sucedido nestes cuidados, finalmente poderá se desenvolver uma vigorosa agressividade dirigida à Mãe-Boa-Onipotente, desidealizando-a, e abrindo caminho para um novo tipo de relação dinâmica em que o “outro” já pode ser percebido como um ser humano com problemas e dificuldades.
            Uma repetida ausência de socorro afetivo nos momentos de fantasia de abandono radical poderá levar o analisando a sobrepor um dinamismo secundário ao dinamismo depressivo, ocultando-o, mas continuando sujeito à sua influência. Esta composição permitirá ao analisando entrar no social manquejando, sustentado pelo dinamismo secundário e embaraçado pelo dinamismo básico reprimido. Um resultado diferente é obtido quando pela via da covivência consegue-se “abrir” o dinamismo depressivo, sem reprimi-lo. Neste caso, a conquista de um lugar social faz-se sem a negação daqueles sentimentos e valores ligados à Personificação da Mãe, mas mediante a harmonização destas vivências mais primitivas a um contexto mais amplo e complexo.
            Há uma radicalidade na minha escrita, nas minhas considerações clínicas. É uma radicalidade que fala de um ideal utópico criado a partir de vetores que a própria terapia psicanalítica faz surgir. São, porém, estas utopias, é este pensamento radical que permite melhor acompanhar as tendências que se formam na relação analista/analisando.  




1 Versão modificada do trabalho “Aspectos do dinamismo depressivo”apresentado no I Forum Brasileiro de Psicanálise, em 1990.

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