Mesmo que não saibamos, a mentalidade
da época em que vivemos influi em nossas emoções, sofrimentos, prazeres e
alegrias. Quando nos deparamos com um dilema afetivo sentimo-nos na obrigação
de resolvê-lo. Não se trata de um dever consciente, mas de uma mentalidade que
nos penetra e que nos obriga a fazer uma escolha. Esta mentalidade nem sempre
vigorou no Ocidente. Houve época, antes dos filósofos gregos da natureza em que
os dilemas não tinham que ser resolvidos. Não se falava de verdadeiro e falso,
mas sim de velamento e desvelamento; aquilo que estava encoberto num certo
momento não era uma falsidade pois poderia ser descoberto a qualquer momento
enquanto que o que estava exposto passava à condição de encoberto. A
convivência do coberto e encoberto fazia parte da mentalidade dos gregos
arcaicos. Com Parmênides e os filósofos da natureza surgiram as figuras lógicas
da verdade e da falsidade, logo adotado por Platão com a sua concepção de um
mundo das idéias verdadeiras, modelares e eternas. Durante muito tempo, e ainda
hoje, vivemos sob a influência de Platão o que causa um a mais de sofrimento
que poderia ser evitado.
Uma das dificuldades nas relações
amorosas é a conciliação da preservação da individualidade com a plena entrega
ao outro. Se por um lado necessitamos de um núcleo sólido de personalidade para
sentirmo-nos estáveis, por outro somos impelidos na direção do outro pela
necessidade de dar e receber amor. Isto se torna mais difícil quando
pretendemos nos entregar por inteiro ao amor pelo outro. Esta entrega exige uma
abertura de todos os recantos do ser e assim ficamos vulneráveis às influências
da personalidade do parceiro amoroso. É claro que existe uma gradação no amor
que vai do máximo da reserva possível, além da qual não é possível uma relação
amorosa, até o máximo da entrega de si mesmo. Enquanto o amor se encontra
naquela fase em que o parceiro amoroso não é visto em sua realidade, sendo nada
mais nada menos do que a projeção de sua fantasia, situação facilitada pelo
desejo de cada um ser como o outro deseja, a individualidade de cada um
encontra-se a salvo. Sinto aqui necessidade de fazer uma distinção: ao ver o
outro não como ele mesmo, mas como sua fantasia é claro que a individualidade
fica preservada e até reforçado pelo que se imagina que seja um duplo ou um
complemento perfeito seu. Mas, junto com esta ilusão existe o desejo de ser
como o parceiro o idealiza; é claro que este impulso poderia ameaçar a
individualidade do sujeito. No entanto, nessa fase, não aparece o medo de
“perder a personalidade”. Nessa fase o que cada um quer é perder-se no outro, é
ser como o outro deseja, já que esse outro está idealizado e tudo o que ele
pensa, sente e é traz a marca da perfeição. Sabemos todos que este estado não é
duradouro, e após um certo lapso de tempo a pessoa recupera-se da “doença” do
apaixonamento, reencontrando-se a si mesma. Mas para que a relação possa
persistir é preciso que algo da doença, algo da ilusão sobre o outro se
mantenha. Agora, porém devem andar lado a lado a preservação do núcleo da
individualidade que foi negligenciado no período de paixão máxima e absoluta e
a entrega confiante ao companheiro dentro do clima de amor/paixão. Esta a
equação ideal, porém difícil de ser mantida. Quando dois processos que se
excluem existem concomitantes na alma do ser humano, este tende a se livrar de
um deles para evitar um conflito que traz ansiedade e, portanto, sofrimento.
Aqui devo fazer um parêntesis para distinguir contradição de paradoxo. Quando
falamos em contradição pensamos que os termos se excluem não podem conviver. Se
estes termos que não se combinam forem vividos como paradoxo então a sua
convivência se torna possível. Nossa formação pessoal exige que durante as
primeiras décadas de nossas vidas eliminemos os contrários. Temos de pensar e
viver no registro do contraditório. Após solidificarmos nossa personalidade
poderemos escolher entre estar no regime da contradição ou no registro do
paradoxo. Durante muitos séculos, desde Parmênides e Platão, a humanidade
escolheu o caminho da contradição. Hoje, até a física quântica trabalha com o
paradoxo. A luz é ao mesmo tempo onda e partícula. Mas transplantar essa
concepção para a alma humana é algo complicado que exige grande trabalho pessoal,
e certamente, será uma tarefa de gerações. Mas é algo que já está em curso. Se
compararmos a letra de um antigo bolero, com produções mais recentes, veremos
que há um esforço em trilhar este caminho. O antigo bolero diz: “: “Nosotros;
que nos queremos tanto; debemos separarnos; no me preguntes más; no es falta de
cariño; te quiero com mi alma; te juro que te adoro y en nombre deste amor y
por tu bien te digo adiós”. Já hoje temos Zeca Pagodinho dizendo “deixa a vida
me levar, vida leva eu...” ao mesmo tempo que Vinicius canta “sei lá, sei lá, a
vida é uma grande ilusão, sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão” e “sei lá,
sei lá, só sei que é preciso paixão: sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão”.
Não mais lutar com a contradição, mas transformá-lo em paradoxo, o que
significa deixar-se levar pelos acontecimentos.
Nahman Armony
Primeira
publicação na revista CARAS.
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