ANOTAÇÕES
Como pensar o mal-estar do homem? Em um outro escrito chamei a atenção para o fato de que
nas línguas por mim conhecidas a palavra amparo certamente antecede a palavra
desamparo. Sei que a psicanálise de hoje coloca o desamparo na gênese do
desenvolvimento psicológico humano com suas defesas, seus sintomas, suas estruturas
de caráter. Mas eu acho significativa a precedência semântica da palavra amparo sobre desamparo que encontramos em várias linguas. Esta precedência me faz pensar que na época em que a língua se formou,
portanto no início da civilização o recém-vindo ao mundo dos homens, isto é, o
recém-nascido, já quando a sua cabeça apontava fora do corpo da mãe recebia um
amparo que continuava pelo impulso genético que a mãe tinha em cuidar da
criança. O desamparo só acontecia quando este cuidado por alguma razão não era
proporcionado. E evidentemente quando as peripécias da vida provocavam
frustração. Winnicott foi um grande estudioso das relações mãe-bebê e ele
admite uma fase de fusão (dependência absoluta) seguida de uma fase de
dependência relativa (que eu chamaria de fase simbiótica) onde uma frustração adequada
não perturbaria o sentimento de amparo. O sentimento de desamparo seria uma consequência
da atuação inadequada de uma mãe invasiva.
Certamente o amparo produz bem-estar e
o desamparo mal-estar. Há, portanto, desde o início uma relação entre a ação do
social e a pessoa individual. Esta, porém, é uma generalização que pouco ou
nada nos diz da especificidade do mal-estar na contemporaneidade.
Para melhor situar e compreender o
mal-estar da hipermodernidade atual começarei por examinar o mal-estar da
modernidade. Para isso usaremos um texto emblemático que até hoje serve de
referência para psicanalistas e outros pensadores quando refletem sobre o
mal-estar que a sociedade pode causar no indivíduo. Refiro-me ao texto de Freud
“O mal-estar da civilização” escrito
em 1930. Lá ele aborda essa questão inicial de amparo/desamparo. Em resposta a
uma carta de Romain Roland diz não acreditar no sentimento oceânico. Porém, ao
desenvolver seu raciocínio acaba por admitir a existência deste sentimento no
bebê e sua possível persistência residual no adulto. De qualquer
forma em algum momento da vida poderá aparecer a sensação de desamparo que
exige uma obturação, seja através do amor, da religião, da idolização, do
poder, da submissão, da comunhão com a natureza, etc.
Freud fala de três fontes de mal-estar:
o mal-estar que vem do corpo (doenças e decadência) o que advém de fenômenos da
natureza (terremotos, eventos meteorológicos) e o que advém de nossa relação
com os outros homens “na família, no Estado e na sociedade”. Vale a pena
aproveitar a oportunidade e dizer que aquilo que a subjetividade social impõe
ao homem tem um caráter de continuidade e persistência que a distingue dos
outros mal-estares mais ou menos contingentes. Freud afirma que “a civilização
é construída sobre uma renúncia ao instinto”. Esta formulação tem a ver com a
modernidade vitoriana altamente repressiva que procurava regular as relações
humanas pela renúncia à espontaneidade. Havia um código a ser seguido e os
homens de hierarquia deveriam ser os guardiões implacáveis deste código. A vida
societária caracterizava-se por relações verticais de poder, saber e
hierarquia, pelo autoritarismo e poder quase absoluto do pai, pelo desdém em
relação aos aspectos femininos do homem tais como a sensibilidade, a empatia, a
capacidade de identificação, a compaixão, a tendência inclusiva, pela
supervalorização dos aspectos masculinos de virilidade, força, decisão,
implacabilidade, impiedade, organização, exatidão, linearidade, coerência,
pensamento lógico. Quando a sociedade e o indivíduo contestaram a subjetividade
patriarcal, as leis e regras, o dever e as obrigações, desenhou-se um cenário
de liberdade que de um lado tudo permitia e de outro lado obrigava o homem a
fazer escolhas. Segundo Bauman, esta liberdade é a atual produtora de
mal-estar. Tendo o pai e a mãe perdido em grande parte o papel de modelo e de
orientação o ser humano ficou por conta própria e se sentiu desorientado diante
de um vasto mundo cheio de possibilidades de prazeres e realizações.
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HOMEM ATUAL E SEU MAL-ESTAR
1- Desde
que Freud escreveu seu artigo “O mal-estar na civilização” a expressão
mal-estar quase sempre ou sempre está vinculada a este artigo. Vide “O
mal-estar na pós-modernidade” de Bauman, “O mal-estar na atualidade” de Birman,
“O mal-estar na globalização” de Luciano Martins Costa, e outros e agora o
nosso “Mal-estar na contemporaneidade”.
2- Vou,
portanto, iniciar por ele. É um texto muito rico que aborda a questão de
inúmeros ângulos permitindo uma reflexão mais complexa sobre o tema.
3- É
interessante que Freud inicie o seu artigo discutindo a noção de “sentimento
oceânico” proposta numa carta a ele por Romain Roland. O que teria a ver o
sentimento oceânico com o mal-estar?
4- Freud
começa por negar a existência do sentimento oceânico. Aos poucos, através de um
raciocínio que começa na perda de limites no orgasmo sexual e continua com uma
especulação sobre o início da vida de um ser humano, Freud admite não só a
existência do sentimento oceânico nestas situações, como também a persistência
de restos deste sentimento nos adultos.
5- Esta
é uma questão importante. Hoje se dá muito valor ao desamparo como o motor do
desenvolvimento psicológico humano. Dizem: o ser humano nasce desamparado.
Esquecem que a maioria das comunidades humanas ampara o bebê assim que sua
cabeça assoma no mundo desconhecida que o aguarda. Uma evidência disto é o fato
de várias línguas terem o amparo como a palavra original sendo o desamparo
expresso por um prefixo ou sufixo que se acrescenta à raiz amparo. Em inglês temos
help como amparo helplessness como desamparo. Em espanhol amparo e desamparo.
Em alemão schutz (amparo) e schutzlosikeit (desamparo). Posso imaginar que a
precedência do amparo teria a ver com o acolhimento pela mãe e pela sociedade ao
novo ser humano que surge na natividade. No decorrer da vida este amparo pode
ceder lugar ao desamparo, passando a pessoa de um estado básico de bem estar
para um de mal-estar. Mas, sem dúvida, o primeiro acolhimento influi no estado
de mal-estar.
6- Faz
parte deste amparo aquilo que R.R. chamou de sentimento oceânico do qual Freud
inicialmente discordou. Porém ao trabalhar sobre esta ideia admitiu primeiro
que no “no auge do sentimento do amor a fronteira entre ego e objeto ameaça
desaparecer”. Mais adiante admite que o recém-nascido “ainda não distingue o
seu ego do mundo externo”. Freud reencontra o sentimento oceânico, que nada
mais é que um estado de fusão ou de simbiose como colocam vários autores
psicanalíticos, entre eles Winnicott que fala explicitamente de fusão na fase
de dependência absoluta. Esta fusão com uma mãe suficientemente boa é
necessária para um desenvolvimento saudável.
7- Voltemos
à pergunta acima: o que isto teria a ver com o sentimento de mal-estar? Sem
dúvida um ser humano que não encontrasse um amparo, um holding no seu ambiente
sentiria o mal-estar do desamparo. Poderíamos dizer que ele sentiria um
desamparo básico, um mal-estar básico que em nada o ajudaria nos desafios e
frustrações que a vida impõe. Ao contrário o sentimento de mal-estar certamente
se intensificaria. Já a criança que sentiu o bem-estar do amparo enfrentará
melhor os desafios da vida podendo passar melhor pelas situações pelo que Freud
chamou de três fontes de sofrimento: “o poder superior da natureza, a
fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram
ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na
sociedade”.
8- Mais
adiante Freud fala do mal-estar causado pela repressão das pulsões. Uma pulsão
não realizada pode provocar um mal estar. Um conflito entre a pulsão que quer
se realizar e o superego que impede esta realização provoca mal-estar. Os
sintomas advindos do conflito provocam mal-estar. Porém todos esses mal-estares
estão referidos à presença de um superego que é o representante do Pai, da lei social.
É um mal-estar amparado e aprovado que faz com que a pessoa se sinta incluída
no grupo social de uma maneira correta. Estamos aqui em um sistema neurótico
que recalca os aspectos femininos e se identifica com os aspectos masculinos do
pai, com o seu superego. Estamos na fase da modernidade vitoriana. O mal-estar
está ancorado num eixo moral e a satisfação de estar tentando agir de acordo
com este eixo moral é tranqüilizador. No fundo de todos os mal-estares está o
sentimento de que a pessoa está agindo irrepreensivelmente. É claro que existem
prejuízos: na criatividade, na abertura amorosa, na capacidade de compartilhar,
etc. Em princípio trata-se de um homem auto-suficiente, inclemente, com pouca
abertura para o afeto e a compreensão. É um homem do dever e seu mal-estar tem
a ver com os processos de repressão/recalque vigentes na modernidade vitoriana
e que produziam uma subjetividade neurótica. Quando falo de subjetividade
neurótica não penso apenas em patologia, mas também em normalidade. Existem
neuróticos graves prejudicados ou incapacitados em relação ao trabalho
profissional e que pouco usufruem da vida afetiva, do lazer, da diversão.
Existem neuróticos próximos da normalidade ideal que apresentam suaves sintomas
neuróticos que pouco ou nada atrapalham sua capacidade de trabalhar, amar e se
divertir.
9- Recapitulando:
o mal-estar advindo da repressão das pulsões e desejos está referido a um
superego que promove e aprova esta repressão provocando uma satisfação dentro
do próprio mal-estar. Este o mal-estar do neurótico, o mal-estar da
modernidade. Diferente é o mal-estar da contemporaneidade. Ela é fruto de vários
fatores: uma reação exagerada da sociedade à subjetividade repressiva e que
veio a desembocar numa excessiva permissividade. Vou contar aqui um pequeno
episódio acontecido comigo, paradigmático: estava eu visitando um casal com um
filho e estávamos reunidos na mesa da cozinha. Por duas vezes eu me senti
desrespeitado não só pelas intervenções de uma criança de 11 anos, mas também e
talvez principalmente pelo tom das intervenções. Dei-lhe uma bronca. O casal
nada falou. Mais tarde o pai me chamou para uma conversa em particular e disse
que ele tinha dado uma educação excessivamente solta para o filho pois ele
próprio o pai tinha se sentido excessivamente reprimido. A psicanálise influiu
na mudança de subjetividade com o trabalho de desrepressão. Freud esperava que
os impulsos liberados seguissem um caminho sublimatório ou que permitissem uma
redistribuição racional dos recalques. Não foi o que aconteceu. Outros fatores:
capitalismo de consumo que incita os desejos; extraordinária difusão da
informação pela Internet; multiplicação dos contatos entre pessoas de todo o
mundo através da Internet; possibilidade aumentada de difundir ideias e
sentimentos através dos blogs, uma tecnologia cada vez mais avançada que exige
cada vez mais do homem, um engajamento cada vez maior do pai e da mãe no
trabalho que já não podem ter a mesma dedicação de antanho para os filhos, etc.
10-
Estamos, pois, falando do mal-estar da
pós-modernidade, também chamada de modernidade líquida e de hipermodernidade.
Didaticamente podemos dizer que o mal-estar da modernidade está atrelado à
repressão/recalque e o mal-estar da pós-modernidade à permissividade. A
permissividade atualmente se manifesta de alguma maneira em praticamente todas
as áreas do quefazer humano. As pessoas deixam-se levar por seus impulsos e são
estimuladas a isto. A arrumação estética dos vários produtos colocados à venda,
a propaganda inteligente e psicologicamente sofisticada, a apresentação
contínua de novos produtos levam a um consumo exagerado. Na família pai e mãe
tendem a realizar todos os caprichos dos filhos não conseguindo colocar
limites. Os pais têm medo de não serem amados pelos filhos. Isto teria a ver
com um desmanche do superego que já não tem força para, com sua aprovação, dar tranqüilidade
aos pais. Um superego fraco deixa em dúvida se os valores estão corretos e,
portanto se devem ser respeitados. A relativa ausência dos pais dificulta os
processos de identificação da criança tornando-a insegura e vulnerável. As
babás, os programas de televisão e a internet entram neste vazio deixado pelos
pais induzindo identificações múltiplas o que pode, pelo menos em um primeiro
momento, causar confusão. Na escola a ordem unida e a noção de dever estão
sendo substituídas substituídas pelas noções de singularidade, interesse,
criatividade. Há uma charge aparecida há algum tempo em um dos jornais ou
revistas que mostram a diferença entre a modernidade e a pós-modernidade na
escola. Na primeira figura vemos os pais ouvindo a orientadora pedagógica e
dispondo-se a tomar providências em relação ao mau comportamento ou mau
aproveitamento do filho. Na segunda os pais culpam a escola das dificuldades do
filho, eximindo-se da responsabilidade. Esta é outra característica encontrada
na pós-modernidade. O “lavar as mãos” dos pais, o laissez-faire, a falta de
disposição de participar ativamente da educação e da aculturação do filho.
11-
Na modernidade não havia a angústia da
escolha, pois os caminhos já estavam previamente traçados. Havia sim a consternação
de seguir um caminho imposto pelos outros, a frustração de não poder seguir a
sua vocação e de construir sua vida segundo sua singularidade, e também, todas
as consequências da repressão conforme já foi visto. Este o mal-estar
neurótico.
12-
Assim como o neurótico é o homem da
modernidade, o borderline é o homem da pós-modernidade. A dissociação é seu
principal recurso embora também recorra ao recalque. De suas várias
características a que nos interessam aqui é sua porosidade, tendência ao ato,
onipotência mitigada. Sem um superego forte e com um ideal de ego confuso
(desaparecimento das ideologias, inclusive), tendo à disposição de sua
consciência os seus pequenos eus com seus múltiplos desejos e encontrando um
mundo rico de estímulos e ofertas, ele sente desorientado, confuso, sem saber o
que fazer da vida. Isso pode levá-lo a buscar uma figura orientadora: busca de
função mãe, de função pai ou de ambos. Neste caso ele apresentará uma viscosidade,
uma fixação, uma dificuldade de separação, um estreitamento de horizontes. Em
não tendo feito suficiente identificação com os pais as valências
identificatórias permanecem abertas e podem se dirigir para as figuras de mãe
e/ou de pai mantendo-o aprisionado a estas figuras. Ou pode dirigir ou
redirigir as valências para o mundo em permanente movimento, sem saturá-las,
podendo assim acompanhar as transformações da sociedade e da cultura. O seu
mal-estar tem mais a ver com desamparo que o mal-estar do neurótico. O
neurótico, como já vimos, tem o seu mal-estar em cima de uma plataforma de dever,
de aprovação do pai e da sociedade representados pelo superego. Já o mal-estar
do borderline não está ancorado em elementos internos. É um mal-estar de quem
está num mundo rico, cheio de estímulos e que precisa escolher um caminho que
combine com seus gostos e sua vocação. Nesta escolha ele se sente desorientado e
muitas vezes cai num estado de inércia, de niilismo, de depressão, de ansiedade
ou mesmo de desespero. “O que quero fazer de minha vida?” é o seu mal-estar e
sua aflitiva pergunta. Quando finalmente a inquietude vem a ser aceita como uma
boa e sábia companheira e ele encontra um modus vivendi ele pode fazer uso de
sua porosidade, de sua onipotência mitigada e seu desejo imediato de realização
de uma forma socialmente produtiva e adequada de tal maneira que acaba por
fazer parte do acervo social.
13-
Um bom amparo no início da vida criará
uma base segura para enfrentar as agruras e desafios que certamente o mundo lhe
imporá.
14-
O sentimento oceânico quando pode ser
sentido sem dúvida nos ampara. Não é outra coisa que Winnicott nos diz do bebê que
tem uma mãe suficientemente boa com a qual, na fase da dependência absoluta
pode realizar uma fusão que o ampara (ao qual deu o nome de holding) e na fase
da dependência relativa pode realizar uma simbiose que já inclui frustração sem
que esta provoque desamparo. Creio que ninguém duvidaria que o amparo produz
bem-estar. Certamente o mal-estar não estaria aí alojado. Ele aparecerá
posteriormente, mas o ser humano tem a oportunidade de uma experiência primeira
de acolhimento, de bem-estar básico. Não é a toa que nas diversas línguas as
palavras designativas têm como raiz o amparo ao qual se acrescentam prefixos e
sufixos para designar desamparo. Em inglês temos help como amparo helplessness
como desamparo. Em espanhol amparo e desamparo. Em alemão schutz (amparo) e
schulozikeit (desamparo). Posso imaginar que a precedência do amparo teria a
ver com o acolhimento ao novo ser humano que surge na natividade. No decorrer
da vida este amparo pode ceder lugar ao desamparo, passando a pessoa de um
estado básico de bem estar para um de mal-estar. Mas, sem dúvida, o primeiro
acolhimento influi no estado de mal-estar.
15-
Em um de seus parágrafos Freud coloca
que a repressão social, impedindo a manifestação da pulsão, provoca mal-estar. É
um mal-estar que tem uma referência externa (repressão) e uma interna
(recalque). Neste caso o mal-estar está acompanhado com um sentimento de dever
não cumprido diante da sociedade e do superego Na hipermodernidade não há um
superego orientador, nem doutrinas externas orientadoras. A pessoa entregue a
si mesma, tendo de fazer suas escolhas de vida, fica cheia de dúvidas e
sente-se perdida em um mundo complexo e contraditório. A ideologia familiar e
social não fornece um amparo como a modernidade oferece. Trata-se de um
mal-estar mais radical. As identificações com os pais são precárias. Não se
criam laços fortes com os semelhantes. A mãe atual solicitada pelo seu trabalho
e participando das preocupações da família, não pode ter a dedicação das mães
de antigamente. O amparo inicial em algum ponto fica comprometido. Por outro
lado o pai já não se oferece como figura de identificação para ser
internalizada como superego que serviria de guia à pessoa. E ainda, Richard
Bennet fala-nos da erosão do caráter quando as condições externas são mutáveis,
como acontece em nossos tempos.
16-
Aqui ocorre uma coincidência
interessante que certamente não é coincidência. A não identificação com o pai
mantém a pessoa ligada aos modos e valores da mãe. Um dos modos de ser da mãe é
relacionar-se através da porosidade. É este modo de ser que permite a empatia,
a compaixão, o espírito de conciliação, a compreensão contextual das situações,
a visão humanista para além da visão objetiva. Esta mãe está aberta para o
mundo. Como diz Freud, ela tem um superego frouxo que admite influências
externas. O bebê em sua interação com a mãe internaliza esse modo de
relacionamento/conhecimento/comunicação. No período freudiano esta abertura era
obturada, obrigando-se a criança a abandonar os valores femininos para
tornar-se um verdadeiro homem, poderoso, inclemente, sem sentimentalismos que o
atrapalhariam na dura luta pela vida. A identificação com o pai poderoso não é
feita. As valências identificatórias que se completariam nessa identificação,
criando um superego infenso às influências exteriores, mantêm-se incompletas.
Ora, um superego fechado ao mundo não poderia acompanhar as suas mudanças. Já o
superego com valências identificatórias em aberto permite a identificação do
ser humano com o devir do mundo. Podemos dizer que ao mesmo tempo o mundo se
tornou imprevisível e instável e ao mesmo tempo as subjetividades têm a
capacidade de acompanhar essas transformações. Como diz Bauman, passamos do
sólido para o líquido.
17-
Certamente há um preço a ser pago. O
preço da ansiedade, da insônia, da inquietude, da agitação. O preço será ainda
maior se as relações com a mãe tiverem sido insuficientemente boas. Neste caso
não só as valências-pai permanecem abertas como também as valências-mãe. Estou
por uma questão didática apresentando as situações em termos absolutos, mas há
variações nas identificações, seja com o pai, seja com a mãe. As valências-mãe
em aberto provocam um extremo desconforto que pode levar às drogas, à
agressividade, à perversão, aos sintomas psicossomáticos. Essa agitação está
relacionada a falta de uma base, de um eixo afetivo, pois esta criança não se
sente aceita nem participante do mundo. As valências identificatórias abertas
levam em primeira instância à busca da mãe insuficiente para tentar viver uma
suficiência ou da mãe suficiente que foi perdida. O pulo do gato é poder
direcionar as valências identificatórias abertas para o mundo, para a cultura,
para a natureza, para a beleza. Poderia ser um dos caminhos da terapia, mas
certamente é um caminho cheio de ciladas. É preciso que o analista, uma vez
solicitado, aceite ser a mãe (e aqui falamos mais de uma mãe real do que
transferencial), mas uma mãe que direciona as valências identificatórias que
passam por ela, para o mundo. Neste processo o analisando pode se sentir
rejeitado entendendo que a mãe o joga para o mundo por não desejá-lo. E teremos
de lidar com este paradoxo com uma delicada sutileza.
18-
Apresentei um quadro geral e algumas
noções precisaram permanecer não-ditas para que o conjunto pudesse ser abarcado
na sua lógica própria.
Nahman Armony
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