IDENTIDADE ONTOLÓGICA

Identidade e identificação
         A maioria dos autores considera que a identidade é o resultado das inúmeras identificações vividas, especialmente aquelas dos períodos iniciais da vida. Freud fala-nos de uma identificação primária, anobjetal, anterior ao investimento objetal e de uma identificação secundária que acontece depois de estabelecida a diferenciação entre o eu e o não-eu, entre o eu e os objetos do mundo. Winnicott desenvolve esta idéia de identificação primária; com ele podemos dizer que existe uma identidade primária, resultado de identificações primárias e uma identidade propriamente dita que podemos conectar às identificações secundárias de Freud.
         Essas questões colocadas em termos winnicottianos, assim ficariam: ao nascer, o bebê estaria numa situação de “dependência absoluta” e a mãe com uma “preocupação materna primária”. Nessa fase haveria uma fusão mãe/bebê. Esta formulação é diferente da exposta acima. Winnicott tanto fala de uma identificação primária quanto de fusão. E estes dois conceitos (ou noções) parecem não se superpor. Não sei se isso importa, pois quer falemos de identificação primária, quer falemos de fusão, o resultado é uma identidade que podemos nomear de primária.
         Se falarmos de fusão estaremos pensando numa maior participação da mãe no processo de constituição da identidade. As fantasias, temores, sentimentos, esperanças da mãe interagem com as potencialidades do bebê e a identidade primária estará impregnada pela subjetividade da mãe. Posso usar como analogia, com vistas à maior compreensão do que estou querendo dizer, a idéia winnicottiana de superposição de duas áreas de brincar. Claro que a analogia é imperfeita, pois neste último caso já terão acontecido identificações secundárias, estando o eu já bem constituído no sentido de se diferenciar de um não-eu.
         Se falarmos de identificação primária estaremos remetidos a uma mãe que mais atende às necessidades do bebê do que contribui com seu desejo para a formação de uma identidade. Outeiral em seu livro “Conhece-te a ti mesmo” escreve a propósito: “E esta mãe não é sempre uma única coisa ou coisa alguma, ela é aquilo que o bebê necessita que ela seja”(p.69)
         Podemos para além dessas duas formulações, fazer, ainda baseados em Winnicott, uma outra não incompatível com a idéia de fusão e podendo ser considerado um de seus aspectos. A fusão vista em sua feição macro, global: a identidade primária seria simplesmente SER e esse SER do bebê depende da mãe poder SER na relação com o seu bebê. A palavra “simplesmente” não pretende tirar a importância de SER. Significa que é um processo que está além das possibilidades de uma descrição ou de uma rememoração, podendo apenas ser intuído, talvez a partir de uma hipotética memória arcaica não-verbal a ser despertada mais pela capacidade impressionista/nebulosa da palavra poética do que pelo discurso logicamente coerente. Voltando à questão do SER. Na preocupação materna primária a mãe está inteiramente e integralmente voltada para o bebê, estando presente psicossomaticamente. Ela está SENDO para o bebê que então tem a experiência de SER. Impossível definir este SER da mãe. Podemos recorrer a Lacan que em seu seminário sobre a lógica do fantasma (e aqui estou me reportando ao artigo de Luiz Eduardo Prado de Oliveira (p.83) publicado na Revista Panamericana de Psicopatologia Fundamental, III, 3, 73-102 intitulado “Jeremias, criança, luta contra o autismo, a esquizofrenia e a paranóia”) diz que o corpo é o primeiro significante que virá a adquirir significado para o sujeito, se tiver sido antes significante para a mãe. Ainda em busca de uma compreensão/intuição podemos parafrasear Masud-Kahn que dizia de Winnicott, estar ele psicossomaticamente presente e voltado para o seu paciente. O mesmo pode dizer-se da mãe que está SENDO para o seu bebê. É cabível usar as palavras devotada (palavra winnicottiana), dedicada, capturada, fascinada; pode-se dizer que o bebê é a razão e foco de sua existência. Estas palavras e expressões só serviriam para tentar despertar no leitor a intuição do que é estar SENDO na relação com o bebê. Se na fase de fusão a mãe É para o bebê, então este pode também SER, o que significa que ele poderá ver confirmada a sua experiência de onipotência começando por aí a usar o seu potencial hereditário na interação com o ambiente. Como estamos falando de SER não nos será difícil aceitar que está aparecendo uma primeira e primitiva identidade que podemos chamar de ontológica. O bebê tem uma presença tão verdadeira, sólida, consistente quanto a pedra ou qualquer outro objeto animado ou inanimado da natureza. Não há dúvida de que esse pensamento apresenta dificuldades. A tendência seria só poder pensar o SER em oposição um não-SER. Não é, porém o que Parmênides nos diz quando separa radicalmente o Ser do não-Ser em sua famosa frase: “o que é, é, e o que não-é não é”. Ou: “uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo”, concluindo a partir daí, através de um raciocínio sofisticado, que tudo é Ser e que não existe o não-Ser. A argumentação de Parmênides permite que aceitemos melhor – já que estamos apoiados em um mestre da filosofia – a idéia de que um bebê em estado de onipotência absoluta onde só ele existe e o universo todo é ele próprio, está em um estado de Ser com exclusão de todo não-Ser. O não-Ser não existe. Como em Parmênides, há aí uma espécie de plenitude que preenche todo o universo. Este SER absoluto do bebê, filosoficamente alcançado, permite intuir uma situação psíquica importante para o desenvolvimento de uma certa teorização, uma teorização que tem a ver com uma prática. É importante que também o analista SEJA para que o analisando possa SER. Isto é particularmente importante em pacientes nos quais, o sentimento de SER está prejudicado. Podemos aqui encontrar os fundamentos teóricos para que o analista esteja presente na sua relação com o paciente com o seu corpo e alma, ou melhor, com o seu soma, psique e mente, e que este corpo/psique/mente integrado esteja inteiramente voltado - disponível e atento - para o seu analisando.
         Falei aqui de três caminhos: a mãe como espelho do bebê, a mãe como parceira contribuinte e a mãe como possibilitando o SER do bebê através de seu SER. Este último pode ou não ser incluído no segundo, de acordo com o gosto de cada um. 
         Estamos, pois, diante de três caminhos. Qual deles o verdadeiro? Esta, acredito, é uma falsa questão. Quando construímos nossas teorias ou nossas teorizações, valemo-nos de observações fenomênicas que serão organizadas, valoradas e selecionadas segundo nossas concepções inconscientes (penso também nas pré-concepções de Bion). Tendemos a nos relacionar com os nossos analisandos segundo dinamismos que se formaram ao longo de nossa vida, dinamismos estes criados no contato com figuras significativas, desde pais até psicanalistas. É nossa experiência total, incluindo-se aí leituras, teorias, e o que mais seja, que está em jogo quando estamos trabalhando em nossos consultórios. Temos predisposições afetivas, intelectuais, psicomentessomáticas e buscamos ou inventamos teorias que permitam balizar a nossa forma de ser e proceder. Interpretamos assim os fatos segundo nosso direcionamento como analistas. Um símile: quando se escreve uma biografia a subjetividade do autor está presente. Duas biografias sempre serão diferentes, embora se refiram a uma mesma vida. O mesmo pode-se dizer da adaptação de livros ao cinemas: o livro “Ligações perigosas” foi filmado por dois grandes cineastas, Stephen Frears e Milos Forman que deram versões diferentes ao mesmo livro. (um dos filmes tem o mesmo nome do livro e outro se chama “Valmont - uma história de seduções. Valmont é o nome de um dos personagens do livro. Houve ainda uma adaptação do livro (ou do filme) à época atual, resultando em uma outra perspectiva). São apenas analogias que pretendem tão somente clarificar a idéia de que os fatos, desde sua captação estão impregnados de subjetividade e são selecionados, organizados, valorados a partir das necessidades subjetivas do analista em ação no seu trabalho.  
         Teoricamente podemos imaginar que existe uma primeira identidade que chamei de ontológica. Corresponde à fase de fusão onde a mãe deverá estar presente com o seu SER, denso, consistente, voltando-se integralmente para o bebê afim de que este possa se apossar de sua identidade primeira, uma identidade prévia à identificação(a identificação pressupõe a presença de dois). Acho que a expressão “estar inteiramente voltado para o bebê com o seu SER integral” exprime aproximadamente a idéia. Aqueles que não tiveram uma mãe suficientemente boa nesse período apresentariam uma dificuldade de se sentirem existindo e ficariam em um nível muito primitivo de comportamento e defesa. Se minimamente a criança se experimentou como SER pode apresentar angústia de aniquilamento que a ameaça de desintegração, desperta. Estou aqui ligando teoria e prática. A hipótese teórica organiza para o analista 1-a fala dispersa, ansiosa, pouco coerente onde ele se sente chamado a acolher a fragmentação, 2- as atividades múltiplas sem objetivo que não seja a própria atividade, 3- o desajeitamento corporal resultante de uma coordenação motora falha. Supõe que o autismo e a confusão mental, a falta de referências na realidade (como na esquizofrenia hebefrênica ou na esquizofrenia simples) são formas derivadas da falta de SER. Não fica porém claro, em suas minúcias como isto se daria. Devo então renunciar a esta formulação, ou deixá-la como uma intuição a ser justificada? 
         Em seguida encontraríamos, na linha da dependência, uma regressão à transição entre a dependência absoluta e a dependência relativa. Se esta transição foi mal vivida, a passagem da onipotência absoluta (identidade ôntica) para a onipotência mitigada, da experiência unária de onipotência para a experiência dual eu----não-eu fica prejudicada. A segunda identidade que é a separação de si mesmo do mundo não se faz adequadamente. Estaríamos basicamente, segundo Winnicott/Abram no reino dos borderlines, esquizofrênicos, esquizóides. Teríamos uma identidade difusa, uma identidade que através das identificações projetivas e introjetivas excessivas tenderia a se espalhar para fora de si mesmo e a se deixar penetrar excessivamente pelo externo. Basicamente, a mãe não teria conseguido acompanhar os movimentos de retração e expansão do bebê. Não estaria suficientemente identificada com o seu bebê para perceber seu movimento de retorno à fase de dependência absoluta a partir da dependência relativa e vice-versa. Ou, numa outra linguagem que muitas vezes eu adoto, uma oscilação entre simbiose e fusão. Winnicott: “Vemos portanto que na infância e no manejo dos lactentes há uma distinção muito sutil entre a compreensão da mãe das necessidades do lactente baseada na empatia, e sua mudança para uma compreensão baseada em algo no lactente ou criança pequena que indica a necessidade. Isto é especialmente difícil para as mães por causa do fato das crianças vacilarem de um estado e outro; em um minuto estão fundidas com a mãe e requerem empatia, enquanto que no seguinte estão separadas dela, e então, se ela souber suas necessidade por antecipação, ela é perigosa, uma bruxa. É muito estranho que mães que não são nada instruídas se adaptem a estas mudanças no desenvolvimento satisfatório do lactente, e sem nenhum conhecimento da teoria. Este detalhe é reproduzido no trabalho analítico com pacientes borderline, e em todos os casos em certos momentos de grande importância quando a dependência na transferência é máxima”. (“O Brincar e a Realidade”, p.51/2). Se a mãe não acompanha o vai-e-vem de seu bebê este apresentará problemas na área de identificação/identidade. Pode sentir-se não aceito, não reconhecido, não autorizado quando da passagem da simbiose para a fusão e vice-versa. A flexibilidade da vida psíquica fica prejudicada pela intrusão materna. As necessidades do self do bebê (que aqui talvez já seja conveniente chamar de verdadeiro self) não são atendidas. Os dois estados não podem se suceder dentro de uma integração temporal. Diante da intrusão o bebê reagirá ativamente ou passivamente: poderá se revoltar e enraivecer-se, tentando a integração no tempo, ou se conformar, cindindo então os estados de fusão e de simbiose; deixa então de haver um fluxo livre entre estes dois estados, tendendo o bebê a privilegiar um dos estados, ficando o outro dissociado, mas passível de, de repente ser retomado.
         O que haveria de novo no que foi aqui apresentado? Creio que teremos uma referência teórica a mais para compreendermos personalidades que não se sentem consistentes e que aparecem em número crescente em nossos consultórios. São pessoas que para se sentirem existentes precisam muitas vezes de emoções fortíssimas, entre elas a emoção da violência/destruição. Creio que a minha principal contribuição neste trabalho é a noção de “identidade ontológica” que depende da capacidade de SER da mãe, e, posteriormente, do analista. 

                                                        Nahman Armony

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