O SER WINNICOTTIANO E A CLÍNICA DA PÓS-MODERNIDADE

UMA INVESTIGAÇÃO INICIAL SOBRE IDENTIFICAÇÃO E IDENTIDADE PRIMÁRIAS


                                                                                           
            Winnicott viveu em uma época em que a concepção de pós-modernidade estava se formando, e, sabedor ou não disto, contribuiu com conceitos que hoje podemos usar para teorizar sofrimentos humanos ligados à conjuntura atual. Sua idéia de identidade primária é-nos de grande valia para o entendimento de questões básicas do homem pós-moderno.

                A maioria dos autores considera a identidade como resultado das inúmeras identificações vividas, especialmente nos períodos iniciais da vida. Freud fala-nos de uma identificação primária, anobjetal, anterior ao investimento objetal e de uma identificação secundária que acontece depois de estabelecida a diferenciação entre o eu e o não-eu. Mas não fala de uma identidade primária. Já Winnicott, ao retomar a idéia de identificação primária, desenvolve-a até uma concepção de identidade primária, diferente da identidade propriamente dita que já depende de identificações secundárias.

            Essas idéias, colocadas mais claramente em termos winnicottianos, assim ficariam: ao nascer, o bebê estaria numa situação de “dependência absoluta” e a mãe em um estado de “preocupação materna primária”. Ao se referir a essa fase, Winnicott tanto fala de fusão quanto de identificação. Tentarei fazer uma diferenciação entre estes dois conceitos embora tal empreendimento não seja indispensável para a compreensão deste trabalho, pois ambos desembocam na identidade primária.

            Quando falamos de identificação está pressuposta a existência de um eu e de um outro.  Falar de identificação primária ou identificação anobjetal é uma contradição ou um paradoxo. Ele talvez se justifique como decorrência lingüística da identificação propriamente dita, a identificação secundária, expressão freqüentemente usada para abordar as relações primitivas mãe-filho. Deixará de ser um paradoxo se afirmarmos que desde o início da vida distingue-se um eu de um outro. Segundo Winnicott, do ponto de vista do bebê, não existe durante a fase da dependência absoluta uma distinção entre o eu e o não-eu. Talvez pudéssemos falar de identificação primária se nos colocássemos, não do ponto de vista do bebê, mas do ponto de vista da mãe. Mesmo uma mãe que realiza uma fusão tem consciência que ali estão dois seres ao mesmo tempo separados e unidos.

O uso da expressão identificação primária para se referir à fusão mãe-filho pode ainda ser entendido como decorrente de um ponto de vista do analista que vê essa mãe primitiva mais atendendo às necessidades do bebê do que contribuindo com o seu desejo para a formação de uma identidade. Talvez possamos dizer, a propósito, que a mãe simplesmente atende à necessidade que o bebê tem de que ela SEJA. É dessa forma que se pode interpretar o “seja” da frase de Outeiral “E esta mãe não é sempre uma única coisa ou coisa alguma, ela é aquilo que o bebê necessita que ela seja” (“Conhece-te a ti mesmo”). Este “seja” tanto pode ser referido ao SER da dependência absoluta quanto à capacidade de identificação da mãe na fase da dependência relativa.

            Se, ao invés de usar a expressão “identificação primária” falarmos de fusão estaremos pensando numa maior participação da mãe no processo de constituição da identidade. As fantasias, temores, sentimentos, esperanças da mãe interagem com as potencialidades do bebê e a identidade primária estará impregnada pela subjetividade da mãe. Posso usar como analogia, com vistas a uma maior compreensão do que estou querendo dizer, a idéia winnicottiana de superposição de duas áreas de brincar. Claro que a analogia é imperfeita, pois neste último caso já terão acontecido identificações secundárias, estando o eu já diferenciado de um não-eu.

            Winnicott introduz os conceitos de SER (feminino) e FAZER (masculino). Se na fase da dependência absoluta a mãe, em fusão com o seu bebê, pode simplesmente SER, então o bebê poderá tornar-se SER. Este SER é a sua identidade primária. A palavra “simplesmente” refere-se tanto ao caráter monolítico do conceito SER quanto ao fato de só podermos ver o processo sob um ponto de vista macro. Está além de nossas possibilidades a rememoração e a descrição representacional deste estado. Podemos apenas intuí-lo, talvez a partir de uma hipotética memória arcaica não-verbal a ser despertada mais pela capacidade impressionista/nebulosa da palavra poética do que pelo discurso logicamente coerente.

Na preocupação materna primária a mãe está presente psicossomaticamente, integralmente voltada para o bebê. Ela está SENDO para o bebê que então tem a experiência de SER, pois estão ambos fundidos. Impossível definir este SER da mãe. Podemos tentar alcançar a intuição do que é este SER usando abusivamente a frase de Lacan que diz ser o corpo o primeiro significante a adquirir significado para o sujeito, se tiver sido antes significante para a mãe. Ainda em busca de uma compreensão/intuição podemos transportar para a relação mãe-bebê a observação de Masud-Kahn sobre a presença psicossomática integral de um Winnicott inteiramente voltado para o analisando. Podem-se usar as palavras devotada, dedicada, capturada, fascinada, dizer que o bebê é a razão e foco de sua existência. Estas palavras e expressões só serviriam para tentar despertar no leitor a intuição do que é SER na relação com o bebê. Se na fase de fusão a mãe É para o bebê, então este pode também SER, o que significa que ele poderá ver confirmada a sua experiência de onipotência. Como estamos falando de SER não nos será difícil aceitar que está aparecendo uma primeira e primitiva identidade que pode ser chamada de ontológica. O bebê terá então uma presença tão verdadeira, real, consistente quanto a pedra ou qualquer outro objeto animado ou inanimado da natureza. Não há dúvida de que esse pensamento apresenta dificuldades. Poder-se-ia pensar que só se pode pensar o SER em oposição a um não-SER. Não é, porém o que Parmênides nos diz quando separa radicalmente o Ser do não-Ser em sua famosa frase: “o que é, é, e o que não-é não é”. Ou: “uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo”, concluindo a partir daí, através de um raciocínio sofisticado, que tudo é Ser e que não existe o não-Ser. Isso nos ajuda a alcançar a intuição de um bebê em estado de onipotência absoluta onde só ele existe e o universo todo é ele próprio; ele está em um estado de Ser com exclusão de todo não-Ser. Como em Parmênides, há aí uma espécie de plenitude que preenche todo o universo. Podemos agora formular uma frase-ponte entre teoria e prática. É importante que o analista SEJA para que o analisando possa SER. Isto é particularmente importante em pacientes nos quais, o sentimento de SER está prejudicado. Podemos aqui encontrar os fundamentos teóricos para que o analista esteja presente na sua relação com o paciente com o seu corpo e alma, ou melhor, com o seu soma, psique e mente, que este corpo/psique/mente integrado esteja inteiramente voltado - disponível e atento - para o seu analisando. A ênfase aqui estaria na presença silenciosa/falante do corpo/mente/psique do analista.

Falei alhures de três caminhos: a mãe como espelho do bebê, como parceira contribuinte e a mãe possibilitando o SER do bebê através de seu SER. Qual deles o verdadeiro? Esta é uma falsa questão. Em primeiro lugar os três podem, segundo o gosto de cada um, se incluírem. Em segundo lugar, quando construímos nossas teorias ou nossas teorizações, valemo-nos de observações fenomênicas que serão organizadas, valoradas e selecionadas segundo nossas concepções inconscientes (penso também nas pré-concepções de Bion). Tendemos a enxergar e a nos relacionar com os nossos analisandos segundo dinamismos que se formaram ao longo de nossa vida, dinamismos estes criados no contato com figuras significativas, desde pais até psicanalistas. É nossa experiência total, incluindo-se aí leituras, teorias e o que mais seja, que está em jogo quando estamos trabalhando em nossos consultórios. Temos predisposições afetivas, intelectuais, psicomentessomáticas e buscamos ou inventamos teorizações que permitam balizar a nossa forma de ser e proceder. Interpretamos assim os fatos dentro de uma óptica própria, subjetiva e objetiva, e, portanto, transicional.

            Teoricamente posso hipotetizar que existe uma primeira identidade à qual chamei de ontológica. Corresponde à fase de fusão onde a mãe deverá estar presente com o seu SER, denso, consistente, voltada integralmente para o bebê afim de que este possa constituir sua identidade primeira, uma identidade prévia à identificação. Acho que a expressão “estar inteiramente voltada para o bebê com o seu SER integral” junto com a idéia de fusão aproxima-nos da intuição que estamos buscando. Aqueles que não tiveram uma mãe suficientemente boa nesse período apresentariam uma dificuldade em sentirem dentro de si a presença de uma base firme, de um eixo central. Esta hipótese organiza para o analista 1- a fala dispersa, ansiosa, pouco coerente onde ele se sente chamado a acolher a fragmentação, 2- as atividades múltiplas e dispersas do analisando sem outro objetivo que não a própria atividade, 3- o desajeitamento corporal resultante de uma coordenação motora falha 4- a sensação contratransferencial de personalidades inconsistentes às quais faltaria um endoesqueleto psíquico e que necessitam de um exoesqueleto que vai desde o uso da superfície do corpo (tatuagens, corpo malhado, piercings, excessiva preocupação com a beleza) até coberturas referenciais externas em cuja série o analista é encaixado.

No extremo da deficiência da identidade primária estariam o autismo infantil, a confusão mental, a esquizofrenia hebefrênica, a esquizofrenia simples. Não fica porém claro, em suas minúcias, como isto se daria. Devo então renunciar a esta formulação, ou deixá-la como uma intuição a ser estudada? 

            Em seguida encontraríamos, na linha da dependência, uma regressão à transição entre a dependência absoluta e a dependência relativa. Se esta transição foi mal vivida, a passagem da onipotência absoluta (identidade ontológica) para a onipotência mitigada (identidade humana), da experiência unária de onipotência para a experiência dual eu----não-eu fica prejudicada. A segunda identidade que é a separação de si mesmo do mundo não se faz adequadamente. Estaríamos basicamente, segundo Winnicott/Abram no reino dos borderlines e esquizóides. Teríamos uma identidade difusa, uma identidade que através das identificações projetivas e introjetivas exageradas tenderia a invadir e a se deixar penetrar excessivamente pelo ambiente. Basicamente, a mãe não teria conseguido acompanhar os movimentos de retração e expansão do bebê. Não estaria suficientemente identificada com o seu bebê para perceber seu movimento de retorno à fase de dependência absoluta a partir da dependência relativa e vice-versa. Se a mãe não acompanha o vai-e-vem de seu bebê este apresentará problemas nas áreas das identificações e das identidades secundárias. Pode sentir-se não aceito, não reconhecido, não autorizado quando da passagem da simbiose para a fusão e vice-versa. A flexibilidade da vida psíquica fica prejudicada pela intrusão materna. Os dois estados não podem se suceder dentro de uma integração temporal. Diante da intrusão o bebê reagirá ativamente ou passivamente: poderá se revoltar e enraivecer-se, tentando a integração no tempo, ou se conformar, cindindo então os estados de fusão e de simbiose; deixa então de haver um fluxo livre entre estes dois estados, tendendo o bebê a privilegiar um dos estados, ficando o outro dissociado, mas passível de subitamente ser retomado. O mesmo pode acontecer quando da passagem da simbiose para a individuação (da dependência relativa para rumo à independência).

            As noções desenvolvidas neste trabalho pretendem focalizar especialmente aquelas personalidades que não se sentem consistentes e que aparecem em número crescente em nossos consultórios.

São pessoas que para se sentirem reais precisam muitas vezes de emoções fortíssimas, entre elas a emoção da violência/destruição. A noção de “identidade ontológica” que depende da capacidade de SER da mãe, e a importância atribuída à capacidade de SER do analista, podem nos ajudar no manejo de pessoas com sérios problemas na área da identidade primária.

A capacidade de SER da mãe estando prejudicada por uma sociedade que a requisita como força de trabalho, trazendo-lhe preocupações e incertezas que ultrapassam o âmbito doméstico, inserindo-a numa subjetividade que cultua o individualismo, o corpo belo, o espetáculo, o sucesso, dificulta o exercício de sua função de SER. Será a capacidade de SER do analista que ajudará analisandos com um endoesqueleto psíquico precário a se fortalecerem.
                          
                                           Nahman Armony
                                                             ago.2009
 

 

 

 

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