EXPERIÊNCIA EXEMPLAR - EXPERIÊNCIA MODELAR
PAM é a primeira palavra jamais
dita por um ser humano. Ela surgiu quando um nosso ancestral, atacado pelo
equivalente a um lobo, lançou mão de um tronco de árvore que, por acaso, estava
ao seu alcance e abateu o animal. No momento do abate, nosso corajoso antepassado gritou PAM. Evidentemente, neste
momento ainda não possuímos uma palavra. Trata-se de um som associado a uma ação
e dela faz parte. Ao atacar o lobo, nosso personagem realiza movimentos
voluntários com braços, mãos e pernas, e movimentos suplementares involuntários
com o restante da musculatura, necessários à manutenção do equilíbrio corporal.
Além disto, deve estar possuído de um estado psicológico particular, um estado
colérico que lhe permita superar o medo e atacar. Este estado psicológico está
acompanhado de manifestações físicas diversas, incluindo-se aí os sons
emitidos. As alterações corporais ao mesmo tempo expressam e mantêm o estado de
cólera necessário à luta. Digamos que o nosso genial tetravô, após a morte do
inimigo, e antecipando de séculos o jubilo comemorativo de um jogador de
futebol ao fazer um gol, tenha descarregado seu excedente de energia brandindo
o tronco acima da cabeça e, cheio de alegria, tenha repetidamente gritado PAM
ao mesmo tempo em que dava pulos de contentamento, numa espécie de dança e
canto primitivos da mais intensa euforia. Neste momento, o conjunto do
comportamento comemorativo, incluindo-se aí o significante PAM, poderia
significar: "matei o lobo e estou feliz por estar vivo e meu inimigo
morto". PAM, aqui, é um dos aspectos da ação e da emoção; a emoção
descarrega-se pela ação e o grito é também ação: o músculo diafragmático
empurrando o ar do pulmão através da glote, fá-lo sair da cavidade bucal numa
explosão bilabial. Sendo ação PAM é também um som.
Imaginemos um segundo momento.
Desta vez, nosso gênio está acompanhado por um outro ser humano. Por acaso,
estão distantes entre si e um tronco jaz perto do companheiro. Nosso personagem
pressente que vai ser atacado por um mamífero carniceiro e corre em direção ao
tronco gritando PAM. Seu companheiro espantado e mobilizado pela situação,
acompanha a corrida do amigo ouvindo o som PAM repetido. A cena termina com um happy end, matando-se o animal. PAM
aqui, ainda pertence a uma ação e a uma situação singular; porém já se
independentiza do gesto de ataque e sobrevoa por sobre toda a seqüência vivida.
É um som que dá um precário mínimo destaque ao objeto "tronco", um
significante cujo significado seria aproximadamente o seguinte: "quero o
tronco para poder matar o meu inimigo mortal". Inicia-se aqui a sua função
de comunicação.
Terceiro momento: novamente
Brucutu (nosso gênio) e seu companheiro. Com a diferença de que o atacado é o
companheiro. Brucutu ao vê-lo em perigo aponta para o tronco e grita
"PAM" correndo em seu auxílio. PAM continua pertencendo a uma
situação particular, real e atual. Porém ganha uma ainda maior independência.
Agora, ela indica mais claramente um objeto delimitado, aponta para uma
existência, embora esta existência mal se distinga do conjunto da situação
vivida; distingue-se porém o suficiente para agora merecer o nome de
"palavra"; uma palavra que dita em meio a uma ação real, pertence a
esta ação. Aqui o significante PAM poderia ser traduzido por "pegue este
tronco para se defender". Sua função de comunicação está se consolidando.
Quarta cena: Brucutu conta sua
aventura para os companheiros. Re-produz a cena vivamente e nesta re-produção
emprega o significante PAM em todos os seus usos anteriores: como inerente à
ação de matar, como inerente à explosão de júbilo comemorativo e como
indicativo de um objeto carregado de uma importância vital dentro da seqüência
de uma ação. Neste caso, diferentemente dos outros, a situação embora singular
e real no sentido de uma existência em si e por si, não é atual, mas sim uma
re-produção vivencial, uma repetição diferencial de uma situação já ocorrida.
Os objetos não estão presentes, mas o relato re-produz a intensidade
experiencial, atualizando e dando força,
vivacidade e presença aos objetos ausentes, aos acontecimentos já
passados. Há uma certa independentização da cena re-produzida em relação ao
acontecimento, e a palavra PAM, partícipe da re-produção, está acumpliciada
nesta independência. PAM goza pois de uma dupla
"certa"-independência: a que vem de sua vinculação a uma re-produção
vivencial e a que se pode reconhecer pela delimitação de um certo território,
que, embora fluido, não deixa de ter certo destaque.
Quinta cena: Brucutu tem à sua
volta um grupo de crianças e, preocupado com os perigos da floresta,
resolve lhes ensinar a se defender.
Inventa então uma cena em que, atacado por um lobo, abate-o com um tronco. Da mesma
maneira que no exemplo anterior PAM aqui é usado em suas várias acepções,
dando-se-lhe, contudo, certo destaque
como objeto de agressão/defesa o que faz ressaltar sua angulosidade indicativa;
este modo de visada não se apresenta porém como um foco nítido já que o objeto
PAM está mergulhado na intensidade dos acontecimentos, neles perdendo os seus
contornos de pura indicação. O objeto PAM não tem seus limites determinados
pela extensão física do tronco, mas continua-se e apaga-se na emocionalidade e
força propulsora dos acontecimentos. Voltaremos, mais tarde, a este aspecto.
Neste momento quero mirar o acontecimento PAM pela perspectiva de seu salto
qualitativo nas modalidades do pensar. Vejamos: Brucutu participou de inúmeras
caçadas e foi atacado por lobos inúmeras vezes. O desempenho re-produtivo que
ele realiza não se refere a uma caçada específica mas representa um resumo, uma
contração, uma síntese vivencial feita por ele mesmo e à sua maneira de todas
as caçadas das quais participou. É, portanto, uma cena ao mesmo tempo
reproduzida e imaginada, repetida e inventada, porém uma invenção calcada em
experiências e atuada para os garotos como uma experiência viva, embora não
seja real como a cena 4, nem atual como a cena 3. Podemos chamar a esta
performance experiencial que está sendo vivamente transmitida, de experiência exemplar, pois aqui Brucutu
traz um exemplo vivo, pleno de força e emoção para os garotos. Para estes,
tanto faz Brucutu re-produzir uma experiência singular ou atuar uma experiência
exemplar. O que conta para eles é que Brucutu possa envolvê-los em sua
narrativa, colocando-os dentro da atividade da caçada. Para isto, Brucutu
deverá estar finamente sintonizado com os sentimentos, expectativas e fantasias
da platéia, o que exige dele uma abertura perceptivo-emocional para a cena
presente, a cena que está sendo vivida com os meninos. Este aprendizado vivo
será a base para qualquer outro aprendizado que possa ser realizado. Os objetos
só adquirem interesse e significado plenos quando implicados em vida e emoção.
A vantagem de Brucutu atuar não uma situação concreta, mas uma situação
exemplar está no fato dele poder condensar em uma única performance as
experiências mais marcantes, mais importantes e mais freqüentes, podendo
graduar a ênfase segundo o conjunto de suas experiências e de acordo com as
reações do público. Mais tarde, o aedo terá à sua disposição situações
exemplares das quais se utilizará para se comunicar vivencialmente com a
platéia. Estas situações exemplares serão chamadas de mitos.
Sexta situação: séculos se
passaram. Um outro salto se realiza. Esta mesma cena é agora contada sem
teatralização, apenas com palavras, o que cria um distanciamento afetivo e
vivencial. Nesta modalidade revolucionária separa-se designação de emoção; a palavra
PAM apenas nomeia um objeto, dando-lhe contornos nítidos, isolando-o da
situação viva, e possibilitando assim o seu estudo como objeto em si. Ele pode
ser agora fisicamente estudado, transformado em
moléculas e átomos, cortado, macerado, queimado e o que mais se queira
experimentar. Pode ser avaliado em seu peso, consistência, força de impacto,
etc. Pode-se fazer um estudo minucioso de seus atributos, de suas propriedades
defensivas e ofensivas, da técnica de manejo, etc. Pode-se inclusive realizar
um treinamento com o objeto, aperfeiçoando-se assim o seu uso. Em seguida,
pode-se escrever um tratado das propriedades, usos e técnicas relativas ao PAM.
Este tratado não será mais uma síntese de situações vividas, mas será justo o
resultado de um distanciamento afetivo e gnosiológico das situações em si
intensas e vibrantes. Estamos agora diante de uma teoria que fornece um modelo
teórico intelectual para a utilização do objeto, uma teoria que se comunica,
que transmite o conhecimento através de um modelo. Tanto faz tratar-se de um
modelo aberto, aquele que permite uma flexibilidade ao leitor, ou de um modelo
fechado a ser inflexivelmente copiado. Mesmo a teoria modelar aberta difere da
teoria exemplar por separar o objeto do seu contexto, o observador da vivência.
O conhecimento comunicado pela teoria modelar faz com que as situações apareçam
geometrizadas, reduzindo os acontecimentos a esquemas minimalistas,
tirando-lhes a vitalidade, a intensidade e a vibração.[2]
Já o conhecimento comunicado pela teoria exemplar mantém a força e a
intensidade com que a vida decorre; é um conhecimento e comunicação instalados
no devir e que estão imbricados, misturados, aos acontecendos em todas as suas
dimensões. O conhecimento (e comunicação) modelar, dependendo do uso que dela
se fizer, poderá ser valiosamente útil ou extremamente perigosa. Imaginemos
Brucutu, no instante da luta, pensando nas propriedades da madeira; desviada
sua atenção do momento presente será presa fácil para o mamífero carniceiro.
Mas, se incorporada à experiência, o conhecimento (e comunicação) modelar
aumentará o repertório possível de ações de Brucutu. É preciso, pois, que o
conhecimento modelar se insira de tal maneira no devir, que ela própria venha a
se constituir em experiência. Transformar o modelo em experiência, eis a
utilização ideal do estudo realizado fora dos acontecendos.
A filosofia platônica, com o seu
mundo de essências servindo de modelo para o mundo das aparências, fornece um
protótipo de conhecimento modelar enquanto que o mito recontado
diferencialmente pelo aedo em sintonia fina com os sentimentos da platéia, dá-nos
o paradigma de comunicação exemplar. Poderemos compreender melhor teoria-modelar e teoria-exemplar se nos
reportarmos às concepções de corpo e alma em Platão e no aedo Homero. Para
Platão melhor a alma conhecerá as essências quanto menos sujeita ao corpo; é na
morte que a alma, inteiramente liberta dos grilhões do corpo, poderá finalmente
visitar sem limitações o mundo das idéias, adquirindo assim o conhecimento pleno
das essências. Homero não nos fala de alma enquanto vida vigora; enquanto vivo,
o corpo está vivificado pela pneuma -
sopro vital. A alma - psiqué -, só se faz presente no momento da morte. Esta
alma é apenas uma sombra, um êidolon,
privada de entendimento e de capacidade de comunicação.[3]
Se, analogicamente, pensarmos na palavra como dotada de corpo e alma, diremos
que a palavra homérica fala de um objeto como parte dos
acontecendos, mantendo alma e
corpo unidos, enquanto que a palavra platônica retira o objeto do devir,
separando corpo e alma. Esta separação que segundo Platão permite o verdadeiro
conhecimento (episteme), na perspectiva de Homero torna-o quase impossível.
A comunicação exemplar passa-se
no devir e sua unidade pensante é o corpomente em indissolúvel união. A
comunicação, a relação e o conhecimento fazem-se diretamente de pessoa a
pessoa.
A comunicação modelar ao
introduzir um terceiro - o modelo - promove um desvio que passa pelo conceito e
que ao retornar à relação inter-sujeitos a empobrece e desvitaliza. No modo
exemplar a teoria é móvel, modificando-se na medida em que novos acontecimentos
vão sendo vividos e incorporados à experiência. Assim, a teoria exemplar
(teoria-mito) está em perene transformação, refazendo permanentemente a síntese
dos acontecimentos. Esta precariedade, aparentemente inconveniente, torna-se
fecunda se pensarmos nestas sínteses em termos de repetição diferencial, de
eterno retorno espiralado. Poderemos então nos apropriar da teoria como
experiência viva, como memória de frescor estético indestrutível, como
repertório experiencial e vivencial a ser atualizado quando a situação vivida o
solicitar. A comunicação/relação/conhecimento acompanhará as ondulações e
meandros do devir.
[1]BENJAMIN,
Walter , 1985b “A Imagem de Proust”. In: _________, Magia e Técnica, Arte e Política, p.
36.. Neste mesmo livro, no ensaio “O narrador. Considerações sobre a obra de
Nikolai Leskow”, 1985c encontra-se outro trecho pertinente à “História
do Pam”: “Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão
sobre uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é
necessário primeiro saber narrar a história (...) A arte de narrar está
definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção.
Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um ‘sintoma
de decadência’ ou uma característica ‘moderna’. Na realidade, esse processo,
que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo
tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido
concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas. O
primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o
surgimento do romance no início do período moderno (...) Ele se distingue,
especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta:
sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência de seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do
romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas
preocupações mais importantes...”. P. 200/201.
[2]Ver
MORIN, E., 1991, p. 20: “...o filósofo das ciências, Bachelard, tinha
descoberto que o simples não existe. A ciência constrói o objeto extraindo-o do
seu meio complexo para o colocar em situações experimentais não complexas. A
ciência não é o estudo do universo simples, é uma simplificação heurística
necessária para libertar certas propriedades e mesmo certas leis”.
[3]Cf.
BOHADANA, E., 1990.
(do livro Borderline: uma outra normalidade.)
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