EXPERIÊNCIA EXEMPLAR - EXPERIÊNCIA MODELAR

                                   Nem  tudo nessa vida é modelar, mas tudo é exemplar.[1]

               

                PAM é a primeira palavra jamais dita por um ser humano. Ela surgiu quando um nosso ancestral, atacado pelo equivalente a um lobo, lançou mão de um tronco de árvore que, por acaso, estava ao seu alcance e abateu o animal. No momento do abate, nosso corajoso  antepassado gritou PAM. Evidentemente, neste momento ainda não possuímos uma palavra. Trata-se de um som associado a uma ação e dela faz parte. Ao atacar o lobo, nosso personagem realiza movimentos voluntários com braços, mãos e pernas, e movimentos suplementares involuntários com o restante da musculatura, necessários à manutenção do equilíbrio corporal. Além disto, deve estar possuído de um estado psicológico particular, um estado colérico que lhe permita superar o medo e atacar. Este estado psicológico está acompanhado de manifestações físicas diversas, incluindo-se aí os sons emitidos. As alterações corporais ao mesmo tempo expressam e mantêm o estado de cólera necessário à luta. Digamos que o nosso genial tetravô, após a morte do inimigo, e antecipando de séculos o jubilo comemorativo de um jogador de futebol ao fazer um gol, tenha descarregado seu excedente de energia brandindo o tronco acima da cabeça e, cheio de alegria, tenha repetidamente gritado PAM ao mesmo tempo em que dava pulos de contentamento, numa espécie de dança e canto primitivos da mais intensa euforia. Neste momento, o conjunto do comportamento comemorativo, incluindo-se aí o significante PAM, poderia significar: "matei o lobo e estou feliz por estar vivo e meu inimigo morto". PAM, aqui, é um dos aspectos da ação e da emoção; a emoção descarrega-se pela ação e o grito é também ação: o músculo diafragmático empurrando o ar do pulmão através da glote, fá-lo sair da cavidade bucal numa explosão bilabial. Sendo ação PAM é também um som.          

                Imaginemos um segundo momento. Desta vez, nosso gênio está acompanhado por um outro ser humano. Por acaso, estão distantes entre si e um tronco jaz perto do companheiro. Nosso personagem pressente que vai ser atacado por um mamífero carniceiro e corre em direção ao tronco gritando PAM. Seu companheiro espantado e mobilizado pela situação, acompanha a corrida do amigo ouvindo o som PAM repetido. A cena termina com um happy end, matando-se o animal. PAM aqui, ainda pertence a uma ação e a uma situação singular; porém já se independentiza do gesto de ataque e sobrevoa por sobre toda a seqüência vivida. É um som que dá um precário mínimo destaque ao objeto "tronco", um significante cujo significado seria aproximadamente o seguinte: "quero o tronco para poder matar o meu inimigo mortal". Inicia-se aqui a sua função de comunicação.

                Terceiro momento: novamente Brucutu (nosso gênio) e seu companheiro. Com a diferença de que o atacado é o companheiro. Brucutu ao vê-lo em perigo aponta para o tronco e grita "PAM" correndo em seu auxílio. PAM continua pertencendo a uma situação particular, real e atual. Porém ganha uma ainda maior independência. Agora, ela indica mais claramente um objeto delimitado, aponta para uma existência, embora esta existência mal se distinga do conjunto da situação vivida; distingue-se porém o suficiente para agora merecer o nome de "palavra"; uma palavra que dita em meio a uma ação real, pertence a esta ação. Aqui o significante PAM poderia ser traduzido por "pegue este tronco para se defender". Sua função de comunicação está se consolidando.

                Quarta cena: Brucutu conta sua aventura para os companheiros. Re-produz a cena vivamente e nesta re-produção emprega o significante PAM em todos os seus usos anteriores: como inerente à ação de matar, como inerente à explosão de júbilo comemorativo e como indicativo de um objeto carregado de uma importância vital dentro da seqüência de uma ação. Neste caso, diferentemente dos outros, a situação embora singular e real no sentido de uma existência em si e por si, não é atual, mas sim uma re-produção vivencial, uma repetição diferencial de uma situação já ocorrida. Os objetos não estão presentes, mas o relato re-produz a intensidade experiencial, atualizando e dando força,  vivacidade e presença aos objetos ausentes, aos acontecimentos já passados. Há uma certa independentização da cena re-produzida em relação ao acontecimento, e a palavra PAM, partícipe da re-produção, está acumpliciada nesta independência. PAM goza pois de uma dupla "certa"-independência: a que vem de sua vinculação a uma re-produção vivencial e a que se pode reconhecer pela delimitação de um certo território, que, embora fluido, não deixa de ter certo destaque.         

                Quinta cena: Brucutu tem à sua volta um grupo de crianças e, preocupado com os perigos da floresta, resolve  lhes ensinar a se defender. Inventa então uma cena em que, atacado por um lobo, abate-o com um tronco. Da mesma maneira que no exemplo anterior PAM aqui é usado em suas várias acepções, dando-se-lhe, contudo,  certo destaque como objeto de agressão/defesa o que faz ressaltar sua angulosidade indicativa; este modo de visada não se apresenta porém como um foco nítido já que o objeto PAM está mergulhado na intensidade dos acontecimentos, neles perdendo os seus contornos de pura indicação. O objeto PAM não tem seus limites determinados pela extensão física do tronco, mas continua-se e apaga-se na emocionalidade e força propulsora dos acontecimentos. Voltaremos, mais tarde, a este aspecto. Neste momento quero mirar o acontecimento PAM pela perspectiva de seu salto qualitativo nas modalidades do pensar. Vejamos: Brucutu participou de inúmeras caçadas e foi atacado por lobos inúmeras vezes. O desempenho re-produtivo que ele realiza não se refere a uma caçada específica mas representa um resumo, uma contração, uma síntese vivencial feita por ele mesmo e à sua maneira de todas as caçadas das quais participou. É, portanto, uma cena ao mesmo tempo reproduzida e imaginada, repetida e inventada, porém uma invenção calcada em experiências e atuada para os garotos como uma experiência viva, embora não seja real como a cena 4, nem atual como a cena 3. Podemos chamar a esta performance experiencial que está sendo vivamente transmitida, de experiência exemplar, pois aqui Brucutu traz um exemplo vivo, pleno de força e emoção para os garotos. Para estes, tanto faz Brucutu re-produzir uma experiência singular ou atuar uma experiência exemplar. O que conta para eles é que Brucutu possa envolvê-los em sua narrativa, colocando-os dentro da atividade da caçada. Para isto, Brucutu deverá estar finamente sintonizado com os sentimentos, expectativas e fantasias da platéia, o que exige dele uma abertura perceptivo-emocional para a cena presente, a cena que está sendo vivida com os meninos. Este aprendizado vivo será a base para qualquer outro aprendizado que possa ser realizado. Os objetos só adquirem interesse e significado plenos quando implicados em vida e emoção. A vantagem de Brucutu atuar não uma situação concreta, mas uma situação exemplar está no fato dele poder condensar em uma única performance as experiências mais marcantes, mais importantes e mais freqüentes, podendo graduar a ênfase segundo o conjunto de suas experiências e de acordo com as reações do público. Mais tarde, o aedo terá à sua disposição situações exemplares das quais se utilizará para se comunicar vivencialmente com a platéia. Estas situações exemplares serão chamadas de mitos.

                Sexta situação: séculos se passaram. Um outro salto se realiza. Esta mesma cena é agora contada sem teatralização, apenas com palavras, o que cria um distanciamento afetivo e vivencial. Nesta modalidade revolucionária separa-se designação de emoção; a palavra PAM apenas nomeia um objeto, dando-lhe contornos nítidos, isolando-o da situação viva, e possibilitando assim o seu estudo como objeto em si. Ele pode ser agora fisicamente estudado, transformado em  moléculas e átomos, cortado, macerado, queimado e o que mais se queira experimentar. Pode ser avaliado em seu peso, consistência, força de impacto, etc. Pode-se fazer um estudo minucioso de seus atributos, de suas propriedades defensivas e ofensivas, da técnica de manejo, etc. Pode-se inclusive realizar um treinamento com o objeto, aperfeiçoando-se assim o seu uso. Em seguida, pode-se escrever um tratado das propriedades, usos e técnicas relativas ao PAM. Este tratado não será mais uma síntese de situações vividas, mas será justo o resultado de um distanciamento afetivo e gnosiológico das situações em si intensas e vibrantes. Estamos agora diante de uma teoria que fornece um modelo teórico intelectual para a utilização do objeto, uma teoria que se comunica, que transmite o conhecimento através de um modelo. Tanto faz tratar-se de um modelo aberto, aquele que permite uma flexibilidade ao leitor, ou de um modelo fechado a ser inflexivelmente copiado. Mesmo a teoria modelar aberta difere da teoria exemplar por separar o objeto do seu contexto, o observador da vivência. O conhecimento comunicado pela teoria modelar faz com que as situações apareçam geometrizadas, reduzindo os acontecimentos a esquemas minimalistas, tirando-lhes a vitalidade, a intensidade e a vibração.[2] Já o conhecimento comunicado pela teoria exemplar mantém a força e a intensidade com que a vida decorre; é um conhecimento e comunicação instalados no devir e que estão imbricados, misturados, aos acontecendos em todas as suas dimensões. O conhecimento (e comunicação) modelar, dependendo do uso que dela se fizer, poderá ser valiosamente útil ou extremamente perigosa. Imaginemos Brucutu, no instante da luta, pensando nas propriedades da madeira; desviada sua atenção do momento presente será presa fácil para o mamífero carniceiro. Mas, se incorporada à experiência, o conhecimento (e comunicação) modelar aumentará o repertório possível de ações de Brucutu. É preciso, pois, que o conhecimento modelar se insira de tal maneira no devir, que ela própria venha a se constituir em experiência. Transformar o modelo em experiência, eis a utilização ideal do estudo realizado fora dos acontecendos.

                A filosofia platônica, com o seu mundo de essências servindo de modelo para o mundo das aparências, fornece um protótipo de conhecimento modelar enquanto que o mito recontado diferencialmente pelo aedo em sintonia fina com os sentimentos da platéia, dá-nos o paradigma de comunicação exemplar. Poderemos compreender melhor  teoria-modelar e teoria-exemplar se nos reportarmos às concepções de corpo e alma em Platão e no aedo Homero. Para Platão melhor a alma conhecerá as essências quanto menos sujeita ao corpo; é na morte que a alma, inteiramente liberta dos grilhões do corpo, poderá finalmente visitar sem limitações o mundo das idéias, adquirindo assim o conhecimento pleno das essências. Homero não nos fala de alma enquanto vida vigora; enquanto vivo, o corpo está vivificado pela pneuma - sopro vital. A alma - psiqué -,  só se faz presente no momento da morte. Esta alma é apenas uma sombra, um êidolon, privada de entendimento e de capacidade de comunicação.[3] Se, analogicamente, pensarmos na palavra como dotada de corpo e alma, diremos que a palavra homérica fala de um objeto como parte  dos  acontecendos, mantendo alma e  corpo unidos, enquanto que a palavra platônica retira o objeto do devir, separando corpo e alma. Esta separação que segundo Platão permite o verdadeiro conhecimento (episteme), na perspectiva de Homero torna-o quase impossível.

                A comunicação exemplar passa-se no devir e sua unidade pensante é o corpomente em indissolúvel união. A comunicação, a relação e o conhecimento fazem-se diretamente de pessoa a pessoa.

                        A comunicação modelar ao introduzir um terceiro - o modelo - promove um desvio que passa pelo conceito e que ao retornar à relação inter-sujeitos a empobrece e desvitaliza. No modo exemplar a teoria é móvel, modificando-se na medida em que novos acontecimentos vão sendo vividos e incorporados à experiência. Assim, a teoria exemplar (teoria-mito) está em perene transformação, refazendo permanentemente a síntese dos acontecimentos. Esta precariedade, aparentemente inconveniente, torna-se fecunda se pensarmos nestas sínteses em termos de repetição diferencial, de eterno retorno espiralado. Poderemos então nos apropriar da teoria como experiência viva, como memória de frescor estético indestrutível, como repertório experiencial e vivencial a ser atualizado quando a situação vivida o solicitar. A comunicação/relação/conhecimento acompanhará as ondulações e meandros do devir.




[1]BENJAMIN, Walter , 1985b “A Imagem de Proust”. In: _________,   Magia e Técnica, Arte e Política, p. 36.. Neste mesmo livro, no ensaio “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskow”, 1985c encontra-se outro trecho pertinente à “História do Pam”: “Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (...) A arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção. Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um ‘sintoma de decadência’ ou uma característica ‘moderna’. Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas. O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno (...) Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes...”. P. 200/201.
[2]Ver MORIN, E., 1991, p. 20: “...o filósofo das ciências, Bachelard, tinha descoberto que o simples não existe. A ciência constrói o objeto extraindo-o do seu meio complexo para o colocar em situações experimentais não complexas. A ciência não é o estudo do universo simples, é uma simplificação heurística necessária para libertar certas propriedades e mesmo certas leis”.
[3]Cf. BOHADANA, E., 1990.
 
                                                                Nahman Armony 

(do livro Borderline: uma outra normalidade.) 

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