BORDERLINE, IDENTIFICAÇÃO E SUBJETIVIDADE PÓS-MODERNA

                                               Nahman Armony

 

A grosso-modo pode-se dizer que durante aproximadamente os primeiros 50 anos de psicanálise o neurótico domina a cena psicanalítica e que, de lá para cá, as chamadas síndromes limítrofes têm ocupado um lugar cada vez maior na clínica e no pensamento psicanalítico.

Estes conjuntos (neurose e borderline) referem-se a uma patologia inserida em um tempo, em uma subjetividade. Representam dois períodos: o moderno e o pós-moderno. São representantes, por assim dizer, patológicos, com uma correspondência na normalidade. Existe uma normalidade e uma patologia neurótica e uma outra normalidade e patologia borderline. 

 Para este dois grupos podemos conceber duas linhas de desenvolvimento diferentes e independentes, cada uma delas apresentando uma gradação que vai do patológico absoluto ao normal ideal. Assim pensam alguns autores como Bergeret, Winnicott e outros. Farei somente uma citação de Winnicott: “Os psicanalistas experientes concordariam em que há uma gradação da normalidade não somente no sentido da neurose mas também da psicose (...) Pode ser verdade que há um elo mais íntimo entre normalidade e psicose do que entre normalidade e neurose; isto é, em certos aspectos. Por exemplo, o artista tem a habilidade e a coragem de estar em contato com os processos primitivos aos quais o neurótico não tolera chegar, e que as pessoas sadias podem deixar passar para o seu próprio empobrecimento”[1]

Estamos ampliando, desta forma, os conceitos de neurótico e de borderline (neuróide e psicóide segundo André Martins)[2] estendendo-os a todas pessoas de nossa sociedade, qualquer que seja o grau de patologia, saúde, doença, normalidade, anormalidade, etc. que possa a elas ser atribuído. Daí surgiu a idéia do borderline brando, um borderline próximo do pólo da normalidade[3]. 

Então o neurótico (ou neuróide) pertence a uma episteme e o borderline (ou psicóide) a outra.

Cada época tem a sua episteme, a sua subjetividade, subjetividade esta ligada ao tempo histórico e que atravessa os vários segmentos do ser e fazer humano: econômico, político, cultural, familiar, pessoal, etc.

Para efeito de estudo do borderline e do neurótico, escolherei, inicialmente, alguns aspectos da subjetividade: da subjetividade moderna retirarei a repressão e o recalque; da pós-moderna a condescendência, a onipotência mitigada e a cisão. A repressão e o recalque “produzem” a neurose (desde o seu pólo patológico ao seu pólo normal)[4], enquanto que a condescendência, a onipotência mitigada e a cisão “produzem” a gradação patológico-normal borderline. 

Podemos ainda acompanhar um movimento subjetivo que vai da repressão à desrepressão. O borderline só pôde se tornar, na atualidade, uma idéia dominante em virtude do movimento social de desrepressão. Onde podemos, didaticamente melhor visualizar este movimento é na passagem do capitalismo de acumulação que desestimulava o consumo (contenção do desejo, repressão) e estimulava a poupança, para o capitalismo de consumo que desestimula a poupança e estimula o consumo (liberação e incitação do desejo). Também percebe-se este mesmo movimento na família que de repressora tornou-se condescendente, permitindo uma liberdade ampla para a realização de desejos dos filhos. Com isso, há uma tendência de passagem de uma interioridade para uma exterioridade, de uma dinâmica calcada no recalque para uma dinâmica centrada na onipotência/cisão, de um superego forte capaz de se bastar a si mesmo, para um superego dependente da opinião e aprovação do ambiente. O dinamismo predominante de funcionamento da personalidade, até então o recalque, passa a ser a onipotência mitigada e a cisão.

 

REPRESSÃO-RECALQUE

Além da diminuição da repressão social e educacional, além da questão do capitalismo tardio e do declínio do nome-do-pai podemos encontrar outros elementos na genealogia da repressão-recalque. Por exemplo, a atividade da igreja, com sua noção de pecado e culpa, teve seu papel no desenvolvimento da subjetividade moderna. Quero, porém me estender na questão da repressão da conotação da palavra.

Antes do aparecimento da ciência empírico-racional as palavras tinham uma ampla conotação. Com o surgimento das ciências exatas, com sua necessidade de precisão, de cálculo, ela, a ciência, reduziu a conotação à denotação. A palavra não tinha mais uma aura que permitisse uma polissemia, um deslizamento. Ela passou a ser dura, engessada, exata. Isabelle Stengers[5] dá um exemplo dessa transformação. A noção de velocidade reportava-se a um tempo gasto para percorrer um espaço; a noção de intensidade tanto servia para falar da velocidade crescente de um corpo em queda, quanto de um cavalo que reduzia sua velocidade por cansaço, como ainda de uma  vida que se tornava cada vez mais virtuosa. Intensidade era um conceito holístico que podia ser usado em vários campos da vida, desde a física até a moral. Importante assinalar o aspecto de mistério que a palavra "intensidade" possuía e que a colocava numa região ao mesmo tempo objetiva e subjetiva,  permitindo um uso universal da palavra.

Ao criar o conceito de "velocidade instantânea" Galileu promoveu uma revolução; retirando a subjetividade dos conceitos, tornou-os privativos da física, dando a partida para o esvaziamento do inefável da palavra; também delimitou o campo da física separando-o dos outros campos da vida. Já não era possível usar o conceito de "velocidade instantânea" ou de "aceleração" para falar da moral ou da fisiologia. Porém, fora da física, as palavras conservavam a sombra do incognoscível. Na medida em que as ciências exatas obtiveram um estrondoso sucesso, passaram a paradigma de todos os outros campos do conhecimento que assim deveriam renunciar ao mistério, à subjetividade e à imprecisão - à faixa de desconhecimento enfim - e se conformar à objetividade dos termos das ciências exatas. A denotação da palavra passou a valer mais que a conotação. Com isto expulsava-se do mundo o inefável, o fantasmático, o mítico. Descartes falava das idéias “claras e distintas” e Newton organizou o mundo como um mecanismo de relógio, onde tudo funcionaria perfeitamente e tudo seria previsível. O pensamento cartesiano e a física newtoniana fizeram com que a humanidade acreditasse que o mundo poderia se transformar em um paraíso de onde o mal seria abolido. O mundo poderia funcionar como um perfeito mecanismo de relógio. Bastava dar tempo para a ciência trabalhar. A ciência necessitava de conceitos e conceitos eram reduções do campo fenomênico, redução essa que invadiu todo o pensamento existente. O pensamento obedecia à lógica da contradição, à lógica da exclusão. Simplificava-se o mundo através da ciência. Tudo poderia ser explicado por cálculo. Mas para isso as palavras tinham de ser exatas, e com isso reprimiam-se as suas conotações.

Reportemo-nos agora a Foucault. Este autor fala-nos de sociedade imperial e de sociedade disciplinar. Na imperial o homem era livre até o limite em que se chocava com a lei imperial. Na disciplinar o homem era induzido desde cedo a ter um comportamento perpetuador do status-quo. O panóptico de Bentham é a alegoria usada para Foucault esclarecer seu pensamento. Trata-se de uma prisão em círculo em cujo centro há uma torre de observação --  o panóptico. Toda e cada cela era acessível ao olhar do vigia instalado no panóptico. Mesmo que o olheiro não pudesse ver todas as celas ao mesmo tempo, e mesmo que ele nem lá estivesse, os prisioneiros disso não sabiam. Eles agiam como se estivessem sendo observados o tempo inteiro. O vigia tornava-se onipresente e transformava-se em um vigilante interno, dando origem a uma função interna à qual Freud chamou de superegóica. Estamos diante de um superego disciplinador, cruel e recalcador.

A sociedade vitoriana foi uma sociedade repressiva que criou a figura do recalque, que é a repressão interna. As empresas desse período necessitavam acumular capital e para isso reprimiam o desejo de consumo para economizar numerário. A acumulação, a disciplina, a ascese, a renúncia aos prazeres, a moderação, eram estimuladas. O homem vitoriano ideal era educado, formal, correto, disciplinado, cumpridor de suas obrigações, honesto, íntegro, retilíneo em sua trajetória de vida, confiável, honrado. Um cavalheiro, um gentleman. Ordem, dever, organização, controle, disciplina eram os preceitos a serem seguidos. Dedicava sua vida à tarefa de crescer lenta e seguramente dentro da atividade e/ou empresa escolhida.

As regras eram estritas e aquele que as seguia era valorizado e recompensado. A sexualidade, o feminino, os sentimentos de fraqueza, dor, tristeza, a espontaneidade, a empatia e a capacidade de identificação eram desvalorizados, reprimidos e recalcados. 

A educação era repressiva. Na escola valorizava-se a disciplina, o dever, o bom comportamento. A criança era cumpridora de obrigações e entre estas, a de decorar as matérias escolares.

         As empresas procuravam funcionários “certinhos”, disciplinados, cumpridores de deveres, assíduos, burocráticos, dedicados à firma e lhes oferecia segurança e aposentadoria. 

 

Acompanhamos algo do surgimento e crescimento da repressão/recalque, substrato sobre o qual se assenta o neuróide. Vamos agora tentar perseguir a subjetividade psicóide que prospera especialmente a partir de meados do século passado. Veremos como a repressão/recalque evolui para a onipotência/cisão.

A família patriarcal entra em declínio. As identificações sólidas com o pai sofrem com a perda de poder desse pai, com sua desorientação diante de um mundo mutável onde nada é seguro, nem o emprego, nem as amizades, nem as convenções sociais, nem a moralidade. Um pai que fica perdido entre o autoritarismo e a condescendência, agindo muitas vezes erraticamente. Um comportamento próprio de um período de transição. O homem firme, seguro, com valores sólidos, com um superego forte, perde seus parâmetros e torna-se um homem inseguro, que não sabe se expressa ou não seus sentimentos, que não sabe se desenvolve ou não sua capacidade de empatia e identificação, que não sabe se deve ou não ser autoritário. Quanto à mãe, chamada a entrar no mercado de trabalho por razões econômicas, também o faz para livrar-se do jugo do marido, para tornar-se independente, valorizar-se, igualar-se subjetiva e hierarquicamente ao marido; ela então, torna-se uma profissional dedicada a sua carreira. Duas conseqüências: menos tempo para o bebê e mais preocupação com o sustento da casa. Esses dois fatores diminuem sua disponibilidade para o bebê, e a fusão e a identificação mãe/bebê ficam prejudicadas, remetendo-nos a questões de identidade/identificação.

O borderline, visto de um ângulo negativo será dito como tendo insuficiência de identificações, expressão que poderá ser substituída por valências identificatórias abertas, se olharmos o mesmo fenômeno positivamente, à luz de uma outra episteme.

Segundo Freud, quando o complexo de Édipo se resolve satisfatoriamente o homem adquire um superego sólido que dificilmente se deixará modificar pelo ambiente. O borderline pensado na perspectiva edípica será falado como tendo um superego frouxo, lábil, influenciável, correspondente à descrição freudiana do superego feminino. Justamente é este superego poroso -- que se deixa penetrar e influenciar -- que privilegiará o homem da pós-modernidade, tornando-o apto a acompanhar as rápidas transformações da cultura. 

Grinker[6] fala de quatro níveis de borderline: Grupo 1- O borderline psicótico – comportamento inapropriado e não adaptado. Deficiente senso de identidade e de realidade. Comportamento negativo e raivoso em relação às pessoas. Depressão.  Grupo 2- O borderline nuclear – Envolvimento flutuante com outros. Expressões abertas e atuadas de raiva. Depressão. Ausência de indicações de um self consistente. Grupo 3 – Personalidades ‘como se’ – comportamento adaptado e apropriado. Relações complementares. Pouca espontaneidade e afeto em resposta a situações. Defesas: afastamento e intelectualização. Grupo 4- O borderline neurótico – Depressão anaclítica (semelhante à da infância). Ansiedade. Semelhança com caráter narcisista neurótico. Influenciado por essa sistematização agrupei esse conjunto humano em borderline pesado (patológico), borderline falso-self e borderline brando (próximo da normalidade).

Manter as valências identificatórias em aberto é conservar características infantis e adolescentes: curiosidade, alegria, prazer, empatia, necessidade de identificação não apenas mental, mas principalmente psicossomática. Para preencher suas valências identificatórias abertas, o borderline pesado poderá procurar figuras de identificação, das quais exigirá uma conduta tal, que será incompatível com uma boa relação interpessoal. Ele exigirá comportamento de mãe primeva e de pai primevo da pessoa escolhida para seu par, e fará demandas impossíveis de serem atendidas. Seguem-se a frustração, a separação, o abandono, o sentimento de solidão, de vazio, de incompreensão; aparecem a depressão, a ansiedade, os distúrbios de conduta, os comportamentos perversos, as somatizações, os sintomas neuróticos, as vivências psicóticas, etc. Deste jardim florido cada borderline “escolherá” o seu buquê. 

Poderá, porém usar as suas valências identificatórias abertas para realizar uma identificação em devir, uma identificação dual-porosa com o mundo circundante. Esta intimidade com o mundo poderá permitir que ele realize os seus desejos infantis onipotentes mitigados no social, tornando-o um membro produtivo da sociedade.

O borderline acopla-se melhor à sociedade pós-moderna por sua maior flexibilidade, por não possuir uma identidade firme, por não possuir um superego sólido. Existe uma afinidade entre a sociedade pós-moderna e o borderline, o que é uma redundância, pois simplesmente o borderline faz parte dessa sociedade. As empresas já não querem funcionários disciplinados e burocráticos, mas homens criativos. A escola já não fala em disciplina, dever e decoreba, mas sim em criatividade, pesquisa, singularidade, estimulação afetiva. Mais que uma ação repressiva temos um estímulo à criatividade. Mais que recalque com seus derivados temos a alternância onipotência/impotência, com uma compartimentação destes dois estados, caracterizando uma cisão. O borderline brando pode ser considerado o homem da pós-modernidade por sua inquietude, flexibilidade, criatividade, sensibilidade, empatia, permeabilidade, intuição, pela sua apreensão mais direta, menos mediada da realidade, pela sua capacidade de detectar os mínimos movimentos do inconsciente pessoal, coletivo e cultural.

 

 

As rápidas conquistas tecnológicas desestabilizaram o sistema das grandes empresas burocratizadas. As empresas, que até então valorizavam o homem correto, de sólida e monodirigida formação profissional, que valorizavam um currículo acadêmico e um currículo profissional voltado a uma única atividade, valorizavam a disciplina, o horário, a assiduidade, passaram a preferir o homem de múltiplos conhecimentos e capacidades, de múltiplas experiências, um homem enriquecido por uma vida variada e dispersa, um homem capaz de se safar de situações difíceis e complexas, um homem criativo.

Na família, as identificações sólidas tornaram-se problemáticas pela solicitação que o mercado e a vida atual fazem à mãe e pela perda da posição de patriarca por parte do homem, o que o deixou confuso, em estado de busca de uma nova identidade familiar. Os parâmetros morais também se modificaram colocando o homem em conflito consigo mesmo e muitas vezes com o entorno. Em conseqüência os filhos ficam com o que seria um déficit de identificações, se visto pelo lado negativo, ou como valências identificatórias abertas, se visto pelo lado positivo.

O pai, até então idealizado, preservado em sua autoridade e onipotência, distante de seus filhos em termos de uma amorosidade explícita e ativa, alvo de um respeito reverencial, estímulo para a revolta ou a submissão dos filhos, vai-se tornando mais próximo, evitando provocar o temor reverencial, mostrando suas dúvidas e fraquezas, seu lado feminino, e sendo percebido/sentido em seu dilaceramento. O filho ou se identifica com a inconstância e cria um self criativo e um ego flexível – e aí teremos um borderline brando --- ou fica baratinado, sem ponto de referência, sem âncora, sem um eixo. As conseqüências negativas podem ser a busca de grupos místicos e de drogas, a depressão, a ansiedade, a desorientação, a síndrome borderline pesada, o pânico, etc.

 

BORDERLINE

O borderline pesado é polissintomático, ambulatório, com dificuldades nas relações pessoais por sua fragmentação ou por suas necessidades narcísicas exacerbadas, com tendência à atuação, com problemas na área afetiva, com questões nas áreas das identificações e identidade, necessitando de uma circunvizinhança humana para atuar os seus fantasmas, com labilidade de humor, com tendência à exagerada dependência afetiva muitas vezes reativamente negada, usando excessivamente a identificação projetiva e introjetiva, com extrema sensibilidade e susceptibilidade, incomumente e seletivamente permeável ao próprio inconsciente, ao inconsciente do outro e à subjetividade circulante.

Se peneirarmos o borderline acima de maneira a obter a farinha purificada do borderline brando, sobrará a tendência à atuação, a necessidade afetivo/dinâmica de uma circunvizinhança humana para nela atuar seus fantasmas e realizar seus desejos infantis, o uso da divisão/compartimentação e da onipotência mitigada de forma não incompatível com o social, a extrema sensibilidade, a incomum permeabilidade ao próprio inconsciente, ao inconsciente do outro e à subjetividade circulante; tal permeabilidade permite-lhe identificar-se continuamente, em devir, com o que o rodeia. A essa identificação dei o nome de "identificação dual-porosa", "identificação transital", "identificação contínua", e, posso agora acrescentar, "identificação em devir". (Borderline: uma outra normalidade)

O borderline brando tende mais à multiplicidade do que ao polissintomático, o que significa que ele não inibe os vários aspectos de sua personalidade em favor de um único aspecto, mantendo as suas várias potencialidades disponíveis para serem usadas. No que diz respeito à sensibilidade/susceptibilidade narcísica ela apresenta-se menos como uma ferida e mais como um instrumento de conhecimento do outro; a permeabilidade das fronteiras do eu, que poderia torná-lo vulnerável às afetações do outro mantém-se como sensibilidade que permite conhecer o outro, propiciando o desenvolvimento de afetos e sentimentos pertinentes à relação em curso. Assim, ao invés de um fechamento nas próprias fantasias, há uma abertura para o conhecimento das fantasias do outro. A permeabilidade das fronteiras, que no borderline pesado pode ser usada contra o outro ou pode dar lugar a um excesso de identificação projetiva e introjetiva, no borderline brando muda de qualidade, transformando-se em identificação dual-porosa, uma identificação que permite um regime de trocas fantasmáticas e afetivas contínuas entre os seres humanos entre si e com o mundo circundante. A porosidade tanto funciona em relação ao mundo externo (a um outro humano, sim, mas também em relação à cultura, à natureza, ao planeta), quanto ao mundo interno, isto é, na percepção do próprio inconsciente. Em se tratando do borderline brando, as trocas fantasmáticas e afetivas ocorrem em um espaço potencial ou a ele equivalente, o que significa que ao objeto subjetivo superpõe-se o mesmo objeto objetivamente percebido. A identificação dual-porosa mostra-se um precioso instrumento de conhecimento, relação e comunicação, permitindo surfar nas ondas do devir, possibilitando ao borderline deslizar e se enlear nas sutis e infindas variações de um mundo em constante mutação. A tendência à dependência do borderline pesado, traduz-se no borderline brando pelo reconhecimento da necessidade afetiva de um outro também dual-poroso, de tal maneira que um regime de trocas, onde vigore tanto o subjetivo quanto o objetivamente percebido, possa ser estabelecido.

O estado de identificação em devir encontrado no borderline brando (o homem pós-moderno) entrelaça-o à subjetividade contemporânea como sujeito criativo e transformador.

 

Nahman Armony


 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

Armony, N. – “Borderline, uma outra normalidade”. Rio de Janeiro, Editora Revinter, 1998.

 

Freud, S. – “Análise terminável e interminável” (1937) Edição Standard Brasileira vol. XXIII. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1975.

 

Idem – “Terapia analítica”, conferência 28, vol. XVI.

 

Grinker,R.R., Werble,B., Drye,R.C. – “The Borderline Syndrome”. New York, Basic Books Inc., 1968.

 

Martins, A. – “Pulsão de morte? Natureza e cultura na  metapsicologia freudiana”. Tese de doutorado em Psicologia Psicanalítica – UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.

 

Stengers,I. – “Quem tem medo da ciência?”. São Paulo, Siciliano, 1990.

 

Winnicott,D.W. (1959-1964) – “Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à classificação psiquiátrica?” IN “O ambiente e os processos de maturação”. Porto Alegre, Artes Médicas, 1983.   

                  

        

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A AGRESSIVIDADE E O OUTRO NA TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E NO BORDERLINE

                                                            Nahman Armony

     A agressividade destrutiva dirigida ao outro depende de seu contexto de origem. Proponho-me a apresentar dois quadros clínicos de destrutividade que se distinguem pela sua procedência, intenções e objetivos. Refiro-me à tendência anti-social e ao borderline.

     Mas será que podemos chamar a “tendência anti-social” de quadro clínico? Essa expressão, diz-nos Winnicott, não é um diagnóstico; ela pode ocorrer em neuróticos, psicóticos e normais[7]. Porém em outro local[8] Winnicott escreve: “Perversidade faz parte do quadro clínico (sublinhado meu) produzido pela tendência anti-social.[9] (p.97). A tendência anti-social, portanto produz um quadro clínico. O que encontramos neste quadro clínico são atos anti-sociais: roubo, perversidade, destrutividade, etc. Na verdade a tendência anti-social não tem outra manifestação fenomênica que não os atos anti-sociais. Já no borderline o ato anti-social é apenas uma das muitas manifestações do quadro clínico.

     Tentarei mostrar as diferenças entre a conduta anti-social da tendência anti-social e a conduta anti-social do borderline.

     Para isso precisarei discorrer sobre ambas as categorias.

     A tendência anti-social faz parte da família da psicopatia. Ela começa na infância e pode ou não se estender à idade adulta quando ganha outros contornos e outros nomes. Em um extremo da linha da psicopatia estão as condutas perturbadoras do ambiente que ainda podem ser consideradas normais (a referência aqui é a infância) e em outro extremo está o psicopata criminoso (a referência é o adulto). A seqüência vai da tendência anti-social “normal”, passa pela tendência anti-social que já foge à normalidade (roubo e destrutividade repetidamente exercidos) podendo então já ser chamada de desajuste. No grau seguinte ela é considerada incontrolável sendo então chamada de delinqüência e finalmente, já referida a um adulto reincidente será chamada de psicopatia. Winnicott fala claramente que a delinqüência ao se tornar um modo de vida, com seus ganhos secundários, suas conexões e fixações, dificilmente será revertida. Isto vale a fortiori para a psicopatia.

      O borderline está na linha da psicose, ou segundo André Martins do psicóide[10]. Citando Winnicott: “Os psicanalistas experientes concordariam em que há uma gradação da normalidade não somente no sentido da neurose, mas também da psicose”[11]. Nessa gradação da linha psicóide temos em um extremo a esquizofrenia desorganizada e no outro o borderline próximo da normalidade, a quem denominei de borderline brando. Embora existam várias concepções de borderline acredito que todos nós concordamos que seu quadro clínico inclui impulsividade, tendência ao ato, baixa resistência à frustração, cisão, instabilidade emocional, etc. A partir destas características apresentam uma grande diversidade de sintomas. Um borderline do qual tratei e que me serve como paradigma apresentava os seguintes sintomas: conversão histérica, depressão, ansiedade, condutas anti-sociais perversas, somatizações diversas, idéias paranóides e de auto-referência e outras. Para além (ou aquém) destes sintomas encontramos a onipotência, a cisão/compartimentação e a porosidade como importantes suportes do borderline. Uma pessoa da linhagem neuróide se frustrada recalcará o seu desejo infantil de onipotência e acederá a uma potência fixando objetivos distantes e de realização gradativa. Na linhagem psicóide o desejo de onipotência não é recalcado, mas dissociado. O que ocupa o lugar da onipotência não é a potência neuróide, mas a impotência psicóide. O borderline ferido em seu narcisismo sente-se impotente e dissocia sua onipotência. Esta, porém, vai reaparecer logo adiante, sendo então este o momento em que a impotência é colocada numa gaveta, não influindo no impulso de onipotência. No neurótico, não havendo esta dissociação, o fracasso vai atuar diretamente na onipotência transformando-a em potência. No borderline há uma alternância impotência-onipotência que permanecem dissociados. O borderline quer ver imediatamente realizados seus desejos infantis grandiosos. Neste sentido ele pode ser implacável, usando de todos os recursos, inclusive os anti-sociais, aqueles que são contra a lei, para atingir os seus objetivos. E ele o faz sem culpa. 

     Grinker fala de quatro graus de borderline. Influenciado por ele propus em um de meus escritos três tipos de borderline: o borderline próximo à psicose (borderline pesado) o borderline falso-self e o borderline próximo à normalidade da pós-modernidade (borderline brando). Proponho que para essa apresentação pensemos em dois tipos de borderline. O borderline fechado que corresponde ao falso-self winnicottiano, e o borderline aberto do qual Winnicott praticamente não fala. No borderline fechado falso-self a destrutividade aparece em condições protegidas, como vemos no depoimento corajoso de Margaret Little em seu livro sobre seu tratamento com Winnicott. No borderline pesado aberto a destrutividade pode aparecer em qualquer situação.

     Vejamos agora as diferenças entre borderline e tendência anti-social no que diz respeito às formulações winnicottianas referentes ao desenvolvimento.

     Para Winnicott o borderline não terá tido uma mãe suficientemente boa na fase de dependência absoluta. Eu preferiria reservar esta fase para a psicose deixando para o borderline a referência de uma fase de transição entre dependência absoluta e relativa mal vivida. A mãe do borderline pode ser pensada como uma mãe instável, ambivalente. Ela inconscientemente deseja manter o filho numa relação de fusão e simbiose e conscientemente o impele para a autonomia das grandes realizações. Estamos numa relação de duplo vínculo. A conseqüência é uma personalidade desorientada, revoltada, lutando desesperadamente contra algo desconhecido que tenta destruir para não ser destruído. Esta agressividade errante é dirigida para o social provocando comportamentos perversos e destrutivos: briga, quebra-quebra, estupro, provocações diversas, etc. Trata-se de uma agressividade impulsiva, uma forma de descarregar uma raiva que se alimenta da situação de duplo vínculo, da revolta que ele não sabe contra quem dirigir. Não é um pedido de socorro, não tem o objetivo inconsciente de mobilizar o ambiente, não é um recado. Nisto difere da agressividade e da transgressão da tendência anti-social como veremos a seguir.

A tendência anti-social pressupõe um período de dependência absoluta suficientemente bem vivido, com uma mãe suficientemente boa fornecendo um ambiente suficientemente bom para seu bebê. Somente quando, na fase de dependência relativa, a mãe falha além do necessário, o bebê em estado de deprivação realiza atos anti-sociais. “... existe agora um amplo reconhecimento da relação existente entre a tendência anti-social em indivíduos e a privação emocional, tipicamente no final da fase de bebê de colo e logo que a criança começa andar, entre um e dois anos de idade” (p.503)[12]. “Uma declaração abrangente do que é deprivação incluiria tanto a deprivação mais antiga quanto a tardia, tanto o trauma definido quanto uma condição traumática constante, tanto uma deprivação próxima da normal quanto uma claramente anormal”(p.309)[13]

     Antes de prosseguir devo recordar a diferença entre privação e deprivação (essa palavra é um neologismo). Quando falamos de privação referimo-nos a uma falha que existe desde o início da vida do bebê; o bebê privado nunca conheceu um acolhimento suficientemente bom. Já deprivação refere-se a uma criança que teve um atendimento satisfatório e que depois o perdeu, foi deprivada do que já tinha tido.

A mãe suficientemente boa na fase da dependência relativa terá de falhar para que a individuação possa ocorrer. É um paradoxo: a falha não é uma falha, mas uma necessidade; ela falhará se não falhar. Poderá, porém, falhar um pouco além do necessário e certamente o fará, pois ela não é uma mãe infalivelmente boa, mas sim uma mãe suficientemente boa. Este um pouco a mais provocará no filho manha, dificuldades na alimentação, problemas de sono, bagunça, amolação, enurese, teimosia, etc. Todos estes comportamentos, desde que não excessivos e, portanto, passageiros e controláveis pertencem àquela tendência anti-social que ainda pode ser denominada “normal” e que é precursora do TAS tout court. Esta ocorrerá quando a falha materna for excessiva (e aí podemos falar de uma mãe não suficientemente boa). Neste caso, diz-nos Winnicott, a ausência da mãe supera a capacidade do bebê em manter no psiquismo a sua lembrança. Aqui temos uma diferença da mãe do borderline que permanece presente, embora instável.

Na tendência anti-social propriamente dita a criança passa sistematicamente a roubar e/ou apresentar um comportamento destrutivo.

O roubo da criança de TAS tem a intenção inconsciente de reaver a mãe no objeto roubado e de chamar a atenção sobre si, tentando recuperar o cuidado perdido. A criança rouba não propriamente o objeto, mas a mãe que lhe pertence e que se formou no seu espaço subjetivo durante a fase de dependência absoluta. Winnicott: “Ao roubar açúcar o que uma criança busca é uma mãe boa, a sua própria, de quem possa obter toda a doçura a que tem direito. De fato, toda essa doçura lhe pertence, pois ele a inventou a partir de sua própria criatividade primária...”[14]

Destrutividade: não tendo recebido a atenção da mãe e, portanto, não tendo tido os limites carinhosos dos braços da mãe, a criança fica a mercê de seus impulsos amorosos cruéis e de sua agressividade instintiva desordenada. O lar deixa de ser um lugar de estabilidade. Seus atos agressivos e destrutivos têm a finalidade de chamar a atenção, sim, mas principalmente de tentar recuperar a estabilidade e os limites de que necessita para poder se desenvolver sem ansiedades excessivas. Ele então provoca o ambiente, obrigando-o a levá-lo em conta e a tomar providências. Este ambiente pode ser “o corpo da mãe, os braços da mãe, a relação parental, o lar, a família, incluindo primos e parentes próximos, a escola, a localidade com suas delegacias de polícia, o país com suas leis”[15] (Winnicot: “Da Pediatria...” “A tendência anti-social” p.505).

Vemos então que a atividade anti-social da TAS tem uma intencionalidade, manda um recado, tem uma significação, é um apelo, um pedido de socorro, convoca uma mobilização e uma modificação do ambiente. São, como diz Winnicott, atos compulsivos, repetitivos, plenos de sentido. Diferem dos atos anti-sociais do borderline que obedecem não à compulsividade, mas à impulsividade. São atos de descarrego, sem apelo, sem recado, sem intencionalidade. Originam-se em sentimentos de desespero, desorientação e desamparo produzindo uma raiva que não localiza seu objeto provocador, difundindo-se, por isso mesmo, pelo social, diferindo da tendência anti-social que embora também se espalhe pela socialidade conhece melhor, em algum nível, seu objeto motivador.  

 

                                                                                 Novembro/2005

 

 

 

 




[1] Winnicott, D.W.W., 1982, p.21.
[2] Martins, André, 2002, p.212.
[3] Armony, Nahman, 1998.
[4] Freud em “Análise Terminável e Interminável” escreve: “A análise, contudo, capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a empreender uma revisão dessas antigas repressões; algumas são demolidas, ao passo que outras são identificadas, mas construídas de novo, a partir de um material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é bastante diferente do das anteriores; podemos confiar em que não cederão facilmente ante uma maré ascendente da força instintual. Dessa maneira, a façanha real da terapia analítica seria a subseqüente correção do processo original de repressão, correção que põe fim à dominância do fator quantitativo”(p.259/260 do vol. XXIII – Edição Standard da Imago, 1975). Na conferência 28 (“Terapia analítica”) de “Conferências introdutórias sobre psicanálise” escreve: “Não podemos negar que também as pessoas sadias possuem, em sua vida mental, aquilo que, por si só, possibilita a formação tanto dos sonhos como dos sintomas; e devemos concluir que também elas efetuaram repressões, que despendem determinada quantidade de energia a fim de mantê-las, que seu sistema inconsciente oculta impulsos reprimidos ainda catexizado com energia, e que uma parte de sua libido é retirada e deixa de estar à disposição do ego. Assim, também  uma  pessoa sadia é virtualmente um neurótico; mas os sonhos parecem ser os únicos sintomas que ela é capaz de formar. É verdade que, se alguém submete a um exame mais atento sua vida desperta, descobre algo que contradiz essa aparência – ou seja, que essa vida pretensamente sadia está marcada aqui e ali por grande número de sintomas banais e destituídos de importância prática”.(p.532/3 do vol. XVI).
[5] Stengers, Isabelle, 1990
[6] Grinker,R.R., .Werble,B., Drye,R.C., 1968, p.83-90.
1. Ver o artigo de Winnicott “Tendência anti-social” IN “DA PEDIATRIA À PSICANÁLISE”, p. 408. Citação completa: “A tendência anti-social não é um diagnóstico. Não se pode compará-la diretamente com outros tipos de diagnóstico, tais como neurose e psicose. Pode ser encontrada tanto em indivíduos normais quanto em neuróticos ou psicóticos”
[8] “Moral e educação”, artigo que consta do livro “O AMBIENTE E OS POCESSOS DE MATURAÇÃO”
3 Idem.
[10] Martins, André – Tese de doutorado. “Pulsão de morte? Natureza e cultura na metapsicologia freudiana”, p.213-214.
[11] Winnicott, D.W. – “CLASSIFICAÇÃO: EXISTE UMA CONTRIBUIÇÃO PSICANALÍTICA À CLASSIFICAÇÃO PSIQUIÁTRICA?” In “O ambiente e os processos de maturação”. Porto Alegre, 1982, Artes Médicas.
[12] Winnicott, D.W. – “ A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL” In “Da pediatria à psicanálise” Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves, 1978.
[13] “The comprehensive statement of deprivation, one that includes both the early and the late, both the pinpoint trauma and the sustained traumatic condition and also both the near normal and the clearly abnormal”. WINNICOTT, D.W. – “THE ANTISOCIAL TENDENCY” In “ Trough Paediatrics to Psycho-Analysis”. Basic Books, Inc., Publishers, New York, 1975.
[14] WINNICOTT, D.W., citado por JAN ABRAM em “A linguagem de Winnicott”, p.44. Ed.Revinter, Rio de Janeiro, 2000.
[15] WINNICOTT, D.W.  – “A TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL” In “Da pediatria à psicanálise”. Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1978.

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