AS IMPUREZAS DO BRANCO

         Carlos Drummond de Andrade em seu poema “Quero” fala de sua necessidade de estar sempre ouvindo da amada que ela o ama. Citando algumas estrofes:

“No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me
que nunca me amaste antes.”
                                   (Em “As impurezas do branco” p.38).
        
Esta situação impossível representa um desejo que permanece no inconsciente e que por vezes vem à tona, seja sob forma de poema, seja sob forma de reivindicação. É um desejo que une os amantes com fios de aço e os machuca como arame farpado.
         Temos de admitir dois níveis de relação: um nível inconsciente, infantil, expresso por Drummond e outro que sabe ser este desejo de permanente amor uma quimera.
         Há períodos em que uma mãe devotada volta-se inteiramente para seu bebê preenchendo as condições do poema de Drummond. Há outros em que a mãe necessita se afastar não só por seus afazeres mas também por necessidade de ter uma vida própria.
         De forma semelhante poderemos encontrar no início da paixão uma situação próxima ao poema. Querer manter eternamente este clima é uma impossibilidade que leva a equívocos, à separação dolorosa, por vezes à morte.
         Todo casal tomado pela fantasia primitiva de preenchimento total estranhará tudo aquilo que represente um afastamento deste desejo primordial. Um mínimo de desatenção, uma voz menos carinhosa, um tempo maior de separação, o adiamento de um telefonema, e muitos outros pequenos ou grandes acontecimentos, colocarão os amorosos em situação de ansiedade aparecendo uma insegurança quanto ao verdadeiro amor do parceiro, mesmo que a razão possa lhes dizer que se trata de um falso sentimento. O parceiro preocupado em não deixar o amado sofrer, torna-se um prisioneiro das susceptibilidades despertadas. Racionalmente ambos sabem que adiamentos, mudanças de tonalidade de voz, etc. não significam deixar de amar; porém a força do inconsciente se manifesta e a insegurança se instala.
         Aqui surge a grande questão da integração das emoções primitivas com o conhecimento cognitivo. Quanto menor a integração mais a pessoa sofrerá com suas fantasias primitivas. A integração é uma conquista difícil. Seria preciso saber focalizar com força os aspectos práticos da vida. O amado pode estar preocupado com um problema de trabalho, com a situação financeira, com algum problema de família. Estas e outras coisas podem estar ocupando de tal maneira o seu psiquismo que sua disponibilidade para a pessoa amada diminui. Se esse conhecimento puder entrar em contato com a emoção primitiva formando com ela uma unidade funcional, o sofrimento expresso de forma algo jocosa pelo grande poeta tornar-se-á muito menos presente e os amantes poderão usufruir da intensidade da relação quando psicossomaticamente disponíveis, sem o sofrimento das várias relativas distâncias impostas pela vida e pela própria dinâmica psíquica que pode não suportar uma proximidade de 24 horas por dia.
         Exemplificando: a amada diz: “você está hoje com uma voz diferente”. O subtexto queixoso ou acusatório é que o amante não estava inteiramente voltado para ela. Esta é uma situação inevitável e faz parte da vida, pois esta exige atenção variada. É preciso também levar em conta o rodízio afetivo-cognitivo a que todos estão sujeitos. O amante ora estará fusionado à amante ora estará milímetros distante, ora esta distância será de centímetros, ora estará --- por que não? ---- metros distante, dependendo das circunstâncias da vida, da dinâmica do psiquismo pessoal e do interpsiquismo do casal, se é que podemos separar uma coisa da outra. Isto não significa absolutamente que o amor desapareceu. Ele está lá como parte de uma complexidade maior que é o ser humano. Se este conhecimento cognitivo puder se amalgamar ao desejo primitivo de ser permanentemente amado, a convivência amorosa muito ganhará em qualidade.    
                                                                                 
                                                                                  Nahman Armony


Esta crônica  foi publicada pela primeira vez na revista CARAS.

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